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O caso da pastora que “visitou o inferno”

3 COLISÃO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS QUE SE RELACIONAM AO

4.3 O caso da pastora que “visitou o inferno”

O Programa “Agora é Tarde” exibido no dia 18/10/2013 pela emissora de televisão Band, durante o quadro “Mesa Vermelha”, veiculou matéria sobre a viagem espiritual que a pastora Yonara Amaral de Lira testemunha ter realizado. Diante dos comentários proferidos no referido quadro, a referida pastora sentiu-se ofendida em sua honra e imagem, pleiteando ação de indenização por danos morais (processo nº 0610476- 72.2014.8.04.0001 - 9ª Vara Cível e de Acidentes de Trabalho de Manaus do Estado do Amazonas) no valor de 6 (seis) milhões de reais em face da emissora que veiculou o programa e de seu apresentador, Danilo Gentili.

Para tanto, aduziu a parte autora que registrou sua experiência espiritual em um DVD, que não chegou a identificar e em uma revista periódica intitulada de “Acorda Brasil”, além de viajar pelo Brasil inteiro divulgando seu testemunho. Nele, adota o nome “Yonara Santo” e narra ter sido transportada em espírito 15 (quinze) vezes ao inferno, no qual passou pelos vales dos homicidas, dos homossexuais, dentre outros, tendo ainda, estado no céu por 07 (sete) vezes, local este onde recebeu a ordem de transmitir para todas as pessoas indistintamente, a sua “fabulosa” experiência.

O programa humorístico, portanto, valeu-se da insólita experiência da pastora para fazer comentários jocosos. O convidado “Gabriel, o Pensador” comentou que ela, Yonara, (online, 2013) “será que ela não foi a uma casa de swing e pensou que era o inferno?”, sendo esta colocação uma insinuação de que a requerente vivia uma vida promíscua, passando uma imagem de devassidão. Posteriormente, o apresentador Danilo Gentili brincou: “O que

ela foi procurar no inferno? Com certeza foi rola. Quando ela chegou lá, ela viu: ‘Ah, essa rola não é pra mim, ninguém quer me comer. Só tem v* aqui’.”

Prosseguindo na exposição fática, aduziu, por fim, que, no momento seguinte, o coapresentador Murilo Couto teve a intenção de chamá-la de gorda, finalizando o comentário com uma sátira à suposta reflexão da autora sobre o céu: “Não pode ser v*, não pode comer puta, não pode se drogar, não pode ver TV, não pode ver sacanagem na TV... Pô, o céu é uma merda”.

Diante disso, requereu indenização por danos morais “ante as condutas dolosas, na livre e gratuita intenção de macular a imagem, o ministério evangélico da autora e, diante de todo vexame, causar humilhação, dor e exposição ao ridículo levado a cabo pelos Requeridos”.

O juízo da 9ª Vara Cível de Manaus/AM reconheceu o confronto entre os direitos fundamentais (liberdade versus honra e imagem). Posteriormente, definiu a liberdade de expressão da atividade de comunicação, apontando-a como característica do Estado Democrático de Direito. Em seguida, ressaltou a relativização da referida liberdade, nos seguintes termos:

Contudo, o direito da livre expressão da atividade de comunicação não é absoluto, encontrando limites nos direitos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas, também na moralidade e segurança pública, direitos constitucionalmente assegurados.

Por fim, reconheceu a ocorrência do direito à indenização, levando em conta “o teor dos comentários proferidos em rede nacional a causar incontestável dano moral à Requerente” e condenando os réus, solidariamente, ao pagamento de 20 (vinte) mil reais. Da sentença, todas as partes recorreram: os requeridos pleiteando, sobretudo, a descaracterização do dano moral e a requerente buscando a majoração do valor fixado pelo juízo a quo.

Assim, no caso em comento, diferente do que ocorrera no anteriormente explicitado, além da incontestável legitimidade ativa da autora e passiva dos requeridos, destacando-se a Súmula 221 do STJ que reconhece a responsabilidade solidária dos veículos de comunicação, também restou evidente o excesso de agressividade à honra e à imagem da pastora nos comentários do apresentador e dos convidados, satisfazendo os requisitos para a condenação em indenização por danos morais.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode ser observado que, muito além de uma questão moral, esta é uma colisão entre direitos fundamentais, pilares do Estado Democrático de Direito, não existindo no ordenamento qualquer regra de prévia supremacia entre as referidas normas.

Assim, pode-se observar a dificuldade de os tribunais superiores estabelecerem, ainda que aproximadamente, o liame entre o discurso humorístico tolerável e a violação à personalidade.

A alegação dos artistas de que se valem do “politicamente incorreto” apenas como expressão de humor, por sua vez, como demonstrado pela doutrina e jurisprudência apontadas, não representa garantia que lhes permita dizer qualquer coisa, já que suas manifestações não poderão ser de tal modo ofensivas que resultem em violações à dignidade de terceiros.

Por outro lado, é vedada a prévia limitação a qualquer tipo de liberdade de expressão, sob pena de manifesta censura. Ademais, não se pode auferir fragilidade à liberdade de expressão, afastando-a em virtude de comentários que não causem danos efetivos à honra e à imagem das pessoas, que podem se considerar ofendidas com piadas as quais, ainda que de conteúdo repugnante, não atestem preconceito dos que as expressam. Portanto, faz-se necessária a separação entre o animus jocandi e a ofensa que promova danos morais.

O fato é que, no Brasil, os limites para o humor ainda não estão precisamente definidos, se é que, um dia, essa definição será possível. Em polos extremos, percebe-se, de um lado, a tentativa de censura inconstitucional a essa manifestação de pensamento e, de outro, a busca pela supremacia da liberdade de expressão, colocando-a acima, até mesmo, dos direitos personalíssimos.

Como qualquer questão envolvendo colisão de normas constitucionais, a discussão é delicada e complexa. Não se pode esperar do legislador uma normatização acerca do prevalecimento de uma norma sobre a outra. A solução deve ser buscada pelo magistrado, na análise do caso concreto, devendo este ter sensibilidade para aplicar, sobretudo, a razoabilidade, buscando afastar um princípio em favor do outro utilizando a técnica da ponderação e obedecendo os critérios da proporcionalidade.

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