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O CENTRO HÍPICO E AS SESSÕES DE EQUOTERAPIA

1.2. O cenário

O Centro Hípico onde fiz a pesquisa de campo pertence ao Parque Eco Esportivo Damha, localizado na Rodovia Washington Luiz, município de São Carlos- SP, afastado 4km do centro da cidade. O Parque, um empreendimento da Dahma Urbanizadora, é um complexo que abrange condomínios residenciais, estruturas de esporte, lazer e serviços (como a Hípica, a ciclovia e o campo de golfe), ocupando uma área de doze milhões de m².

Em minha primeira visita a campo, depois de descer do ônibus municipal, caminhei pela via asfaltada que levava a uma das entradas do Parque. Ao chegar na guarita, apresentei-me, expliquei o

56 No original, “What is the pattern that connects the crab to the lobster and the primrose to the orchid, and all of them

70 motivo de minha visita ao local, e perguntei aos funcionários onde e como chegava à Hípica. Escusado dizer quem eu era ou detalhar quais eram minhas finalidades como pesquisadora ali, bastava que eu os cumprimentasse como um gesto de cordialidade, uma vez que, como me explicou depois uma das terapeutas, a administração do Parque não se preocupava com a circulação de pedestres, para quem eles não faziam perguntas ou pediam seus documentos, ao contrário da visitação de carro, quando se requer documento pessoal e a informação do local de destino no interior do Parque. O visitante de carro recebe do funcionário um crachá colorido, que deve ser pendurado no espelho retrovisor do veículo, a fim de identificar a área do parque que o motorista está autorizado a percorrer.

Em minha condição de simples transeunte, e na facilidade do deslocamento a pé, sigo meu caminho rumo à Hípica e ao primeiro encontro com os cavalos e terapeutas, que se desdobrava em um trajeto longo, porém curioso, a ser percorrido. O interior do parque, desde a guarita até chegar à Hípica é todo asfaltado. De lá, passava por duas grandes represas e extensas áreas verdes, muitas destas com plantações de árvores de eucalipto. São as folhas destas mesmas árvores que os praticantes, quando estão montados no cavalo, são instados pelos terapeutas a observar, puxar, cheirar e, alguns casos, a levá-las de presente à sua mãe, pai, tia ou avós, que por eles aguardam no Parque. Mais à frente, continuando o caminho, há um viveiro de mudas e, depois, um conjunto de casas emparelhadas lado a lado, onde moram alguns dos trabalhadores do Parque. Carros de visitantes, ciclistas esportivos, caminhões, tratores, motos de vigias, e alguns trabalhadores a pé (que fazem serviços como carpir o solo, aparar o gramado e pulverizar inseticida nas plantas) também circulam pela área.

Nas proximidades da Hípica surgem os primeiros animais: do lado esquerdo, um pasto com algumas ovelhas; do lado direito, outro pasto, este enorme, com diversos cavalos. Alguns cavalos, que até então se alimentavam do pasto, com suas cabeças inclinadas para baixo, param de se

71 alimentar e me olham, durante um tempo razoável, embora eu estivesse caminhando a uma distância considerável e, em minhas proporções, imaginava-me diminuta, se não imperceptível a eles, naquele espaço vasto. Aparte estas impressões, mais à frente, no caminho, há também pavões alojados; do lado oposto, ficam os pôneis (que, como disseram os terapeutas, “são pequeninos mas

muito bravos” e “só servem de paisagem”), próximos à área ocupada pelos avestruzes (estes,

“comem de tudo, até pedra”). Algumas vezes, vacas e outros cavalos ocupam as adjacências da pista do bosque superior.

Imagem 1. Foto panorâmica do Parque Eco-Esportivo Damha.

Fonte: http://www.damha.com.br/empreendimentos/parque-ecoesportivo-sao-carlos/. Acesso em Janeiro, 2015.

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Imagem 2. Foto panorâmica da Hípica, extraída do sítio eletrônico do Parque Eco-Esportivo Damha. Vemos, daqui,

à direita, os dois grandes galpões onde ficam as baias dos cavalos; e entre elas, na parte frontal, o depósito onde são armazenados os materiais e suprimentos para os cavalos. À frente deste, encontra-se a pista de grama; e, adiante desta, a pista de areia. Ao lado dos galpões, pode-se entrever a vegetação lateral que recobre uma área considerável. As outras três edificações, à esquerda dos galpões, são os locais onde os cavalos tomam banho e recebem outros cuidados, como aplicação de medicamentos e retoques no casco de suas patas. As construções menores, uma à esquerda e a outra nas adjacências da pista de grama, por sua vez, pertencem à sala administrativa e ao escritório da Hípica, respectivamente. Por ser uma foto que estimo ser relativa à fase de início da construção da Hípica, o redondel e o piquete para a quarentena dos cavalos não estão ali, os quais ocupam, atualmente, a área vazia ao lado esquerdo dos dois galpões. Na fachada detrás destes mesmos galpões, no trecho pintado de vermelho, são os portões de correr, e, no primeiro à esquerda, é onde os carros dos familiares dos praticantes costumam estacionar para que os praticantes desçam e entrem no galpão. Fonte: http://www.damha.com.br/empreendimentos/parque-

73 Próxima à área da Hípica, ao lado e acima da pista de areia, está abrigada a “fábrica”, assim chamada pelos terapeutas, e que tanto os aborrecem; seus barulhos consideráveis, e o fluxo constante de caminhões indo e vindo de lá, atrapalham a continuidade das sessões de montaria, porque assustam os cavalos. Trata-se da empresa construtora Encalso, e por isso há caminhões transportando materiais constantemente pelas vias asfaltadas. Além destes veículos, pode ser que nos deparemos com pequenos tratores de manutenção e serviço, que cuidam das pistas de Equitação57. Estes, porém, são menores e seus motoristas dirigem com mais cautela, já cientes da necessidade de circular com baixa velocidade devido à reação dos cavalos.

O Centro Hípico abrange uma vasta área verde; um grande espaço de pasto de dezoito hectares, além de três galpões fechados, de tamanho e altura consideráveis, destes, dois são os estábulos e o outro é o armazém de materiais e suprimentos para os cavalos. No pasto, a casa e o lugar de folga dos cavalos, havia cerca de quarenta piquetes58. Além destes, alguns outros piquetes recebiam cavalos, como os adjacentes à pista do bosquinho, e o piquete da quarentena, onde ficavam os cavalos recém-chegados e sob exame.

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Os veículos (motos, carros, tratores e bicicletas), quando em alta velocidade, podem “assustar” os cavalos (presenciei diversos momentos em que terapeutas reclamaram deste tipo de interferência nas sessões), e de certo modo, apresentam um risco ao desenrolar das sessões e ao grupo.

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Imagem 4. Na foto acima, a fachada dos dois galpões da Hípica; do lado direito, encontra-se o galpão

com as baias disponibilizadas para os cavalos da equoterapia e equitação; do lado esquerdo, o galpão usado apenas para os cavalos da equitação. Ao centro, o depósito onde se armazena a serragem, o feno, a ração e o sal mineral para os cavalos. Fonte: Sítio eletrônico do Parque Eco-Esportivo Damha.

Imagem 5. Foto da pista de grama. Atrás e à esquerda, os galpões. Atrás e à direita, os locais onde

os cavalos recebem banho e cuidados. No canto direito, o escritório da Hípica. Fonte: Sítio eletrônico do Parque Eco-Esportivo Damha.

76 No que se refere aos estábulos, o galpão usado pela equipe de equoterapia era compartilhado com cavalos, funcionários, instrutores e equipamentos de equitação. Este era chamado também pelas terapeutas de barracão; da metade para a frente, as baias eram ocupadas pelos cavalos da equitação; da metade para trás, permaneciam os cavalos da equoterapia. O outro galpão era usado apenas pelo grupo de equitação. No meio dos dois, um terceiro galpão conectava a ambos; este, utilizado para armazenar materiais usados para os cavalos, como o feno, sal mineral, ração, dentre outros. Em cada galpão havia dezesseis baias; estas são instalações individuais onde ficam os cavalos que serão usados ao longo do dia. Em cada baia há um bebedouro que repõe a água automaticamente, o cocho automático, além de feno e capim disponibilizados diariamente para os animais. Cada baia tem grandes janelas para ventilação e portas de correr de média altura, as quais permitem aos cavalos o contato visual com o local. As baias são limpas a cada dia, ocasião em que os auxiliares-guia retiravam as fezes dos cavalos, com o auxílio de uma pá, e renovam as camadas de feno e capim. Há também instalações abertas, lugares onde os cavalos recebem cuidados como os banhos, escovações e aplicação de medicamentos.

Os praticantes e seus familiares, após entrarem no galpão, permanecem no local de entrada, que chamarei aqui de “área de recepção”. Nesta, havia uma plataforma, lugar onde as sessões tinham seu começo e fim, pois era onde os praticantes subiam para montarem nos cavalos, e ali também desmontavam deles. No canto da plataforma havia uma cesta, com materiais utilizados nos cuidados com os cavalos: escovas, um spray de xampu e um esmalte usado nos cascos. Ao lado da plataforma, havia um paraflanco, aparato que, além de delimitar o espaço em que o cavalo se posiciona no momento em que o praticante nele monta, é também onde as cordas que serviam para puxá-lo, amarradas em seu cabresto, ficam penduradas.

Próximo à entrada e à plataforma, há um banco de madeira, onde os familiares, ao chegarem, sentam-se com os praticantes. Nas paredes da área de recepção, há um mural com

77 informações e notícias de jornal relacionadas à equoterapia, além de um pôster de homenagem ao cavalo Vagalhão, cujo texto é dedicado e assinado pela terapeuta Marina. Outros dois cartazes de papel, feitos por uma praticante da Hípica, tratavam das raças (como “Anglo-árabe”, “Andaluz”, “Crioulo”, dentre outras) e cores dos cavalos (como “Alazão”, “Albino”, “Tostado”, “Branco”, e outras). Outra folha modelo A4, grudada na parede, ilustrava movimentos e exercícios de alongamentos do corpo humano.

Pendurados na plataforma, há dois pôsteres. Um deles é de uma ONG da cidade, chamada “Guarda Anjo”, fundada pela mãe de um dos praticantes, cujo objetivo (conforme descrito neste pôster) é oferecer amparo às famílias de pessoas com deficiência. No pôster, além da mensagem da ONG, havia também fotografias de eventos e atividades sociais, como sala de aula, pet terapia59 e equoterapia na hípica. No outro pôster, por sua vez, constam algumas fotos da praticante Isabela, em cadeira de rodas, e um trecho do poema “Deficiências”, de autoria de Renata Vilella (mas erroneamente creditado ao poeta Mário Quintana, inclusive no cartaz em questão)60.

Em cada entrada e saída dos galpões há grandes placas com a seguinte mensagem: “Não

corra, não faça barulho, não alimente os animais, não fume, mantenha distância mínima de 2m”.

Chaminés finalizam o teto destes galpões, tampadas com uma espécie de tela. Antigamente, estes prédios cumpriam outra função, relacionada com a criação de gado, segundo informações de Marina.

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A pet terapia é uma modalidade de zooterapia ou Terapia Assistida por Animais (TAA), também chamada de cinoterapia, por se valer de cães em seus objetivos terapêuticos.

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O trecho em questão é o seguinte:

"Deficiente" é aquele que não consegue modificar sua vida, aceitando as imposições de outras pessoas ou da sociedade em que vive, sem ter consciência de que é dono do seu destino.

"Louco" é quem não procura ser feliz com o que possui.

"Cego" é aquele que não vê seu próximo morrer de frio, de fome, de miséria, e só tem olhos para seus míseros problemas e pequenas dores.

"Surdo" é aquele que não tem tempo de ouvir um desabafo de um amigo, ou o apelo de um irmão. Pois está sempre apressado para o trabalho e quer garantir seus tostões no fim do mês.

"Mudo" é aquele que não consegue falar o que sente e se esconde por trás da máscara da hipocrisia. "Paralítico" é quem não consegue andar na direção daqueles que precisam de sua ajuda.

78 Ainda na área de recepção, encontro um bebedouro, extintor de incêndio, um arranjo de plantas disposto em um vaso, galochas de plástico brancas, recipiente de água para os gatos que por ali circulam, um cavalinho de madeira de balanço, usado pelos praticantes mais novos, logo à frente do banco onde os familiares se sentam; uma mesinha onde se disponibilizam garrafa térmica de café, pote com bolachas e, ao lado deste, adoçante e açucareiro, além do álcool em gel para a limpeza das mãos; destes, serviam-se todos os atores humanos que ali frequentavam.

Fantoches de animais, carros de brinquedo, ursos de pelúcia, bonecas de pano, bolas de borracha, dentre outros brinquedos, ficam dispostos nas prateleiras de uma estante, dentro da salinha anexa à área de recepção. Na parede desta sala, há uma cabideira com cabrestos, rédeas, e

chicotinhos suspensos. Esta salinha dá acesso à cozinha e ao banheiro, utilizados pelos funcionários

da Hípica, além de contar com um pequeno corredor que se conecta ao outro galpão, utilizado para os cavalos e funcionários das aulas de equitação.

As áreas utilizadas nas sessões de equoterapia variavam. Como vimos na sessão com a praticante Jéssica, descrita na Introdução, o galpão, ele mesmo, poderia ser usado, mas apenas em caso de chuvas (o que, no entanto, como disse a terapeuta, era um tanto entediante, para o praticante e para o cavalo e, imagino, também para ela). Já as áreas externas consistiam em: pista de areia (pista de equitação), pista de terra (redondel), pista de grama e trilha do bosque, além de caminhadas livres ao redor das mesmas, pelo asfalto ou grama. Algumas sessões também incluíam idas aos piquetes dos cavalos61− suas casas, e também onde a turma dos cavalos ficava reunida − ou então ao local denominado pelos interlocutores de floresta. Todas as pistas eram delimitadas com cercas de madeira ou arame. Podia acontecer que algumas destas áreas fossem utilizadas também por professores e alunos da equitação (e por isso, vez ou outra, cavalos da equoterapia e da

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Caso de uma praticante com obesidade infantil, cuja montaria foi suspensa pela equipe devido ao excesso de peso da garota que, segundo informações da terapeuta, estava prejudicando fisicamente o cavalo. Neste caso, as sessões com a praticante deram ênfase às práticas de cuidado com o cavalo, como dar banho, e caminhadas aos piquetes dos cavalos.

79 equitação se cruzavam, e o mesmo podia ocorrer com os praticantes e alunos).

Durante as sessões, os pais das crianças geralmente aguardavam nas adjacências da Hípica. Alguns familiares permaneciam sentados no banco no interior do galpão, outros aguardavam dentro de seu carro, ou então aproveitavam o tempo para caminhar ou correr pelas redondezas. Outros, ainda, optavam por acompanhar a sessão, presencialmente.

Após a descrição do local de pesquisa, oportuna na medida em que ilustra o fundamento material da equoterapia, tais como as pistas utilizadas, a área de pasto, galpões, equipamentos, além dos objetos e alimentos oferecidos aos cavalos, praticantes e familiares de praticantes, prosseguiremos com a apresentação dos atores presentes neste trabalho (praticantes, cavalos, terapeutas, auxiliares-guia e familiares), e algumas narrativas a seu respeito. Pretende-se, com estes dados mais descritivos e etnográficos, lançar as bases para a reflexão sobre quem são os praticantes, do ponto de vista de seus familiares e terapeutas, e como eles aparecem em termos da definição de sua pessoa, isto é, como eles são referidos de acordo com seu comportamento e seus corpos. E, separando para fins analíticos, mas, ressaltemos aqui, com a pretensão de examinar de que modo estas definições caminham juntas, mostraremos também de que modo os cavalos são classificados e agrupados segundo características de porte, tamanho, e temperamento, para discutirmos, posteriormente, as bases para a associação de praticantes e cavalos nesta terapia.

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