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O chamado sutinga: “Esse dá um trabalho da

3. REFLEXÕES SOBRE CORPO SEM TRABALHO

3.3. Corpos em trabalho

3.3.2. O chamado sutinga: “Esse dá um trabalho da

A condição do clima local (que majoritariamente é quente durante praticamente todo o dia, com exceção das noites) a faixa etária (44 a 72 anos) dessas mulheres que sambam e as longas jornadas de ida e volta para maré são elementos que interferem no corpo das mulheres que sambam. Cecé diz: “Na hora de trazer o que a gente pesca, por que pesa, todo mundo já... com a perna ruim” (CECÉ, 2019). A reunião dessas informações, me faze perceber quão árduo é a resistência dessas mulheres a partir da vida que levam no trabalho nas marés próximas das redondezas.

Não fosse isso, fico sabendo que o preço que elas vendem o que pescam é irrisório dada as questões apontadas no parágrafo anterior. E isso ganha mais potência quando tomo conhecimento de um marisco muito comum na região, que se caracteriza como uma das figuras centrais da pesca dentro do povoado por aparecer em grande quantidade nas marés em torno da Mussuca. É o chamado sutinga!

Imaginemos essas mulheres indo para a labuta diária em busca do pescado ainda leves de peso. Depois de no mínimo 40 minutos de caminhada rápida por uma geografia nada plana, elas chegam na maré. Depois da pesca, elas vêm carregadas para casa retornando todo o caminho da ida com peso na cabeça e, assim que chegam, lavam todo o sutinga pescado, para tirar a lama. Depois de lavado, o marisco é posto em uma panela com água para ferver, o que facilita a abertura do marisco. No seu interior fica uma carne de aparência amarelada que é a parte vendida. Depois de todo esse processo que leva em média um turno inteiro (a depender da quantidade pescada) o volume do material pescado diminui para bem menos que a metade. Maria Lúcia me informa que:

se você tirar sutinga, você tira um saco (se referindo a uma ida na maré). Daquele saco você vai tirar quase cinco quilos. Aí se você tira cinco quilos daquele trabalho todo. Por que é um trabalho, né? Que é: pescar, trazer na cabeça, lavar, cozinhar, depenicar e sair pra vender... As mulheres tiram a cinco quilos. Cinquenta reais tudo isso. Repare? Trabalhoso, não? (MARIA LÚCIA, 2019).

Figura 32: Preparo do sutinga para venda. Foto: Jonathan Rodrigues

Têca também ressalta sobre o quanto é trabalhoso se sustentar com a venda de sutinga pelo retorno financeiro que não compensa. Em seu relato ela também me diz que no período do inverno o sutinga, assim como a ostra e o camarão, deixam de aparecer por conta da forte correnteza da água doce.

Essas meninas trabalhando assim nesse sutinga, trabalha demais é muito pesado pra vender. É por que tem muito e agora no inverno ele acaba. (...) Vende barato! Se pelo menos fosse assim de R$15,00

dava. Mas R$10,00 um quilo não vale a pena. [...]Quando chove muito o que a gente mais pega morre. É o sururu e a ostra. E o sutinga que quando a água doce bate em cima ele acaba. E o camarão também que falta, né? (TÊCA, 2019).

No relato a seguir conseguimos ter acesso a um diálogo entre três sambadeiras que nos dá uma maior dimensão referente à dinâmica mercantil que estão inseridas e que também nos deixa a par das condições econômicas nas quais vivem essas mulheres.

POPÓIA: O sustento pra família. Cinquenta reais! BÁIA: Quando vende. Quando não vende, não dá. MARIA LÚCIA: É muito barato.

BÁIA: Vai fazer o que? O povo sem dinheiro!

POPÓIA: A gente pede 12 reais, o povo não quer dar. (...) O pessoal diz: ‘Como é o quilo?”. A gente diz: ‘É 12 reais’. ‘Eu...! Alí tem de dez...”. Aí tem que vender por dez também.

Figura 33: Sutinga sendo depinicado. Foto: Jonathan Rodrigues

Esse é um costume que muitos de nós temos quando vamos comprar alimentos que são vendidos de forma autônoma (muitas vezes pelas mãos de quem teve o trabalho de pescar). Mas essa não é a mesma dinâmica quando vamos á algum estabelecimento comprar alimento. Não conheço ninguém que pechinche o preço de um camarão ensacado dentro do supermercado.

A realidade história desse corpo que trabalha na maré, atravessado por essa dinâmica mercantil, me lembra, por vezes, uma reflexão de Achille Mbembe em seu livro Crítica da Razão Negra, onde ele afirma que

desde logo, os riscos sistemáticos aos quais os escravos negros foram expostos durante o primeiro capitalismo constituem agora, se não a norma, pelo menos o quinhão de todas as humanidades subalternas (MBEMBE, 2014, p. 15-16).

Saber sobre as condições de trabalho que envolvem esses corpos nos dias de hoje, me faz enxergar o Samba de Pareia com outros olhos. Emancipado pela realidade existencial dessas mulheres no território mussuquense, minha cabeça se volta para todo passado de sofrimento pelo qual o corpo negro foi atravessado no período da escravidão. Momento que me mostra como esse período se re- configurou na atualidade. O que, para mim, dialogo com um relato de Ângela Davis em seu livro Mulheres, Raça e Classe:

o enorme espaço que o trabalho ocupa hoje na vida das mulheres negras reproduz um padrão estabelecido durante os primeiros anos da escravidão. Como escravas, essas mulheres tinham todos os outros aspectos da sua existência ofuscados pelo trabalho compulsório (DAVIS, 2016, p. 17).

Digo isso por considerar a quantidade de tempo que essas mulheres gastam com a dinâmica da pesca, muito movidas, não pela ação do chicote como medida punitiva e impositiva ao labor, mas sim com o receio da chegada da miséria (fome, mais necessidade do que já passam, desemprego...) que para o contexto de trabalho desse corpo, é entendido por mim como o novo chicote.

A relação escravista que faço com a realidade dessas mulheres em momento de trabalho na maré, está atrelada a perspectiva de Jessé Souza que aponta a escravidão constituída no Brasil como a base para que compreendamos singularmente a realidade social e cultural brasileira.

Foram os interesses organicamente articulados à escravidão que permitiram a manutenção da unidade do vasto território brasileiro e foi também a escravidão que determinou, inclusive, o modo de vida peculiar do homem livre no Brasil (SOUZA, 2018, p. 155).

Acredito que a escolha por trabalhar na maré, dentro dessa realidade apresentada a mim pelas próprias mulheres do samba, não é uma escolha livre. Essa dinâmica aponta que elas estão forçadamente inseridas em uma estrutura social que subalterniza seus corpos transformando-os em objeto de trabalho.

As reflexões contidas nos parágrafos anteriores ganham ainda mais potência quando procuro saber sobre outras dificuldades que esse corpo enfrenta na rotina de trabalho dentro da maré.