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4. OS SAMBAS DE PAREIA NARRADOS PELOS

4.4. Samba de visita

4.4.1. Visita com figurino

Diferente do Samba apresentado no palco, o Samba de 15 dias é o momento em que a comunidade e demais participantes tem passagem livre para ocuparem espaços diversos dentro da festa. Desde uma apreciação mais passiva, observando a roda e bebendo a meladinha ao balanço que o samba dá no corpo, mesmo sem estarem propriamente sambando, mas mexendo o corpo de forma mais aleatória sem perder de vista o desenrolar da festa. Até as pessoas que se juntam em par e se jogam na roda cantando e sambando de pareia. É festa da boa, animada, onde todos participam, basta querer. Como diz Leninha: “Samba de Visita é muito bom, menino. É muito animador. Anima todo mundo. Quem tá em pé vai, entra na roda pra sambar com a gente também” (LENINHA, 2019).

Figura 53: Samba na comunidade. Foto: Leonardo Maia

Durante essa celebração a roda está livre. Segundo Ilza, “Pode entrar quem quiser pra sambar”. Não precisa fazer parte do grupo para estar dentro da roda trocando de par e girando. Entra “Quem é do samba e quem não é. Todo mundo vai” (LENINHA, 2019). É o que também nos aponta a pesquisadora Alexandra Dumas:

quando o samba acontece pela celebração de um nascimento, a espontaneidade e informalidade do figurino dão a tônica, o que faz com que cada pessoa utilize o que melhor lhe convém (DUMAS, 2016, p. 61).

Para entrar na roda, primeiro você precisa ter uma pareia. Não dá pra sambar sozinho na roda. Vez ou outra você vê um indivíduo puxar o outro que acabou se distraindo nas horas das trocas. “Não pode perder o passo”. Sempre tem um ajudando o outro. A irmandade também se aplica nesses momentos!

Uma vez, percebi o Samba de Visita sendo realizado com as mulheres do grupo com seus respectivos figurinos de apresentação. Nunca antes fiquei sabendo de notícias sobre essa prática. Ao investigar, descobri que a utilização da indumentária estava associada ao desejo, por conta da família da criança, em ter o grupo Samba de Pareia, caracterizado, na Meladinha.

Figura 54: ‘Visita’ com figurino. Foto: Adalcy Santos

Por parte das integrantes, esse elemento também opera como uma distinção entre a representação do Samba de Pareia em eventos culturais e o Samba em comemoração ao nascimento da criança no povoado. No segundo caso, a intenção é que todos que estejam na festa possam participar de forma mais livre. Inclusive a roda é aberta pra quem tiver um par e quiser se jogar na circularidade.

O figurino é uma característica do samba nos palcos, onde se estabelece uma distinção entre o grupo e a plateia. Porque, segundo Nadir, “no palco quem vai só é a pessoa que participa do grupo pra fazer representação e na meladinha é todo mundo. É a comunidade toda” (NADIR, 2019). Essa última afirmação é narrada por Nadir, mas está presente também em depoimentos de outras integrantes.

O Samba de Visita é diferente por que? Por que samba todo mundo. Todos que chega, samba. E o grupo não. Se a gente tiver apresentando no palco. A gente vai, você, você, você, fulano, sicrano... Aquela ruma de gente vai sambar ali? Não, né? (LENINHA, 2019).

Quando ocorrem as apresentações do grupo, o figurino e os adereços usados pelas integrantes são elementos fundamentais para a realização das apresentações. Caracterizadas com vestido de chita, chapéu de palha decorado com flores artificiais, colares e brincos e o tamanco de madeira, as mulheres se consideram

prontas para apresentarem o samba nos palcos fora da Mussuca. Já na comunidade, existe uma liberdade, na maioria das vezes, em se usar a roupa que convier para cada integrante e consequentemente para qualquer pessoa que queria participar da festa.

Quando a gente vai apresentar fora é a caráter. Todas caracterizadas. Todas as indumentárias e adereços. E na ‘Visita’ de quinze dias não. Uso de roupa normal e não é só as pessoa do grupo Samba de Pareia que participam é a comunidade inteira (CECÉ, 2019).

Fui saber com Luzia se para ela havia alguma preferência em relação à utilização ou não do figurino nas ‘Visitas’. E para ela, o melhor mesmo é: “Sem figurino. Pra brincar assim a ‘Visita’ é sem figurino” (LUZIA, 2019). Ao mesmo passo que escuto essa resposta, fico com uma dúvida em relação a essa preferência que, inclusive se emparelha com a opinião de Cecé, que me explica qual a interferência que a indumentária provoca no samba feito dentro da comunidade.

Por que se a gente for a caráter as pessoas não querem entrar. A comunidade não querem participar do samba. E só que a gente só sambe. Mas não é assim. A meladinha dos quinze dias tem que ser a comunidade (CECÉ, 2019).

Possivelmente, a apresentação do Samba, para algumas famílias, deva ter tanta importância quanto à celebração em si. Quando o grupo Samba de Pareia é convidado a participar da ‘Visita’ com a indumentária e adereços das apresentações externas, a lógica espetacular, que distancia plateia e cena, também se insere dentro da comunidade estimulando uma distinção entre os participantes da festa, o que se choca com uma função que ao longo dos tempos também foi atribuída ao Samba de ‘Visita’, como uma potência de aquilombamento e fortalecimento da comunidade unida e horizontalizada. É o que, ao meu ver, torna o samba um forte rito festivo em comemoração à vida dentro povoado. O que está para além do espetáculo.

Uma vez fui informado por Ilza, que o costume de chamar o Samba de Apresentação devidamente caracterizado, está associado a uma necessidade também de registro por parte da mãe, aproveitando a oportunidade para tirar fotos por gostarem muito do Samba de Pareia com sua ‘farda’, como diz Elisa.

Quando a gente vai com a roupa do folclório, tem vez que a mãe que chama que pra tá tirando a foto. Por isso que nós vamos assim. Esse povo daí é muito gamado pelo Samba de Pareia. (...) E quando tem alguma coisa que chama pra ir, aí é pra ir fardada. (...) Gardênia teve o menino e pediu o Samba de Pareia e mandou a gente ir com a farda. Aí a gente foi (ELISA, 2019).

Minha reflexão se volta para a concepção do Samba como Apresentação e o quanto isso interfere dentro da comunidade, causando um olhar de exotificação por parte dos próprios moradores do povoado para seus costumes. Hábitos que ressaltam elementos vinculados à concepção do espetáculo, que abrem pouca margem para a organicidade que se propõe a celebração em seu misto de festa, compartilhamento de saberes... Eugênia acentua isso como um problema, se reportando especificamente a uma ‘Visita’ que aconteceu no fim do ano de 2018 onde afirma que o grupo Samba de Pareia foi caracterizado e:

a maioria do povo tudo né, foi pra ficar assistindo. Não é aquilo. É pra entrar na roda pra brincar. É pra gente sambar. E o povo fica assim. Por que achou que era o Samba de Pareia que devia estar sambando. Não é o samba de pareia. A ‘Visita’ é feita para todos que queira brincar. (...) Chama pra ir vestida com Samba de Pareia. E quando a gente vai assim como teve ali no Cedro. A gente fomos com o vestido e quando chega lá, o povo tudo de porta olhando por que... ‘Não. A gente não vai brincar, não. Chamou foi o Samba de Pareia pra brincar.’ Não pode acontecer isso. Até eu dizendo assim:

‘Olha Cecé, já que é assim, quando as pessoa chamar, que é ‘Visita’, que não tem nada a ver. Nós não estamos ganhando pra isso. No estamos por amor. A gente fala pra eles. - Ói a gente num vem de veste, não. Por que se a gente vim fardado o povo vai achar que não pode brincar. Então a gente vem assim mesmo, à paisana.’” (EUGÊNIA, 2019).

Existem algumas aproximações entre o Samba de Pareia que acontece para comemorar o nascimento de uma criança e o samba que é apresentado fora da comunidade. A parte musical (tantos as letras quanto o ritmo), o formato da roda e o sapateado, são elementos que se repetem com limitações de tempo e espaços diferentes de uma prática para outra.

O samba realizado nas tardes de domingo segue o fluxo da roda, sem um horário específico para finalizar, sempre encaminhando a sua conclusão entre 19 e 20 horas. Mesmo com um número menor de pessoas que no começo, quando o horário se aproxima das 19 horas, já se percebe o movimento de algumas pessoas se organizando para irem às suas casas descansar, porém não existe uma demarcação de fim. Sempre ficam algumas pessoas ainda bebendo, festejando, tocando os instrumentos e dançando músicas variadas. Um ciclo se dissipa aos poucos sem um mandato específico por conta de outra atividade, ou de alguém com autoridade maior. Havendo até situações onde pessoas continuam a comemoração em outros espaços que não só o da festa em respeito à família com a criança recém- nascida.

Nas festas de celebração do samba na Mussuca percebe-se uma espécie de singularidade que caracteriza esse evento, assim como uma espécie de consciência da sua efemeridade por parte do espectador. Estar no samba evoca uma ancestralidade assimilada pela leveza do tempo que se presentifica no evento com previsão de finitude consciente. Além dessas características que perpassam a percepção dessa manifestação espetacular percebe-se um paradoxo: A consciência da sua extensão temporal vinda do passado por uma probabilidade de existência no futuro seja em sensações, seja em memórias está sempre aliada a um estado de convicção do tempo de duração, com previsão do término daquele momento espetacular (DUMAS, 2016, p. 50).

O samba apresentado nos palcos tem um período que varia entre 40 minutos a 1 hora sem a participação direta do público na roda e com limites temporais para começar e terminar. Às vezes, muito por conta do restante da programação do evento que o grupo participa onde divide espaço com outras atrações. É geralmente

em palcos ou espaços criados especificamente para que os diversos corpos se disponham como plateia (lugar de quem assiste) e lugar da apresentação, onde o Samba de Pareia realiza a sua função fora dos ritos de nascimento.

Na comunidade os espaços para a festa são os mais diversos, sendo realizada desde em áreas com o chão cimentado e a própria rua, até em chão de terra batida, onde, vez ou outra alguém aparece jogando água no espaço para baixar a poeira levantada durante a efervescência dos pés. Inclusive, nas apresentações na Mussuca é rara a presença dos tamancos nos pés das integrantes, elemento indispensável nas apresentações no palco. Sempre optam por usarem o que fica mais confortável e que aguenta o impacto que o corpo dá no atrito da madeira com o chão.

Figura 56: ‘Visita’ em diversos espaços. Foto: Leonardo Maia

Dentro da Mussuca o Samba ganha ares de liberdade para o seu desenrolar. Existem algumas regras como a dinâmica da roda que precisa ser respeitada para um melhor desempenho do grupo todo, onde é preciso ter cuidado com as trocas, o sapateado e o ritmo, para não comprometer a fluidez da circularidade, por exemplo. Mas a organicidade permite estar naquele tempo e espaço de forma horizontal com todos os participantes da festa, celebrando a chegada de mais um parente.

Às vezes, dependendo do envolvimento do(a) espectador (a) com a comunidade, pode até acontecer um convite para puxar uma rima no microfone. Como foi meu caso, onde preferi me manter como participante da roda, tamanha a reponsabilidade da qual ainda me acho pouco competente.

Sabe-se que esse convite está associado a uma relação de circularidade que agrega os indivíduos envolvidos na celebração (saber orgânico) envolvendo quem faz e quem assiste numa possibilidade de pertencimento comum. Podemos localizar exemplos de festividades afro-brasileiras que se organizam com o propósito de diluir essa fronteira entre o espetáculo e a sua plateia. “O samba é assim, a capoeira é assim, o batuque é assim. Tudo que nós pensamos, cabe todo mundo, e de forma integrada” (BISPO, 2019). O que é diferente das relações que se estabelecem a partir de uma perspectiva segmentada, sintética (BISPO, 2019).

A ‘Visita’ está sujeita a um compromisso que envolve mais membros da comunidade e não só as integrantes do Samba de Apresentação. É uma celebração que depende de um aquilombamento composto: pelo desejo de realização da ‘Visita’ legitimada através da confirmação da mãe, pela presença do grupo Samba de Pareia com a sua responsabilidade de realizar esse rito com roda, música, dança e cachaça, e o comparecimento das(os) sambadoras(es) para somar e fortalecer a celebração de mais um membro do quilombo. A festa como um todo reforça o sentido de união para essas pessoas.

A liberdade dentro da ‘Visita’ também acontece no momento em que a roda ganha outras proporções e configurações. Enquanto lia a dissertação da pesquisadora Edeise Gomes, fiquei sabendo de outras disposições dos corpos no formato da roda, que não se resumiam somente a disposição das pessoas em circunferência sambando em sentido anti-horário. Algo que mais tarde tive acesso nas vezes que presenciei a celebração. A dançarina e pesquisadora, inclusive, fez a relação desse Samba com a chula, por exemplo, que em sua narração, “lembram o samba de roda baiano, na qual, aleatoriamente, um a um vai para o centro da roda” (SANTOS, 2017, p. 53).

As variações são reais, não só por que li e vivenciei. Uma vez Eugênia me falou sobre essas variações onde também se incorporam improvisações com o reisado59. A festa da ‘Meladinha’ não acontece exclusivamente para tocar e dançar o Samba de Pareia. Outros tipos de sapateados também podem ser inseridos no decorrer da festa. Como afirma Eugenia,

59 Celebração festiva-religiosa que, em muitos casos, é caracterizada pela disputa de dois “cordões”

(o azul e o encarnado), orientada pelas “figuras” de “Seu Mateus” e “Dona Deusa”. Muitas vezes, essa disputa é marcada por um sapateado intenso.

A gente tá brincando e não é só o Samba de Pareia que pode se brincar, a gente também coloca o reisado, tá entendendo? E coloca um sapatiadozinho, uma coisa assim... A gente inventa aquilo ali na hora. É isso. Esse sambado que entra e que sai, né? É do samba mesmo, que tem uma música, né, que a gente samba pra frente e depois vira as costa pra dentro da roda e faz para o público (EUGÊNIA, 2019).