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2.4 O ecossistema das evidências em saúde

2.4.1 O ciclo das evidências: da criação à aplicação

Pattani e Straus (2019) apontam que, se aplicada corretamente, a SBE tem o potencial para ser um equalizador dos cuidados em saúde ofertados nas diferentes partes do mundo. O desenvolvimento de ciência e de evidências para combater a pandemia de COVID-19 atesta tal percepção.

A pandemia do COVID-19 também enfatizou a importância do uso rápido das melhores evidências científicas disponíveis para orientar governos e profissionais em sua resposta a emergências. Para alcançar resultados ainda melhores no futuro, precisamos otimizar ainda mais nosso trabalho em todo o ecossistema de evidências e garantir que os tomadores de decisão estejam equipados para navegar em uma infinidade de evidências parcialmente sobrepostas e orientação de qualidade variável (SWAMINATHAN, 2022, grifo nosso).

A noção de ecossistema de evidências foi desenvolvida por Stewart et al. (2019, p. 2-3) e pode ser conceituado como “um sistema que reflete as ligações e interações formais e informais entre diferentes atores (e suas capacidades e recursos) envolvidos na produção, tradução e uso de evidências”. De acordo com a World Health Organization (2022, p. 9) o ecossistema de evidências “pode ser pensado como a sobreposição entre dois sistemas distintos;

ou seja, o sistema de pesquisa e o sistema de suporte de evidências. O primeiro é focado em todos os tipos de pesquisa, incluindo pesquisa biomédica e teórica”. Assim, o sistema de suporte de evidências “está focado em todos os tipos de atividades que aproveitam as evidências resultantes desta atividade de pesquisa para apoiar a tomada de decisões por formuladores de políticas governamentais, líderes organizacionais, profissionais e cidadãos” (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2022, p. 9).

O processo de trabalho com evidências é composto por dois componentes distintos:

a) criação de evidências: “representada como um funil, passando de um número esmagador de estudos primários ou dados de qualidade variável para uma embalagem mais concisa, clara e fácil de usar das evidências de pesquisa”, como, por exemplo, as diretrizes, recomendações, resumos de evidências, avaliações de tecnologia em saúde, etc. (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2022, p. 9).

b) aplicação de evidências: “representada por meio do ciclo de política/ação, delineando as etapas necessárias para que as evidências sejam aplicadas na política ou na prática”

(WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2022, p. 9).

O Quadro 2 apresenta uma visão geral dos diferentes tipos de evidências científicas em saúde:

Quadro 2 – Visão geral dos diferentes tipos de evidências que são utilizadas para subsidiar decisões em saúde

Tipo de evidência Conceito

Evidência científica (codificada)

Produzida por meio de processos de pesquisa formais e rigorosos de padrões metodológicos, tornando-o explícito, sistemático e replicável.

Evidência tácita (coloquial)

Geralmente inclui opiniões, experiência, lições aprendidas, tradição organizacional de formuladores de políticas, médicos, pacientes ou cidadãos e ajuda a contextualizar e interpretar melhor as evidências científicas.

Evidências globais

Reúnem as melhores descobertas disponíveis sobre uma temática específica ou questão de saúde de todo o mundo, por exemplo, por meio de uma revisão sistemática ou uma diretriz estabelecida e informada por evidências.

Evidência local

Leva em consideração fatores modificadores em ambientes específicos, por exemplo, por meio de um estudo primário ou dados de monitoramento dos programas de saúde.

Fonte: World Health Organization (2022, p. 7).

A partir das considerações teóricas apresentadas no Quadro 2, cabe salientar que as evidências não são mutuamente excludentes, isto é, há vários pontos de contato e sobreposição.

Por exemplo, “diferentes questões ou problemas de política exigem diferentes tipos de evidências, e podem existir opiniões diferentes sobre o que constitui a melhor evidência disponível para uma questão específica” (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2022, p. 7).

A compreensão macro do ecossistema das evidências em saúde implica o entendimento de que para além da correlação entre criação e aplicação de conhecimento científico, existem uma série de outros componentes subjacentes. Nesse sentido, cabe destacar o sistema de comunicação e publicação científica, do processo de indexação, busca e recuperação dos estudos, bem como dos aspectos relacionados à tradução/translação do conhecimento.

Um aspecto pouco explorado até aqui, mas que é central na aplicação das evidências em saúde é a tradução do conhecimento (knowledge translation). Pela definição da OMS, tradução do conhecimento é a

Troca, síntese e comunicação efetiva de resultados de pesquisas confiáveis e relevantes. O foco está em promovendo a interação entre os produtores e usuários da pesquisa, removendo as barreiras ao uso da pesquisa e adaptando a informação a diferentes públicos-alvo para que intervenções eficazes sejam usadas mais amplamente (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2022, p. 12).

Há diferentes modelos na literatura para conceituar e explicar como as evidências podem ser traduzidas para diferentes contextos de aplicação, como a formação de políticas, implementação de programas, avaliação de tecnologias, etc. Inclusive, no âmbito das ações da OMS, há uma rede para fomentar que as políticas em saúde sejam informadas por evidências (Evidence-Informed Policy Network – EVIPNet).

A partir de tais elementos, fica evidente que há diferentes fluxos de trabalho no ecossistema das evidências em saúde e que eles não podem ser simplificados na dualidade criação-aplicação. Ao contrário, da criação à aplicação de uma evidência, há um longo caminho a ser percorrido. É interesse notar que a marca do trabalho bibliotecário está implícita em diversas etapas do ciclo de criação, publicação e recuperação das evidências científicas.

De acordo com Swaminathan (2022), cientista chefe da OMS, no atual contexto da saúde pública global, há uma série de justificativas morais, socioeconômicos e políticos para aumentar o uso da evidência na tomada de decisões e formulação de políticas em saúde. Em síntese, a utilização das melhores evidências disponíveis pode resultar na melhoria da eficácia, eficiência e equidade das políticas e intervenções de saúde. Elas podem ainda melhorar o uso eficaz de recursos públicos (escassos em diversos contextos) e aumentar a transparência e a responsabilidade das políticas e intervenções (SWAMINATHAN, 2022).

Em termos conceituais, para a World Health Organization (2022, p. 9), a tomada de decisão informada por evidências enfatiza que

As decisões devem ser informadas pelas melhores evidências disponíveis da pesquisa, bem como outros fatores como contexto, opinião pública, equidade, viabilidade de implementação, acessibilidade, sustentabilidade e aceitabilidade para as partes interessadas. É uma abordagem sistemática e transparente que aplica métodos estruturados e replicáveis para identificar, avaliar e fazer uso de evidências em todos os processos de tomada de decisão, inclusive para implementação (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2022, p. 9).

Essa noção adere aos princípios de equidade, igualdade e responsabilidade (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2022). Embora a utilização das evidências não garanta resultados mais favoráveis, ela amplia de maneira expressiva as chances de acertos (CIOL;

BERAQUET, 2009) e, sobretudo, de mensuração de eficácia, efetividade e eficiência (ou pelo menos dos riscos em face dos benefícios em potencial). Por essa razão, a incorporação de evidências científicas para a tomada de decisão em saúde não fica circunscrita à prática clínica.

Elas também são balizadores na formação de políticas, na avaliação de tecnologias, na gestão dos serviços de saúde, nas avaliações econômicas, nas práticas de ensino, etc. (CENTRO

LATINO-AMERICANO E DO CARIBE DE INFORMAÇÃO EM CIÊNCIAS DA SAÚDE, 2018; PATTANI; STRAUS, 2019).

Apesar da relevância social das evidências em saúde, observa-se no contexto atual a ampliação dos cuidados de saúde através de outras estratégias terapêuticas, pautada nos saberes e práticas tradicionais (BADKE et al., 2012). Isso não significa dizer que tais práticas sejam desprovidas de fundamentos científicos. Ocorre, no entanto, que nem sempre os saberes e as práticas tradicionais são passíveis de apreensão sob a lente da ciência (BETTO; GLEISER;

FALCÃO, 2011).

Muitos fatores têm contribuído para esse processo de aplicação dos cuidados a partir de saberes tradicionais, tais como “o alto custo dos medicamentos industrializados, o difícil acesso da população à assistência médica, bem como a tendência ao uso de produtos de origem natural”

(BADKE et al., 2012, p. 364).

No Brasil, a abordagem de atenção à saúde através de terapias tradicionais e complementares é, inclusive, institucionalizada no Sistema Único de Saúde (SUS). A Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PNPIC) foi publicada pelo Ministério da Saúde através da Portaria n° 971, de 3 de maio de 2006, em observância às diretrizes da OMS.

As Práticas Integrativas e Complementares (PICS) “são tratamentos que utilizam recursos terapêuticos baseados em conhecimentos tradicionais, voltados para prevenir diversas doenças como depressão e hipertensão. Em alguns casos, também podem ser usadas como tratamentos paliativos em algumas doenças crônicas” (BRASIL, 2020). Fortes evidências “têm mostrado os benefícios do tratamento integrado entre Medicina convencional e práticas integrativas e complementares” (BRASIL, 2020). Além disso, “há crescente número de profissionais capacitados e habilitados e maior valorização dos conhecimentos tradicionais de onde se originam grande parte dessas práticas” (BRASIL, 2020).

O SUS oferece atualmente à população 29 procedimentos de PICS: Apiterapia;

Aromaterapia; Arteterapia; Ayurveda; Biodança; Bioenergética; Constelação familiar;

Cromoterapia; Dança circular; Geoterapia; Hipnoterapia; Homeopatia; Imposição de mãos;

Medicina antroposófica/antroposofia aplicada à saúde; Medicina Tradicional Chinesa – acupuntura; Meditação; Musicoterapia; Naturopatia; Osteopatia; Ozonioterapia; Plantas Medicinais – fitoterapia; Quiropraxia; Reflexoterapia; Reiki; Shantala; Terapia Comunitária Integrativa; Terapia de florais; Termalismo social/crenoterapia e Yoga (BRASIL, 2020).

É importante salientar que “as Práticas Integrativas e Complementares não substituem o tratamento tradicional. Elas são um adicional, um complemento no tratamento e indicadas por profissionais específicos conforme as necessidades de cada caso” (BRASIL, 2020).

Em resumo, a coexistência desses dois modelos de cuidados (baseado em evidências e aquele baseado nos saberes tradicionais) reforça que a noção positivista de ciência não é capaz de abarcar todos os saberes, conhecimentos e práticas relacionadas à saúde (CIOL;

BERAQUET, 2009).

Franca (2003), ao discutir os riscos da SBE, destaca que ela “tenta ‘clicherar’ o atendimento baseado unicamente em dados estatísticos, fugindo da avaliação da experiência pessoal e da capacidade de conduta do médico diante de cada caso”, ela desfaz o conceito de que “não existem doenças e sim doentes”. Deve-se atentar também para a sacralização do modelo de SBE em detrimento dos saberes tradicionais. Nesse sentido, Franca (2003) provoca reflexão ao apontar que as Ciências da Saúde

Não têm os rigores da exatidão matemática, nem se propõe a oferecer propostas exatas e uniformes. É ela a mais circunstancial das ciências, e o ato médico o mais condicional dos atos humanos. Por isso, o conhecimento médico nunca pode ser certo, mas apenas provável. Em Medicina – principalmente na clínica, porque é meramente arte -, o provável nunca é uma abstração, mas aquilo que está entre o possível e o real. Esta é a chamada “probabilidade objetiva”. A arte clínica é muito mais uma ordem do pensar do que do ser. Isto não faz o ato médico baseado na intenção menos importante do que aquele outro baseado na evidência (FRANCA, 2003).

Franca (2003) vai além ao afirmar que a própria noção de evidência,

Tal qual vem sendo colocada aqui, já se mostra inconsistente, pois se diz que algo é evidente quando prescinde de prova ou quando dispensa uma justificação. Evidente é o que se mostra notório. A evidência é inimiga da prova. Ela é a consagração da verdade. Assim, o importante é saber o que se pode considerar como “evidência” e quem a determina como “fato concreto”.

Por outro lado, dizer que evidência em Medicina são “dados e informações que comprovam achados e suportam opiniões”, não oferece a segurança que se espera.

Como qualificar uma Medicina que se diz evidente, racional e científica quando ela depende tão-só de percentuais levantados em dados estatísticos? E o que fazer, por exemplo, quando se sabe que há tópicos da Medicina prática para os quais não se conta com nenhuma evidência convincente?

Até podemos entender que muitas das decisões tomadas em epidemiologia clássica sejam baseadas em dados estatísticos, na tentativa de se criarem novas “evidências”

para a prática das ações em Medicina preventiva. Mas daí dizer que tal lógica deve conduzir e definir as questões de natureza clínica parece um exagero. Primeiro, a clínica trata das consequências e a epidemiologia das causas; depois, na clínica o centro do interesse está no prognóstico através da prevenção secundária e terciária e, na epidemiologia, nos fatores de risco na prevenção primária; e, por fim, a clínica baseia-se num raciocínio dedutivo (da doença para o caso concreto) e a epidemiologia num raciocínio indutivo (dos casos para a doença) evidência (FRANCA, 2003).

É preciso acrescentar ainda que

Um dos óbices à incorporação da Medicina baseada em evidências é a falta de condições de acesso às publicações tidas de qualidade e conceitos garantidos, que se multiplicam no mundo inteiro, e de análise crítica dos artigos e matérias de periódicos, quando o profissional não estaria em condições de elaborar suas próprias conclusões.

Ao lado disto, uma galopante e progressiva enxurrada de publicações de qualidade duvidosa, verdadeiro entulho científico, em que se impõem critérios em conceitos e condutas de importância relativa (FRANCA, 2003).

É preciso deixar claro que o exercício teórico de problematizar o uso das evidências, não tem o objetivo de colocar em xeque sua importância. A proposta, no entanto, é chamar a atenção para a coexistência de outros saberes e práticas que nem sempre são passíveis de serem lidos e interpretados através da lente científica, mas que em determinados contextos são tão importantes quanto àqueles oriundos da pesquisa científica.