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Capítulo I Woody Allen e a cidade de Nova York

1.2. O cinema de Woody Allen antes de Nova York

É comum encontrarmos na fortuna crítica de Woody Allen a observação acusatória de que ele repete continuamente os temas de seus filmes. Os mais radicais chegam a afirmar que o mesmo filme é refeito ano após ano. Obviamente, essa é uma observação grosseira e preguiçosa que não resiste a uma análise mais apurada, embora seja inegável a existência de certa coerência autoral em sua obra. Para esses críticos, a cidade de Nova York é o eixo norteador dessa obra. Porém, atualmente, com a base de sua filmografia estabelecida, é notável perceber que a sua cidade natal, embora figure como cenário em grande parte dos filmes, não é exatamente uma constante absoluta. Nesse sentido, o que mais se destaca é o fato de que, em seus primeiros seis filmes, Nova York, quando aparece, o faz de modo circunstancial. Não é, de forma alguma, destaque. Lembrando que, em casos como os dos cineastas Andrei Tarkovski e Terrence Malick, seis longas-metragens representam a totalidade da obra ou grande parte dela.

Passaremos a analisar, obra por obra, esses primeiros trabalhos. Longe de significar mera lista de comentários cinematográficos estanque ao discurso principal da tese, esse esforço coaduna com a necessidade de superação do que Fernão Pessoa Ramos, organizador do livro Teoria Contemporânea do Cinema, chama de ―império da franja do presente‖ (2005, p. 22) que ainda domina os estudos sobre cinema. Existem processos que precisam ser descritos e decodificados para que se chegue no sentido último do objeto de pesquisa. No caso em particular, essa análise cronológica mostra-se importante para estabelecermos de que forma a cidade de Nova York foi pouco a pouco sendo inserida em sua produção artística, desconstruindo o senso comum, geralmente reproduzido até mesmo na historiografia especializada, de que Woody Allen sempre foi sinônimo de Nova York.

O fato é que Allen, da mesma forma que muitos outros artistas americanos, após fazerem sucesso local ou em nichos com interesse definidos, rumam para a Califórnia, sede do show business, em busca de oportunidades de financiamento ou simplesmente de fama e fortuna. Depois de ganhar respeito em apresentações de stand up comedy em teatros, casas noturnas e apresentações na TV realizadas em Nova York e no circuito universitário norte- americano, ele buscou seu espaço profissional em Hollywood. Segundo o biógrafo Eric Lax, essa ―marcha para o Oeste‖ foi fruto de um plano estabelecido desde muito cedo em sua carreira. O então jovem comediante Woody Allen ―redigiu uma lista daquilo que almejava para sua carreira, que terminava como escritor e diretor de filmes dramáticos originais. (...) O

que parecia ser o melhor caminho era, primeiro, obter uma reputação; depois, escrever roteiros para outros dirigirem; e, por fim, ele mesmo redigir os roteiros e dirigir seus próprios filmes‖ (Lax, 1991, p. 184).

O primeiro filme em que Woody Allen teve participação foi O que há, gatinha?, lançado em 1965, com direção de Clive Donner. Trata-se de um exemplar do que se convencionou chamar em Hollywood de ―comédia maluca‖, ou seja, uma narrativa cômica em que elementos inusitados ou sem sentido lógico são introduzidos em meio a um enredo relativamente coerente, com começo, meio e fim. O estilo ―comédia maluca‖, originalmente ―screwball comedy‖, foi batizado a partir da expressão relacionada ao beisebol ―screwball‖ que seria uma jogada na qual a bola gira ao contrário do normal, enganando o adversário. Os maiores clássicos do gênero são Aconteceu Naquela Noite, de 1934, dirigido por Frank Capra, e A Levada da Breca, de 1938, dirigido por Howard Hawks, e estrelada por Katherine Hepburn e Cary Grant.

Woody Allen foi inicialmente contratado como roteirista do filme. Os produtores, após assistirem a uma de suas apresentações ao vivo e ficarem impressionados com o ritmo e a inteligência de suas piadas, desejavam testá-lo escrevendo para cinema. Com o desenvolvimento do projeto, Allen acabou escrevendo um pequeno papel para si mesmo. O elenco de O que há, gatinha? era estelar, composto por Peter O‘Toole, que havia ficado famoso interpretando Lawrence da Arábia, Peter Sellers, considerado então um dos maiores comediantes da indústria, a diva Romy Schneider e a mais célebre bond girl Ursula Andress.

Inicialmente não havia muitas pretensões para o filme:

O que há, gatinha? foi lançado em dois cinemas nova-iorquinos para uma

temporada de seis meses, mas o público adorou o filme e a propaganda boca a boca fez com que as pessoas enchessem os cinemas (...). Mais surpreendente que o dinheiro, porém, foi a atenção dada a Woody. As pessoas que adoraram o filme gostavam de o prestigiar pelo roteiro, muito embora ele preferisse recusar tal prestígio (Lax, 1991, p. 223).

A recusa se dava porque, aparentemente, o roteiro original foi muito modificado pelo diretor e produtores, sobretudo visando atender às exigências de Peter Sellers, que sentia que seu personagem estava sendo obscurecido pelo charme do galã Peter O‘Toole. O ator, produtor e diretor Warren Beatty, que inicialmente estrelaria o filme, contou ao pesquisador de cinema Peter Biskind que ―Woody ficou muito desapontado com o resultado do filme‖, Beatty acrescentou: ―E eu estava ainda mais triste, porque eu teria me tornado um homem rico com ele. Depois daquele episódio, Woody tomou cuidado para sempre ter o controle de

qualquer projeto que fizesse. E eu também‖ (Biskind, 2009, p. 26). Em entrevista para Stig Björkman, o próprio Allen confirma que ―transformaram-no num filme que me deixou muito infeliz. Não gostei de jeito nenhum, e jurei, naquela época, que nunca mais escreveria outro roteiro a não ser que eu fosse o diretor do filme‖ (s/d. p. 24).

Apesar do descontentamento, o sucesso popular do filme possibilitou que Woody Allen entrasse na indústria do entretenimento. Escreveu uma peça intitulada Don’t Drink The Water, que seria filmada em 1969 com direção de Howard Morris, tendo como título brasileiro Quase um Sequestro Aéreo. Começou a escrever contos e artigos para a revista The New Yorker, algo que lhe deu prestígio, pois, como Allen lembra: ―fiquei muito emocionado quando publicaram os meus trabalhos por se tratar de uma revista literária de alto nível‖ (Björkman, s/d. p. 27 – 28).

Ao mesmo tempo, passou a ser convidado a participar de projetos de grande orçamento, tais como Cassino Royale, lançado em 1967, sendo uma das mais conturbadas produções da história do cinema. O longa-metragem teve diversos roteiristas e nada menos que cinco diretores creditados: Ken Hughes, John Huston, Val Guest, Robert Parrish e Joseph McGrath. Cassino Royale, filmado como mais uma ―comédia maluca‖, pretendia ser ao mesmo tempo uma adaptação do primeiro romance de espionagem de Ian Fleming, o criador de 007, e uma sátira aos filmes que faziam sucesso na época, tendo então Sean Connery como intérprete de James Bond. Desta vez o espião com ―licença para matar‖ foi vivido por David Niven, curiosamente uma das figuras que inspirou Fleming na criação do personagem. Woody Allen, de certa forma repetindo seu papel de gênio incompreendido e irrequieto de O que há, gatinha?, contra todas as expectativas, interpreta o vilão do filme, Jimmy Bond, também conhecido como Dr. Noah, sobrinho do protagonista. Seu plano maléfico é deliberadamente absurdo: complexado por não ser um sedutor irresistível como o tio, Jimmy Bond decide liberar um bacilo mortífero que afeta apenas homens com mais de um metro e sessenta de altura. Seu objetivo é se tornar o novo padrão de beleza máscula.

O filme em si, talvez pelos percalços de produção, não é muito competente em realizar sua proposta. Woody Allen, mesmo tendo poucos minutos em cena, é uma das poucas coisas que se salvam na tela. Apesar disso, raramente esse trabalho é citado por Allen em suas entrevistas e biografias autorizadas. Claramente o considerou apenas mais um passo para se consolidar como um nome viável e conhecido do público, buscando cacife para bancar seus projetos pessoais.

Foi o que aconteceu ainda em 1966, quando lançou seu primeiro filme como diretor, o experimental O Que Há, Tigresa?, também um filme de espionagem, mas com registro estético completamente diferente de Cassino Royale.

O jornalista, pesquisador e especialista na obra de Woody Allen, Marco Antônio Barbosa, editor do site Telhado de Vidro, produziu uma interessante lista comentada de todos os filmes dirigidos pelo cineasta. Nessa lista, Barbosa escreveu:

O Que Há, Tigresa? (What’sup Tiger Lily, 1966)

Confesso que não sabia qual era o título traduzido do primeiro filme ―dirigido‖ por Allen. Assisti-o em uma mostra no CCBB, em 1990, sem legendas. Como em todos os longas da fase inicial do diretor, a prioridade era manter um ritmo acelerado de piadas farsescas. Aqui, o estilo era levado às últimas consequências. Allen pegou dois filmes japoneses de espionagem, reeditou-os e botou uma dublagem por cima, transformando a trama numa história sem pé nem cabeça (em vez de um microfilme ultrassecreto os espiões brigam por uma receita de salada de ovos). A ideia sequer foi do cineasta. O estúdio AIP comprou os longas orientais com a intenção de lançá-los nos EUA, mas achou a história confusa demais; um executivo então sugeriu entregar tudo a Allen, que estava na crista da onda como roteirista e comediante. Menos um longa-metragem do que um experimento em nonsense, ainda tem a participação da banda riponga Lovin’ Spoonful, em cenas enxertadas sem a autorização do diretor (para esticar a duração do filme). Hoje é uma mera relíquia, um passatempo para completistas — e nem tão engraçado assim, se não me falha a memória depois quase 20 anos. (Barbosa, 2018)

Portanto, o primeiro filme dirigido por Woody Allen não apenas não se passa em Nova York como simplesmente não foi sequer filmado nos Estados Unidos, salvo em algumas poucas sequências em que Allen aparece na tela, fazendo o papel de um tipo de mestre de cerimônias, de certo modo explicando para o público seus objetivos com a experiência. O que Há, Tigresa?, até por sua proposta, não foi um sucesso popular, mas tampouco, considerando o orçamento baixíssimo, pode ser considerado um fracasso. Em todo caso, a próxima oportunidade de Woody Allen como diretor só viria três anos depois, com Um Assaltante Bem Trapalhão. Para Marco Antônio Barbosa:

Um Assaltante bem Trapalhão (Take the Money and Run, 1969)

Eis, afinal, a estreia de fato de Allen como diretor. Na mesma tacada, ele estabelece sua persona cinematográfica inicial — tímido, atrapalhado, autodepreciativo, caricatural e intrinsecamente judaico — e um modus operandi estilístico que seguiria, com variações, até 1977. Há pouco roteiro

per se. Em vez de uma história coerente, temos uma metralhadora de

esquetes com níveis variados de comicidade (minha piada favorita: ―Os prisioneiros tinham direito a uma refeição quente por dia: um prato de

vapor‖.) A fórmula de metadocumentário seria retomada, com muito mais brilhantismo, em ―Zelig‖ (Barbosa, 2018).

Novamente, não temos Nova York como locação, embora o enredo do filme estabeleça como cenário inicial a vizinha cidade de Nova Jersey, considerada por muitos nova-iorquinos como um subúrbio secundário. No decorrer do longa-metragem, o protagonista, interpretado por Allen, muda-se para diversos estados, como resultado de sua vida criminosa, mas nenhum recebe destaque. Portanto, o personagem é o centro da narrativa, não o lugar ou o simbolismo em torno do lugar onde o protagonista transita.

Não é o que acontece no filme seguinte dirigido por Allen, a comédia política Bananas. Em Bananas o lugar é importante, embora se atenha a um elemento estereotípico: uma república da América Central aleatória, trazendo como mensagem explícita de que todas são eventualmente iguais. Para Barbosa,

Bananas (Bananas, 1971)

Inspirado no (bom) livro ―Dom Quixote Americano‖, de Richard Powell, é o mais político dos filmes de Allen, junto ao mais metafórico ―Neblinas e Sombras‖. Claro que o confuso cenário ―revolucionário‖ na América Central só serve como pano de fundo para o humor anárquico. Em termos de ritmo e de piadas, é um retrocesso em comparação com ―Um Assaltante‖. Allen perde um pouco a mão na segunda metade (quando seu personagem retorna aos EUA). Irregular, mas exemplo importante de uma fase menos ―cabeça‖ e despretensiosa do cineasta (Barbosa, 2018).

Bananas possui duas características importantes dentro do conjunto da obra de Woody Allen. O primeiro é ser baseado em um livro. Em nenhum outro momento tal estratégia narrativa seria repetida, salvo de maneira bastante livre em Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo (Mas tinha medo de perguntar), (1972). Mesmo quando se inspirou em tradições literárias, como a russa, para escrever o roteiro de filmes tão dispares como A Última Noite de Boris Gruschenko, de 1975, Crimes e Pecados, de 1989, e Match Point, de 2005, em nenhum outro momento tratou-se de uma adaptação, mesmo que bastante modificada, da história original.

O segundo aspecto é que Bananas traria pela primeira vez a cidade de Nova York como cenário de seus filmes. Não há ainda destaque, certamente a história poderia se passar em outro lugar, Los Angeles ou Miami por exemplo, sem prejuízos para a narrativa, mas é inegável que uma certa visão de Nova York começou a ser esboçada ali. Temos presente a sociabilidade nova-iorquina marcada pela formalidade, assim como a competitividade profissional e alguns vestígios da crescente criminalidade. Esse aspecto se destaca sobretudo

em uma cena que se passa dentro do metrô, onde o personagem interpretado por Woody Allen confronta dois jovens valentões ítalo-americanos que estavam incomodando os passageiros. Um deles é vivido por Sylvester Stallone em começo de carreira. Os dois voltariam a trabalhar juntos gravando as vozes na animação Formiguinha Z, de 1998. A cena é construída a partir do humor físico, com expressivo acompanhamento musical, ao estilo das antigas comédias da década de 1950.

A cena do metrô chama atenção por apresentar uma Nova York não totalmente segura, mas, ao mesmo tempo, longe da cidade violenta que seu conterrâneo e contemporâneo Martin Scorsese consagraria nos anos seguintes. Os dois ítalo-americanos estão vestindo jaquetas pretas ao estilo de Marlon Brando em O Selvagem (1953), e com os cabelos cheios de brilhantina. Apesar de quererem parecer perigosos, certamente não são criminosos profissionais. Provavelmente, são jovens que saíram do Bronx, onde pertencem a famílias bastante rígidas, em busca de alguma aventura e emoção. São desagradáveis e inconvenientes com os passageiros, sobretudo com uma senhora idosa que chegam a confrontar fisicamente, gerando a reação do personagem de Woody Allen, mas não parecem dispostos a atos extremos. O que se torna evidente quando estão encarando de forma ameaçadora o protagonista. Em vez de atacá-lo, limitam-se a rosnar e fazer caretas. Sequer sacam o indefectível canivete, como seria de se esperar de um rebelde sem causa estilo década de 1950. Demoram-se tanto na intimidação que dão a chance para sua pretensa presa fugir sem maiores consequências, além de uma perseguição pelos vagões que mais lembra uma comédia-pastelão. Ou seja, a Nova York de Woody Allen, em sua primeira aparição de destaque, pode até esboçar situações violentas, mas elas jamais se concretizam.

Entre Bananas e seu trabalho seguinte na direção, Woody Allen atuou como ator e roteirista no filme Sonhos de um Sedutor, lançado em 1972, com direção de Herbert Ross. O longa-metragem é baseado em sua peça Play It Again, Sam, cujo título é uma homenagem à célebre frase de Humphrey Bogart pronunciada no clássico Casablanca, de 1942, um dos filmes preferidos de Allen. O escritor Gore Vidal (1987) defende, no artigo ―Quem faz o Cinema?‖, que o verdadeiro criador de um filme é o roteirista e não o diretor – numa postura de combate à chamada Política dos Autores desenvolvida pele crítica francesa, sobretudo na revista Cahiers du Cinéma, segundo a qual todo e qualquer filme possui a assinatura de seu diretor, não importando se é um gênio da cinematografia ou um medíocre funcionário dos estúdios. Considero a postura de Vidal, bem como a da Política dos Autores, excessivamente radical; seria necessário buscar um meio termo, ou mesmo analisar os filmes caso a caso. Seja

como for, o fato é que Sonhos de um Sedutor se passa inteiramente em Nova York, assim como na peça original, mas apesar da clara influência de Woody Allen na concepção e desenvolvimento do projeto, o registro primordial ainda pertence ao diretor Ross. Para ser justo, a Nova York que vemos na tela possui o espírito de Allen, mas foi registrada por Ross.

O filme seguinte de Allen, lançado no mesmo ano, foi o aclamado pela crítica Tudo o que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo (Mas Tinha Medo de Perguntar), uma coletânea de contos cômicos livremente inspirados no estudo científico sobre sexualidade do pesquisador David Reuben, publicado com o mesmo e longo título do filme. Não há no livro, que se tornou best-seller, uma narrativa em si. Toda a estrutura da obra está baseada em perguntas e respostas que se pretendem muito sérias e urgentes. É verdade que Reuben não intentava ser sisudo em suas colocações, embora genuinamente tivesse pretensões de fazer divulgação científica com o livro. Mas frases como ―em quase todos os pacientes, vejo um indivíduo que vive na Era Espacial e que deixou seus órgãos sexuais na Idade da Pedra (...) Um piloto de avião a jato que dirige uma nave a 980 quilômetros por hora é incapaz de dirigir seu pênis 18 centímetros dentro de uma vagina‖ (Reuben, s/d. p. 11) ou ―a despeito das insistentes negativas dos moralistas profissionais, é óbvio que o Criador fez os seres humanos para que copulassem‖ (Reuben, [s/d]. p. 13), possuíam evidente potencial cômico, pensando-as a partir de uma perspectiva satírica. Ou seja, modulando a interpretação de uma frase eminentemente científica tem-se um chiste com um dos temas mais populares da tradição humorística: a piada com tema erótico. Woody Allen percebeu isto.

Sobre o filme, Barbosa escreveu que:

Tudo o que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo (Mas Tinha Medo de Perguntar), 1972

Woody voltava a basear-se mais uma vez num livro (o clássico homônimo, e seríssimo, de David Reuben). Para Allen, um obcecado com o sexo e suas questões correlatas, o revolucionário livro de Reuben era um prato transbordando. ―TOQVSQSSS (MTMDP)‖ é um filme mais ambicioso que seus predecessores. O diretor usou sete dos tópicos abordados no livro (afrodisíacos, sodomia, dificuldades do orgasmo feminino, travestismo, perversão, pesquisas sexuais e ejaculação) para criar um longa em episódios. Contou com um elenco recheado de talentos cômicos (Tony Randall, Lou Jacobi, Gene Wilder) e exibiu notável tino para brincadeiras estilísticas. Exemplos são o episódio sobre o orgasmo feminino, parodiando o cinema italiano dos anos 60 (com direito a diálogos em italiano) e o game show retrô feito para ilustrar o capítulo sobre perversão. E chega a esbarrar no surrealismo no episódio sobre as pesquisas — que culmina com um seio gigante fora de controle, correndo pelos campos — e no epílogo, no qual o próprio Woody interpreta um espermatozoide. O resultado, até mesmo pelo

formato, é o mais divertido e ―satisfatório‖ (cinematograficamente falando) dos filmes da fase inicial de Allen (2018).

Por ser episódico, Tudo o que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo (Mas Tinha Medo de Perguntar) não possui um cenário único ou mesmo está focado em uma única temporalidade. Há cenas em Nova York, mas também há na Europa medieval. De certo modo, não exatamente no espírito de O que há, Tigresa?, trata-se de uma obra experimental, mas que leva em consideração a possibilidade de alcançar o público médio. Embora nem todas as sequências possuam a mesma qualidade, o conjunto agradou e já no ano seguinte Woody Allen retornou com um projeto mais ambicioso, uma ficção científica: O Dorminhoco. De acordo com a crítica de cinema Pauline Kael, trata-se de ―um clássico da comédia-pastelão moderna, dirigida e estrelada por Woody Allen. Passada duzentos anos à frente, é a mais segura e equilibrada de suas comédias, de estilo visual claro e elegante padrão‖ (1994, p. 148).

A crítica de Barbosa não é tão favorável.

O Dorminhoco (Sleeper, 1973)

Continuando a inspiração surreal que marcou o longa anterior, aqui Allen se aventura pela ficção científica. Apropriando-se de/referenciando-se em Kubrick, George Orwell e H. G. Wells, é uma sátira distópica. Mas, como em ―Bananas‖, o subtexto é mera formalidade. O roteiro volta a apoiar-se na persona fílmica de Woody para extrair a maior parte de sua graça.