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3. CONCEITOS-CHAVE PARA SE PENSAR A PERMANÊNCIA DO LP:

3.3 O COLECIONADOR E O FETICHE

3.3.1 O colecionador

Para Benjamin (1995), o colecionador é movido por uma paixão, porém não uma paixão do objeto em si, mas como objeto que pode representar suas memórias, vivências pessoais e como também contexto de uma época:

Este processo ou qualquer outro é apenas um dique contra a maré de água viva de recordações que chega rolando na direção de todo colecionador ocupado com o que é seu. De fato, toda paixão confina com o caos, mas a de colecionar com o das lembranças (BENJAMIN, 1995, p. 227-228).

O colecionador benjaminiano é comparável ao escavador à procura de seus tesouros. O próprio autor, no ímpeto de novas aquisições, flanou por várias cidades, percorrendo ruelas e porões, e foi dessa maneira que pôde realmente conhecer esses lugares, construir uma experiência real com a vida local através do faro apurado de colecionador.

A seu ver, os objetos da coleção devem ser separados da sua função utilitarista:

É decisivo na arte de colecionar que o objeto seja desligado de todas as suas funções primitivas, a fim de travar a relação mais íntima que se pode imaginar com aquilo que lhe é semelhante. Esta relação é diametralmente oposta à utilidade e situa-se sob a categoria singular da completude. O que é esta “completude” <?> É uma grandiosa tentativa de superar o caráter totalmente irracional de sua mera existência através da integração em um sistema histórico novo, criado especialmente para este fim: a coleção. E para o verdadeiro colecionador, cada uma das coisas torna-se neste sistema uma enciclopédia de toda a ciência da época, da paisagem, da indústria, do proprietário do qual provém (BENJAMIN, 2006, p. 239).

Mesmo que esse objeto possa ter uma funcionalidade (conhecimento, prazer etc.), não será esta que dará a tônica do ato de colecionar e alimentará essa paixão, mas sim o fato de ele estar carregado de lembranças, por contar histórias e nos situar num tempo e espaço.

Apesar de ter uma visão extremamente pessimista em relação ao colecionador, Baudrillard concorda nesse ponto quanto à ausência de funcionalidade no objeto da coleção: “Em última instância, o objeto estritamente prático toma um estatuto social: é a máquina. Ao contrário, o objeto puro, privado de função ou abstraído de seu uso, toma um estatuto estritamente subjetivo: torna-se objeto de coleção” (2009, p. 94). De acordo com Benjamin, o consumidor comum nunca entenderá os reais motivos do colecionador e a maneira como organiza a sua coleção, pois “[...] o colecionador consegue lançar um olhar incomparável sobre o objeto, um olhar que vê mais e enxerga diferentes coisas do que o olhar do proprietário profano [...]” (BENJAMIN, 2006, p. 241).

Não há dúvidas que Benjamin coloca o objeto da coleção numa posição sacralizada, na qual talvez pudesse ser novamente constituído de aura, mesmo que seja de um ponto de vista particular. Provavelmente, essa seja a visão do colecionador para com seus objetos “de valor inestimável” — mas que têm um valor nesse mercado, mesmo informal, de colecionismo —, posicionados nas suas estantes-altar, mas que, sendo também mercadorias, apresentam as marcas do profano, como aponta Janotti Júnior:

Primeiramente vale lembrar que, por mais que haja uma sacralização dos objetos de coleção, eles nunca podem ser somente da ordem do sagrado. Por exemplo, todo disco traz as marcas humanas do trabalho e do dispositivo Indústria da Música. É nesse sentido que pode se localizar um jogo permanente entre a reivindicação de um valor que transcende os valores de uso e de troca por parte do colecionador, mas que não consegue “zerar” essa relação (2012, p.10).

O motivo mais profundo do colecionador, para Benjamin, é empreender “a luta contra a dispersão. O grande colecionador é tocado bem na origem pela confusão, pela dispersão em que se encontram as coisas no mundo [...]”. (2006, p. 245). Para afastar essa angústia de uma

vida tão fragmentada ele coleciona, organiza, cataloga — na sua maneira, podendo ser inteligível pra outros — e assim cria um mundo particular repleto de memória e identidade:

É a partir de múltiplos mundos classificados, ordenados e nomeados em sua memória, de acordo com uma lógica do mesmo e do outro subjacente a toda categorização – reunir o semelhante, separar o diferente – que um indivíduo vai construir e impor sua própria identidade. As descontinuidades que ele vai impor sob a forma de categorias e taxonomias diversas à sua experiência do mundo exterior lhe permitem identificar e se orientar em um “corpus de dados sensíveis que seria, de outra forma, caótico” (CANDAU, 2012, p. 84).

Também podemos ver em Baudrillard um colecionador que luta contra essa angústia, que tenta, de certa maneira, ter a sensação de controle sobre sua vida e atingir um equilíbrio — o qual existe, mas será neurótico, na posição do autor. Para ele, o real poder dos objetos vem do fato de a organização da coleção poder substituir o tempo, sendo por isso muitas vezes referida como passatempo, por aboli-lo:

Deixemos de lado aqui a mitologia espontânea que quer que o homem ou se prolongue ou sobreviva nos seus objetos. O processo-refúgio não é o de imortalidade, de perpetuidade, de sobrevivência em um objeto-reflexo [...], mas sim um jogo mais complexo de “reciclagem” do nascimento e da morte em um sistema

de objetos. O que o homem encontra nos objetos não é a garantia de sobreviver, é a de viver a partir de então continuamente em uma forma cíclica e controlada o processo de sua existência e de ultrapassar assim simbolicamente esta existência real cujo acontecimento irreversível [a morte] lhe escapa (BAUDRILLARD, 2009,

p. 104-105, grifos do autor).

Apesar de Benjamin (1995, p. 234) colocar que uma das características mais intrínsecas da coleção é sua transmissibilidade, e que o receptor desta deva agir como um herdeiro, zelando por sua posse, ele acredita que a coleção perde seu sentido quando perde seu agente. Inclusive, de maneira bem radical, defende que as coleções públicas são desprovidas de sentido, apesar do bem que fazem à sociedade. Por dizer tanto sobre identidade, essas coleções seriam algo inseparável de seu dono.

Ou, na perspectiva baudrillardiana: o fim do ciclo dos objetos-reflexo, que representam o lado narcisista de todo colecionador. Para o autor, os objetos são como um espelho melhorado, que refletem as imagens desejadas e não as reais. Apresentando a capacidade de ser possuído, personalizado e contabilizado e não oferecendo nenhum tipo de restrição, esse objeto é investido de tudo que não é possível numa relação humana, visto que as diferenças, no relacionamento entre seres vivos, dirigiriam uns contra os outros. Segundo ele, os objetos colecionados são, no fundo, a repetição do próprio colecionador; então, apesar de poder ser continuada após a morte do primeiro dono, a coleção nunca será a mesma.