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Durante a execução musical numa sala de concerto há sempre a presença de um material sonoro mutável/dinâmico e, por vezes, inesperado. Idealmente, esse material é fruto da execução musical, porém outros elementos podem o compor, como por exemplo tosses, ruídos de ar condicionado, falas, interações com o público, etc. Esse material é fruto do ambiente no qual acontece a performance, primordialmente decorrente da acústica da sala e da amplificação, caso haja alguma. A todos esses fatores ainda é acrescentado um aspecto inexorável: A execução musical ao vivo é por si só emergente. Não há como voltar a flecha do tempo para cada nota executada. A mesma peça musical jamais será interpretada pelo mesmo músico da mesma forma, mesmo que essa fosse a intenção.

O pensamento de Heráclito (filósofo grego do séc. VI a.C.), de que é impossível banhar-se duas vezes no mesmo rio, aqui cabe muito bem: o músico que executa pela segunda vez uma peça, mesmo que num mesmo contexto, já não é mais o músico que o fez pela primeira vez. Variações de pulso rítmico, variações das alturas, variações de ataque inevitavelmente ocorrerão, as quais provavelmente acarretarão em mudanças de fraseado, possivelmente até mesmo de ideias musicais e assim por adiante. É impossível determinar com precisão tudo o que é passível de mudança numa performance musical, mesmo em um contexto que se queira torná-la controlada. No nível microscópico da produção sonora, há processos estocásticos que governam a produção dos sons nos instrumentos musicais e esses geram fatores espectrais que impossibilitam a reprodução ou repetição perfeita. A partir de todos esses fatores, entendemos que a execução musical é emergente. E por extensão o processo de Entoação também é.

Outro fator importante é que a localização espacial do ouvinte na sala de concerto, é um elemento que determina a singularidade da sua escuta. Se cada orelha de um ouvinte recebe sinais acústicos diferentes, que serão organizados pelo cérebro, e uma simples rotação da cabeça pode ampliar ainda mais esse efeito, as diferenças entre dois ouvintes com posições distintas são ainda mais notáveis. Em um conjunto musical cada músico terá uma escuta, condicionada pela sua posição espacial, e esse fato é explorado nas posições tradicionais de montagem da Orquestra Clássica, por exemplo.

Outra característica do processo de percepção e interação com o CAE são as singularidades de cada ouvinte. A primeira dessas singularidades é de ordem psicoacústica: cada sistema auditivo é único e, portanto a interface entre os ouvintes e o CAE nunca será a mesma. Como exemplo, podemos citar o fato de que curvas de

medições de audição são particulares a cada indivíduo e que mesmo o formato de cada pina determinará a percepção de vários parâmetros acústicos de forma diversa. Além das variáveis psicoacústicas que condicionam a escuta, ainda existem processos de mais alto nível, determinados culturalmente a partir da história de cada ouvinte que também são igualmente condicionantes no processo.

Juntamos o conceito de Product Space (espaço produto), conforme proposto por Ashby (1962) aos pontos levantados acima sobre CAE:

De onde vem este product space? Sua principal peculiaridade é que ele contém mais do que realmente existe no mundo físico real, pois é este último que nos dá o subconjunto delimitado, real. (…) O mundo real dá o subconjunto do que é; o product space representa a incerteza do observador. O product space pode portanto, mudar se o observador muda; e dois observadores podem usar legitimamente diferentes product spaces para registrar o mesmo subconjunto de eventos reais em alguma coisa real. A "delimitação" é, portanto, uma relação entre observador e coisa; as propriedades de qualquer delimitação particular dependerão de ambos, da coisa real e do observador. Segue-se que uma parte substancial da teoria da organização estará preocupada com propriedades que não são intrínsecas à coisa, mas são relacionais entre o observador e a coisa. Veremos alguns exemplos notáveis desse fato mais tarde28.

No intuito de sintetizar a ideia, o CAE pode ser entendido como o Sistema Sonoro resultante da somatória de todas as fontes sonoras e suas interações com o ambiente. A forma como cada ouvinte percebe e interage com o CAE é de natureza profundamente subjetiva e individual, uma vez que cada ouvinte conta com uma história de vida, um sistema auditivo e também com uma posição espacial única na sala de concerto. Na mesma forma, o intérprete é parte integrante do CAE e também ouvinte.

A Fig. 5 mostra como cada Sistema Músico-Instrumento (SMI) transforma o CAE (Contexto Acústico Emergente), e o percebe. O conceito explicitamente inclui as interações com a sala (como reflexões e ressonâncias), embora não seja simples transpor essa ideia para a figura. De acordo com o ponto de vista teórico, a fig. 1.8 pode ser interpretada como um modelo de auto-organização primária.

28 Whence comes this product space? Its chief peculiarity is that it contains more than actually exists in the real physical world, for it is the latter that gives us the actual, constrained subset. (…) The real world gives the subset of what is; the product space represents the uncertainty of the observer. The product space may therefor change if the observer changes; and two observers may legitimately use different product spaces within which to record the same subset of actual events in some actual thing. The “constraint” is thus a relation between observer and thing; the properties of any particular constraint will depend on both the real thing and the observer. It follows that a substantial part of the theory of organization will be concerned with properties that are not intrinsic to the thing but are relational between observer and thing. We shall see some striking examples of this fact later.

Figura 1.8. O CAE, a partir da interação de vários SMIs, como modelo de auto-organização primária.

A maneira como cada músico percebe o CAE, já numa etapa superior de processamento da informação captada pelo aparelho auditivo, é determinada por hábitos, o que determina a escuta e a ênfase dada a cada elemento sonoro presente no CAE. Quais regiões cerebrais são ativadas depende de hábitos de escuta individuais, como mencionado acima nos trabalhos de (Altenmüller e Gruhn, 2002). Em suma, a maneira como cada indivíduo, ou já incluindo o instrumento como parte do processo, como cada SMI interagirá e processará as informações acústicas provenientes do CAE, pode ser entendido como um modelo de auto-organização secundária.