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O conceito de prevenção no trabalho não deve ser entendido hoje como um conceito unívoco. É um conceito que deve ser visto como sendo constituído pelo menos por duas faces, dois sentidos, dois tipos de abordagens ou enfoques. São faces diferentes da mesma moeda, são abordagens ou enfoques distintos mas com a mesma finalidade – a de melhorar a saúde dos trabalhadores no trabalho. Tratam-se, além disso, de enfoques ou tipos de abordagens que não devem ser vistos como excludentes ou alternativos mas antes como devendo ser complementares e integrados. O primeiro enfoque, tradicional, que tem dominado a legislação e a prática da prevenção até hoje, é designado como enfoque ou modelo patogénico e tem a ver com a prevenção no sentido de prevenção de riscos. O segundo enfoque, que começou a ser defendido a partir de 1986, com a Carta de Otawa, é o enfoque ou modelo salutogénico e tem a ver com a promoção da saúde no trabalho. Um e outro enfoque integram o conceito mais amplo de Promoção da Saúde no Trabalho no sentido que lhe é dado pela Declaração do Luxemburgo de 1997 (ENWHP, 1997).

1.1. O enfoque patogénico de saúde ocupacional

A prevenção de riscos (e a protecção do trabalhador) constitui um dos objectivos centrais da saúde ocupacional61 e da actual legislação de segurança e saúde no trabalho comunitária62. A prevenção não é porém o único objectivo da saúde ocupacional nem

61 A Saúde Ocupacional é uma «área de saberes multidisciplinar que tem como objectivo promover e

manter o mais elevado bem-estar físico, mental e social dos trabalhadores em todas as profissões; prevenir qualquer dano que possa ser causado à sua saúde pelas condições do seu trabalho; proteger os trabalhadores no seu emprego contra os riscos resultantes da presença de agentes prejudiciais à sua saúde; colocar e manter o trabalhador num emprego adaptado às suas aptidões fisiológicas e psicológicas; em suma, adaptar o trabalho ao homem e cada homem ao seu trabalho» (Definição de Saúde Ocupacional do Comité Misto OIT/OMS, de 1950) (INRS, 1996).

62 «A presente directiva tem por objecto a execução de medidas destinadas a promover o melhoramento

da segurança e da saúde dos trabalhadores no trabalho», diz o n.º 1 do artigo 1.º da Directiva-Quadro de Segurança e Saúde no Trabalho (Directiva n.º 89/391/CEE, de 12 de Junho de 1989).

sequer o seu objectivo principal. O objectivo principal da saúde ocupacional e seu fim teleológico, como se pode ver da definição de saúde ocupacional, é o de promover e manter o mais elevado bem-estar físico, mental e social dos trabalhadores em todas as profissionais». Promover e manter o mais elevado bem-estar físico, mental e social é não só um objectivo mais amplo do que o mero objectivo de prevenir qualquer dano à saúde e proteger os trabalhadores contra os riscos resultantes das más condições de trabalho, como constitui também um enfoque diferente sobre a saúde ocupacional.

A prevenção de riscos de riscos [e a protecção do trabalhador] constitui, de entre outros63, um objectivo instrumental daquele objectivo principal64 que é o de promover e manter o mais elevado bem-estar físico, mental e social. Prevenção é o acto ou efeito de prevenir, diz o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, ou, mais detalhadamente, diz Goguelin (1996, p. 5) «é o acto pelo qual se toma a dianteira sobre [antecipa] um acontecimento com o objectivo de impedir que ele se produza e de diminuir os efeitos negativos deste acontecimento no caso de não estarmos certos de que ele se produza». Segundo a definição da Directiva-Quadro de Segurança e Saúde no Trabalho, de 1989 (Directiva n.º 89/391/CEE, de 12 de Junho de 1989), prevenção «é o conjunto das disposições ou medidas tomadas ou previstas em todas as fases da actividade da empresa, tendo em vista evitar ou diminuir os riscos profissionais». A prevenção de riscos está, pois, ligada a uma «perspectiva negativa da saúde [ocupacional] tomando como referência a ausência [de danos à saúde do trabalhador] (...). O seu postulado básico é o da saúde como ausência de doença» (Lluch Canut, 1999, p. 20). O objectivo da prevenção é, assim, o de evitar ou diminuir os riscos profissionais, actuar no sentido

63 São também objectivos da saúde ocupacional, nos termos da definição de saúde ocupacional da

primeira reunião do Comité Misto OIT/OMS de 1950, o de «colocar e manter e manter o trabalhador num emprego adaptado às suas aptidões fisiológicas» (cf. supra, nota de rodapé n.º 61) e bem ainda, segundo a actualização desta definição efectuada pelo mesmo Comité Misto, na sua 12.ª Sessão Reunião, em 1995, «o desenvolvimento de formas organizativas e culturas de trabalho favorecedoras da saúde e da segurança e, em consequência, que promovam um lima social positivo e um funcionamento eficiente e melhorem a produtividade da empresa» (INRS, 1996, p. 91).

64 Veja-se, no sentido desta interpretação, nomeadamente o modo como é a formulado o n.º 2 do mesmo

artigo 1.º da Directiva-Quadro: «Para esse efeito [isto é, para efeito de promover e manter o mais elevado bem-estar físico, mental e social], a presente directiva inclui princípios gerais relativos à prevenção dos riscos profissionais e à protecção da segurança e da saúde (...)». Os princípios de prevenção são, portanto, um meio para atingir um fim. Simplesmente, a prevenção não esgota os meios possíveis para atingir aqueles fins. Há outros meios: a educação para a saúde, a informação para a saúde e a criação de formas organizativas e culturais favorecedoras da saúde e da segurança no trabalho (cf. a definição de saúde ocupacional revista pela 12.ª sessão do Comité Misto OIT/OMS, 1995).

de evitar ou minimizar os danos à saúde dos trabalhadores. Tem sido este o enfoque tradicional, dominante, da saúde ocupacional. O chamado «enfoque patogénico», que se centra apenas nos aspectos ou efeitos negativos do trabalho (Hanson, 2007).

1.2. O enfoque salutogénico de saúde ocupacional

Distinto do enfoque patogénico da saúde ocupacional, mas relacionado, imbricado com ele, constituindo como que a outra face da moeda, está o enfoque salutogénico, relacionado com os aspectos ou os efeitos positivos do trabalho, com a manutenção ou a potenciação dos factores positivos do trabalho. «A perspectiva positiva procura definir a saúde [ocupacional] através da saúde. O seu postulado básico é a saúde como algo mais do que a mera ausência de doença» (Lluch Canut, op.cit., p. 20). A promoção da saúde no trabalho constitui o objectivo central deste enfoque. Objectivo este que deve ser conseguido pela prevenção de riscos e pela protecção do trabalhador, centrados na eliminação ou na redução dos aspectos ou dos efeitos negativos, mas também por outro tipo de actividades designadas de promoção da saúde, centradas nos aspectos ou nos efeitos positivos do trabalho.

O conceito de promoção da saúde começou por ser desenvolvido primeiro no âmbito da saúde em geral, passando, depois, para o âmbito do trabalho. O conceito de promoção da saúde começou a ganhar contornos com o relatório Lalonde65, de 1974 e com a Carta de Otawa, aprovada na Primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, promovida em 1986, pela OMS, em Otawa (Canadá). Outras Conferências (e documentos) se seguiram sobre a Promoção da Saúde (Adelaide, 1988; Sundsvall, 1991; Jacarta, 1997; México, 2000). Progressivamente, o conceito de promoção da saúde tem vindo a ser alargado ao domínio do trabalho, em especial na União Europeia. Em 1997, é aprovada no âmbito da União Europeia a Declaração do Luxemburgo sobre Promoção da Saúde no Local de Trabalho; em 2001, é aprovada a Declaração de Lisboa sobre a Promoção da Saúde no Local de Trabalho nas Pequenas e Médias Empresas e, em 2002,

65 Ministro canadiano da Saúde Nacional e do Bem-estar responsável pelo relatório A new perspective on

the health of Canadians, que veio a passar a designar-se com o seu nome. Este relatório, de 1974, constituiu o primeiro documento oficial ocidental a questionar o modelo biomédico de saúde e a propor novos contornos para a organização dos sistemas de saúde. O Relatório veio dar origem à Primeira Conferência Internacional sobre a Promoção da Saúde, em 1986, em Otawa (Canadá) e à aprovação da Carta de Otawa sobre a Promoção da Saúde.

a Declaração de Barcelona sobre o desenvolvimento de medidas efectivas de Promoção da Saúde no Local de Trabalho.66

A Declaração do Luxemburgo sobre a Promoção da Saúde no Trabalho parte da constatação de que a saúde ocupacional tradicional embora tenha contribuído significativamente para melhorar a saúde nos locais de trabalho, parece insuficiente para enfrentar os novos desafios colocados ao mundo do trabalho no século XXI – os da globalização, do desemprego, do aumento do uso das tecnologias da informação, das mudanças dos modelos de emprego, o envelhecimento da população, a redução da dimensão das empresas (em número de trabalhadores e em tarefas), o aumento dos trabalhadores em pequenas e médias empresas e a gestão orientada para os consumidores e para a qualidade (ENWHP, 1997).

O enfoque da promoção da saúde no trabalho, nos termos da Declaração, «é uma estratégia que visa prevenir a doença no trabalho (incluindo as doenças profissionais, a má gestão do stresse, os acidentes e outras lesões e as doenças relacionadas com o trabalho) e contribuir para desenvolver o potencial de saúde e o bem-estar da população trabalhadora». Segundo a Declaração, a promoção da saúde no trabalho visa não só a prevenção de riscos («prevenir a doença») como promover a saúde («contribuir para desenvolver o potencial de saúde e o bem-estar da população trabalhadora»). Ou seja, abraça o enfoque não só da saúde ocupacional tradicional, centrada na prevenção de riscos, nos aspectos e efeitos negativos do trabalho, como vai além dele, centrando-se, também, nos aspectos e efeitos positivos do trabalho (enfoque salutogénico). Promover a saúde, e não apenas prevenir os riscos, implica promover pessoas saudáveis e organizações saudáveis através, designadamente, de princípios e métodos de gestão e de organização que reconheçam os trabalhadores como um factor imprescindível para o sucesso da organização e não um mero factor de despesa; uma cultura e princípios de liderança que incluem a participação de todos os trabalhadores e encorajem a sua motivação e responsabilidade e princípios de organização do trabalho que proporcionem aos trabalhadores condições de equilíbrio adequado entre as exigências do posto de

66 Ver em: www.dgs.pt> Promoção da saúde> saúde ocupacional> Documentos de Referência>

Declarações (Declaração do Luxemburgo, Declaração de Barcelona, Declaração de Lisboa). No mesmo site podem encontrar-se, em Promoção da Saúde> Documentos de referência, todas as Cartas e Declarações relativas à Promoção da Saúde (traduzidas em português).

trabalho, o controlo sobre o seu próprio trabalho e o seu nível de capacidades e de suporte social (ENWHP, 1997). Nestes termos, a Declaração do Luxemburgo está conforme às tendência verificadas por Rantanen e Fedorov de que:

O âmbito da saúde ocupacional se está ampliando para cobrir não só a saúde e a segurança, mas também o bem-estar psicológico e social e a capacidade de levar uma vida social e economicamente produtiva; a gama completa de objectivos vai mais além do que o âmbito das questões tradicionais de saúde e segurança no trabalho; os novos princípios vão mais além do que a mera prevenção e controlo dos efeitos prejudiciais para a saúde e a segurança dos trabalhadores, para abarcar a promoção activa da saúde e a melhoria do meio ambiente e da organização do trabalho (Rantanen & Fedorov, 2003, p. 16.5).

Constituem aspectos de relevância da promoção da saúde no trabalho, diz Hanson (op.cit., pp. 85 e seg.), a defesa de uma política de pessoal que incorpore a promoção da saúde de forma activa; de um serviço integrado de saúde ocupacional (segurança e saúde no trabalho), baseado na multidisciplinaridade e na cooperação multisectorial; do envolvimento e participação de todos os trabalhadores; de integração da promoção da saúde no trabalho em todas as decisões importantes e em todas as áreas da organização; de adopção de uma metodologia de projecto ou de resolução de problemas num processo cíclico, faseado e contínuo: análise de necessidades, estabelecimento de prioridades, planeamento, implementação, controlo contínuo e avaliação; do princípio da compreensividade, combinando estratégias de redução de riscos com a estratégia de desenvolvimento de factores de protecção e potenciais de saúde; de adopção de medidas de natureza diversificada, orientas para as pessoas e orientas para os ambientes de trabalho

Assim, falar em prevenção em saúde ocupacional saúde ocupacional deve ser entendido, hoje, no sentido lato de prevenção de riscos e de promoção da saúde. Neste sentido, defende-se que seria preferível falar, apenas, em Promoção da Saúde no Trabalho, como sendo uma actividade que incluindo a prevenção de riscos e a protecção do trabalhador tem o objectivo mais amplo de promover e manter a saúde do trabalhador no trabalho. Este, aliás, foi sempre o objectivo último da saúde ocupacional. O seu fim último nunca foi apenas o de evitar ou reduzir os riscos e proteger o trabalhador mas sim o de promover e manter a saúde, para o qual contribui também a prevenção de riscos e a protecção do trabalhador.

Verifica-se, contudo, que o paradigma dominante na prática da saúde ocupacional continua a ser apenas o da prevenção de riscos (identificar, avaliar e controlar os riscos) e não o da promoção da saúde (identificar, avaliar e promover acções de saúde). As duas actividades continuam a ser vistas como actividades distintas e separadas e não como actividades complementares e integradas. Tal enviesamento parece resultar da própria lei e da prática das instituições comunitárias, como adiante se dirá, pois são elas próprias, a focarem-se predominantemente no dever legal da prevenção de riscos, deixando as actividades de promoção da saúde apenas para o domínio das boas práticas, mais próximas da filosofia voluntarista da responsabilidade social das empresas, como sendo um dever ultra lege.