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3.2 – O conceito de saúde e de doença é construído por experiências e

Capítulo I: Enquadramento conceptual

I. 3.2 – O conceito de saúde e de doença é construído por experiências e

A construção do conceito de saúde tem oscilado entre a visão biologista e mecanicista da saúde e da doença, a história da saúde e da doença é desde tempos mais remotos, uma história de construções e interpretações sobre a natureza, as funções e a estrutura do corpo bem como sobre as relações corpo-espiríto e pessoa-ambiente. Essas significações têm sido diferentes ao longo das diferentes épocas constituindo-se em diferentes narrativas sobre os processos de saúde e doença.

Estudos sociológicos do início do séc. XX, contribuíram para a ruptura com o conceito de que a doença é exclusiva do foro biológico, cabendo-lhe o mérito de provar de que desajustes e/ou desequilíbrios às regras sociais levariam a um desequilíbrio podendo levar à morte (Herzlich 2001, p.10).

No campo da saúde esses estudos sociológicos, têm focado quase exclusivamente o conceito de doença e durante muito tempo a sociologia da saúde, constituiu-se na

tradicional sociologia da medicina, com vago interesse pelo carácter social e humanitário, mas sobretudo interessada pela cura de doenças, daí que tenha sido apelidada de sociologia da medicina (Coelho, 2002; Monteiro, 2002).

Durkheim (1968) afirmou que o objectivo principal de qualquer ciência da vida (individual ou colectiva) é a definição e a explicação do estado normal, bem como a diferenciação do seu estado patológico (citado em Coelho, 2002).

No entanto “normalidade não é sinónimo de saúde, nem o par conceptual normal- patológico sustenta uma correspondência de oposição entre saúde e doença” (Coelho 2002). Existe evidentemente uma realidade biológica, mas no momento em que são feitos esforços para compreender, organizar e manusear esta realidade, tem lugar então um processo de contextualização, em que a relação dinâmica entre biologia, valores culturais e ordem social tem de ser considerada (Lock M. 1988, p.7).

Saúde e doença apresentam-se como conceitos complexos onde adquirem importância tanto os aspectos físicos, psicológicos como as dimensões sociais e ambientais. A doença é definida em termos sociais, cada sociedade reconhece as suas próprias doenças, e esta constitui sempre um estado com muitas implicações sociais: “estar doente ou em boa condição física são coisas muito diferentes socialmente” (Herzlich 2001, p.11).

Segundo Canguilhem (1996) a norma que é a saúde refere-se apenas ao estado orgânico individual, sendo “ necessário olhar para além do corpo para determinar o que é normal para este mesmo corpo” (citado em Herzlich 2001, p.11), a saúde define-se pela capacidade humana de dominar o seu meio não apenas físico, mas também social. Saúde e doença definem-se em função das exigências e das expectativas ligadas ao ambiente, às inserções, às relações familiares e profissionais de cada um e constituem em sentido próprio estados sociais.

Depreende-se assim que não existe uma fronteira clara e natural entre uma pessoa saudável e uma pessoa doente, é apenas uma questão de definição dependente da sociedade, da cultura, da idade e até do género, no qual factores sociais podem ter mais peso do que os naturais (Moore, 2002; Herzlich, 2001).

Concordando com Serrão (2004, p.337) a definição de saúde ou de doença deve ser sempre considerada numa perspectiva ecológica, por referência ao indivíduo num determinado “nicho ecológico”, cujos componentes naturais e culturais actuam sobre o corpo, mente e desempenho social dos seres humanos, que ocupam o nicho

reciprocamente. Os homens agem sobre os constituintes naturais e culturais modificando- os ora de forma positiva, ora de forma negativa, homem e natureza formam um todo, cujo equilíbrio instável é normalmente considerado de bem-estar e que se houver desequilíbrio do ecossistema ocorre a doença.

À experiência de doença / saúde estão relacionadas, uma dimensão individual e uma dimensão universal, mas sempre modeladas pelo contexto social e cultural em que ocorram.

Na actualidade ao conceito de saúde é reconhecido um carácter multidimensional, que se traduz no facto de nenhuma abordagem conseguir por si só abarcar todas as dimensões do conceito, o que pode ser retratado na definição dada pela OMS, para quem “a saúde é um estado de completo bem-estar físico, psíquico e social, e não apenas a simples debilidade ou ausência de doença” (Cabral, 2002, p.20).

A saúde é considerada como o resultado de um equilíbrio dinâmico entre os indivíduos e o meio, refere-se o mesmo “ao desenvolvimento de possibilidades de natureza biológica, psicológica e social, de modo que cada um determine a sua funcionalidade, face ao contexto e projectos de vida, de modo a atingir a sua máxima competência” (Fernando e Lopes 2002, citados em Bule, 2006).

A saúde está também consignada como direito fundamental, emanada da constituição do Conselho da Europa no seu artigo nº 99, no qual pode ler-se “(…) o acesso aos cuidados de saúde deveria ser feito de acordo com as necessidades de cada um e ser independente das condições económicas de quem deles necessita” (OMS, 2003).

A saúde é também um direito social dos indivíduos, compreendendo-se por direitos sociais “…processos de atribuição de determinadas condições sociais que contribuem para modificação do estatuto social dos indivíduos inseridos num contexto de desigualdades sociais” (Mozzicafredo, 2002, citados em Bule, 2006).

I.3.2.1 – As significações pessoais de saúde / doença

As significações pessoais nos processos de saúde são parte integrante do estado de saúde das pessoas, (Reis, 1998 citado em Fradique e Reis, 2004), são factores produtores de realidade, eco na forma como interpretamos o que nos acontece e o que acontece à nossa volta (Monteiro e Vala, 1996, p.356).

As representações sociais referem-se a fenómenos comuns a todas as sociedades e Moscovici (1984), sustenta que o conceito das representações ainda não se encontra claramente definido, dado o conteúdo extenso que encerra, o mesmo interpreta as representações como:

“sistemas de valores, de ideias, e de práticas cuja função é dupla: em primeiro lugar, estabelecer uma ordem que permitirá aos indivíduos orientarem-se e governarem o seu meio ambiente material, em seguida facilitar a comunicação entre os membros de uma comunidade ao procurar-lhes um código para designar e classificar os diferentes aspectos do seu mundo e história individual e de grupo”.

A representação social é sempre a representação de qualquer coisa e de alguém (Jodelet, 1994, citado em Duarte, 2002, p.59).

As representações são uma forma de conhecimento socialmente elaborado e partilhado, possuidor de um objectivo prático que concorre para a construção de uma realidade comum a um conjunto social. Designado como do senso comum ou natural distinto do conhecimento científico (Duarte, 2002, p.54).

No entanto, a formação das representações sociais a partir da realidade da vida quotidiana constitui-se de grande importância para que possam ser tidas e reconhecidas como conhecimento pela sociedade. Porque a realidade da vida quotidiana apresenta-se por excelência como realidade decorrente das relações que o ser humano mantém no dia-a- dia com o mundo, “passando de um carácter predominante / impositivo e urgente para a consciência” (Alexandre 2004).

A representação social da saúde refere-se ao acto de pensamento, pelo qual os indivíduos se relacionam com os processos referentes a esta, podendo ser reais, imaginários ou míticos (Jodelet 1984; 1994, citado em Duarte 2002, p.60).

Deve-se a Claudine Herzlich (1969/1973), o estudo pioneiro sobre as representações sociais e doença, realizado em França cujas conclusões centrais apontam para que: as significações das pessoas sobre o seu estado de saúde estão directamente ligadas a significações mais vastas sobre elas próprias, sobre o mundo e a vida e inseridas em sistemas culturais; as significações laicas divergem em larga medida das significações dos profissionais de saúde, embora coexistindo e competindo entre si (Fradique e Reis 2004).

Depreende-se que o «saber da saúde» não se encontra exclusivamente ligado ao saber da medicina convencional, os profissionais de saúde apenas possuem uma parte desse saber, na medida em que os factores que condicionam o bem-estar individual são de

vária ordem: social, económica, ambiental entre outros, e um acto de saúde envolve sempre as diferentes dimensões individuais ou colectivas como saberes culturais, crenças ou outros.

No entanto na actual sociedade, ao doente é atribuída a obrigação moral de querer tratar-se, para tal deve recorrer, confiar e colaborar com aqueles que detêm o saber necessário para atingir a cura, estabelecendo-se entre profissional e doente uma assimetria de poder baseado na assimetria de saberes entre ambos, baseado na obediência, submissão e adaptação que tendencialmente coloca o doente no pólo oposto ao do profissional de saúde detentor do poder (Serra, 2005, p.36).