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O Conflito phusis (natureza) e nomos (lei)

6. Os Sofistas e Sócrates

6.1. O Período Humanista (ou antropológico)

6.1.1. Os Sofistas

6.1.1.3. O Conflito phusis (natureza) e nomos (lei)

Qualquer que seja o momento onde emergiu a antítese nomos

e phusis, e independentemente da maneira que ela apareceu, ele teve regularmente por consequência que a phusis foi reconhecida como fonte dos valores, e, por isto, como sendo, de algum modo, normativa.

A razão disso reside no fato, como afirma Hípias no Protágoras

de Platão, de que, pela natureza, os semelhantes parecem aparentados, “enquanto a lei, tirana dos homens, nos impõe pela força muitas coisas contrárias à natureza” (Idem, p.175). A natureza aqui deve ser entendida como a natureza humana, suas necessidades, e sua relação com a lei (Idem). Nesse sentido, devemos recorrer não às leis positivas, arbitrárias, impostas, mas à natureza, pois as primeiras representam obstáculos, limitações, à segunda, que é condição de possibilidade da liberdade (Kerferd, 1999, p.176-177). Há uma profunda oposição entre as leis [positivas] e a natureza, e um entendimento de que esta oposição insere-se na percepção do relativismo próprio das leis humanas.

Apresentaremos três momentos desta discussão do ponto de vista dos sofistas: em um primeiro momento, trataremos da polêmica intervenção de Trasímaco no primeiro livro da República de Platão; após, veremos qual a posição de Cálicles no diálogo Górgias do

mesmo Platão, e por fim apresentaremos uma tradução do Fragmento A da obra Da natureza de Antifonte, interessantíssimo para a compreensão da posição da sofística sobre o tema.

6.1.1.3.1. Trasímaco

No livro I da República (338c), o irascível sofista Trasímaco intervém de modo pouco gentil para afirmar sua concepção acerca de como definir a justiça, ou seja, qual é o seu verdadeiro significado. Para Trasímaco, a justiça é “o que convém ao mais poderoso”, isto é, ela é a realização do que é vantajoso ao mais forte.

Trasímaco sustenta sua tese diante de Sócrates afirmando que independentemente do modo pelos qual são governadas as cidades, de modo despótico, democrático, ou aristocrático, o governo é quem exerce o poder em cada uma delas, promulgando as leis em conformidade com o seu próprio interesse (338d-e), e “uma vez estabelecidas declaram para os governados que o justo é o que lhes resulta conveniente, e castigam o que se aparta porque é anárquico e injusto” (338e). Desse modo, parece absolutamente evidente que, em cada uma das cidades, a justiça é exatamente o que convém ao mais forte, no caso os governantes, os mais poderosos.

Esse tipo de afirmação provoca estupor, pois, como nos mostra Guthrie (1993, p.92), estabelece um paradoxo, pois para um grego parece um contrassenso afirmar que a justiça (dikaiosunê) deva ser entendida como a realização do interesse do mais forte, já que a justiça, para ele, implica “aprovação moral”, o que contrasta radicalmente com a tese de Trasímaco. O que realmente estaria por trás da proposição do nosso sofista? Guthrie sustenta (1999, p.92) que Trasímaco tinha como intuito fundamental “desmascarar a hipocrisia, e mostrar como o significado da justiça estaria sendo pervertido”. A justiça não poderia ser identificada com as leis estabelecidas pelos governantes, pois estes últimos teriam o interesse de garantir a realização de seus próprios interesses e não da população em geral, e isto não pode configurar o real significado da justiça.

Guthrie nos propõe (1999, sumário) colocar Trasímaco entre os

realistas. Entendemos tal afirmação como colocando-o entre os que compreendem que a justiça tal como nos é apresentada pelos governantes é algo contrário ao que deveria ser entendido como justiça em sentido estrito, na medida em que esta não poderia ser entendida como a realização do interesse do mais forte, mas sim como algo que estabelecesse condições que realizassem a verdadeira natureza da justiça, e esta não pode ser pautada pelo caráter convencional das leis, secundárias diante da natureza.

6.1.1.3.2. Cálicles

A tese desenvolvida por Cálicles no Górgias pressupõe a distinção total entre um direito que reside na natureza, e um direito positivo, que busca impor ao primeiro a vontade dos mais fracos. O direito positivo, a lei positiva, tem por finalidade usurpar o que pertence, em função de sua superioridade evidente, ao direito fundado na natureza, e que é próprio do homem mais forte, que tem, em si, a condição de impor, sem restrições, os seus desejos: “As leis e convenções dos homens somente servem para contrariar a força da natureza e a domesticar o super-homem” (Canto-Sperber, 1987, p.73).

Cálicles afirma que a natureza e a lei se contradizem (482e). A lei positiva é estabelecida pelos mais fracos, pela massa, tendo em vista o seu interesse pessoal, buscando através destas leis espraiar o medo entre os mais fortes (483b). A razão desse fato é impedir que os homens que são superiores por natureza afirmem sua superioridade, utilizando [os mais fracos] de subterfúgios tais como sustentar ser injusto possuir mais que os outros, residindo a injustiça nesta sede de querer mais, pois o que agrada aos mais fracos é de partilhar o sentimento de serem iguais aos mais fortes, quando em realidade lhes são inferiores, e é a lei positiva sua garantia de proteção (483c).

Ora, na verdade a justiça, segundo Cálicles, consiste em que o melhor tenha mais do que aquele que lhe é inferior, da mesma forma que o mais forte por natureza tenha mais que o mais fraco (483d):

Em todo o lugar é assim, é o que a natureza ensina, em todas as espécies animais, em todas as raças humanas, e em todas as cidades! Se o mais forte domina o mais fraco, e se é superior a ele, é o sinal de que é justo.

Isso reflete a lei natural: as leis positivas são contra a natureza, já que permitem que os fracos atentem ao que é o direito dos mais fortes, direito enraizado na natureza, e moralmente superior ao direito positivo. Por tal razão, os homens superiores devem deixar fruir suas paixões, seus desejos, não reprimi-los de modo algum (491e-492a), pois “a facilidade da vida, o desregramento, a liberdade de se fazer o que se quer, permanecendo na impunidade, constituem a virtude e a felicidade” (492c), o resto não passa de convenção contra a natureza, palavras ao vento.

6.1.1.3.3. Antifonte

Na obra Da natureza, Antifonte apresenta sua compreensão do conflito natureza e lei – a “guerra” entre as coisas que são justas segundo a lei e as que são justas por natureza –, que pode ser observada na tradução que segue, o que pode ser proveito mesmo que reconheçamos as dificuldades originadas da incompletude do fragmento, o que dificulta o estabelecimento do que é realmente próprio do autor, e o que é uma descrição das polêmicas sobre o tema em questão.

DA VERDADE, fragmento A (DK B XLIV 1-4)

1. A justiça consiste em não transgredir a lei da cidade onde se exerce seus direitos de cidadão. Em seguida, o homem atirar-se- á às maiores vantagens praticando a justiça, se está diante de testemunhas, que ele se dobre à potência das leis; mas se está só e sem testemunha, isto se dará em seguindo a natureza. Pois as prescrições da lei são instituições, enquanto que as da natureza são necessárias. As das leis que resultam de um acordo mútuo não são naturais, mas as da natureza, que são naturais, não resultam 2. de um acordo. Por conseguinte, quem transgride a lei, se consegue evadir-se aos olhos dos que

estabeleceram o acordo, escapa à vergonha como ao castigo. Mas não, se não se esconde. Quanto às normas naturais da natureza, indo além do possível, as violamos, mesmo se escapamos à atenção de todos os homens, o mal não é menor, e se todos o sabem, ele não é maior. Pois o dano não vem da opinião, mas tem lugar na verdade. O que explica este problema é principalmente que as prescrições do justo segundo a lei estão, na maior parte do tempo, em conflito com a natureza. Pois se legislou para os olhos, sobre o que devem: 3. ver ou não ver; para as orelhas, sobre o que devem ouvir ou não; para a língua, sobre o que deve dizer ou não; para as mãos, sobre o que devem fazer ou não; para os pés, sobre os lugares onde devem caminhar e os que não devem; para o espírito, sobre o que deve desejar ou não deve. Elas não são em nada mais agradáveis ou mais próximas da natureza, estas ações das quais as leis afastam os humanos, que aquelas as quais elas os convidam. Pois viver é um ato conforme à natureza, tanto quanto morrer: ora, para os homens, viver está ligado ao que é útil, morrer ao que não é 4. útil. O que é posto pelas leis como útil é um laço para a natureza; ao contrário, o que é posto tal pela natureza, é liberdade.

Em linhas gerais, estes são os principais pontos nos quais residem, segundo os sofistas, o conflito entre natureza e lei, e os motivos pelos quais a natureza deve ser o que prescreve as nossas ações.