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O contexto histórico-cultural do século XIX

Capítulo I. O contexto no qual se deu a Experiência

1.1. Cenário geral

1.1.3 O contexto histórico-cultural do século XIX

No século XIX, o Positivismo propôs-se não apenas como paradigma cientifico, mas como concepção filosófica do mundo. As teorias evolucionistas distorceram a concepção da humanidade, portanto da história também. É, essa a época que desenha os grandes movimentos comerciais, coroa os macro projetos imperialistas e, simultaneamente, cumpre os primeiros passos para institucionalização das ciências, como a geografia e a antropologia.

É nesse contexto histórico-cultural que os escritos etnológicos enriquecem com minuciosos relatórios etnográficos, fascinantes diários de aventureiros, reportagens fotográficas, relatórios dos missionários, fantasiosas quanto extravagantes descrições, que alimentam os antigos e novos mitos das sociedades ocidentais ( como o mito do bom selvagem). Escritos influenciados, sobretudo, pela fantasia e realidade, pelo rigor científico ou pelo instrumentalização política, pelo dever de crônica (narração, noticiário)ou por um pouquinho de romantismo. A esse propósito Erich Schmid

então comboniano comenta que a literatura missionária pode ser chamada um fruto típico do Romantismo. Mais de 300 revistas missionárias com milhões de leitores surgiram como um produto romântico, no meado do século XIX e reavivaram o interesse para as missões estrangeiras29. Paginas de classificações, interpretações, estudos em detalhes.

Essas características marcaram de modo acentuado ou discreto a literatura missionária até em nossos dias. É justamente o caso, por exemplo, das revistas missionárias produzidas pelos combonianos: entre outras, a revista Nigrizia, em língua italiana; as revista Mundo negro, Iglesia sin

28 Cf.RZEPKOWSKI, Horst. Lessico di missiologia. Storia, teologia, etnologia ...p. 523 et seq.

29 Cf. SCHMID, Erich. Alle origini della missione dell Africa centrale (1846-1862). Verona-Itália: Novastampa, 1987, p. 38.

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Fronteras, Misión sin Fronteras, Esquila Misional, em espanhol; a revista

Além mar, em português; a defunta Sem Fronteiras30, em português Brasileiro; as revistas Comboni mission, World Mission, New People,

Comboni mission Newsletter, Leadership, em inglês; a revista Kontinente, em língua alemã; a revista Afriquespoir, em francês. Todas essas revistas voltadas preferencialmente para o universo negro ou para o mundo dos infelizes 31.

A literatura etnológica carrega inumeráveis histórias cujos protagonistas parecem traduzir a mesma dinâmica da identidade e da

alteridade.32 Trata-se de uma lógica que reduz a multiplicidade e a diversidade do mundo observável a imagens de oposições, diferentemente simuladas em relação aos valores, de vez em quando, atribuídos a um ou a outro pólo do binômio: Ocidente - resto do mundo, sociedades modernas - sociedades arcaicas, sociedades complexas - sociedades simples, povos de cultura - povos de natureza, cultura - barbaria, ciência - superstição, cristãos - pagãos, etc.

No amanhecer do colonialismo no continente negro, rumo aos novos territórios, nos mesmos navios, viajaram missionários e antropólogos à procura da diversidade, do sujeito a redimir, do objeto etnográfico a

classificar.33 É sempre o mesmo percurso, Ocidente - resto do mundo (quer

30 A produção da revista Sem Fronteiras foi oficialmente interrompida em Dezembro de 2003.

31 A correspondência dos missionários e toda a literatura de propaganda inspirada pelas cenas da vida africana leva ao mito da África toda a sua credibilidade. Por isso, o papel da imprensa missionária foi de suscitar na cristandade uma generosidade ativa e incessante dos fiéis. A idéia que se faz da missão acentua esse papel. A missão aparece como uma obra de compaixão para os pobres negros submissos à doença, à escravidão e à ignorância. Cf. ELA, Jean-Marc. Le cri de l homme africain. Questions aux chrétiens et

aux églises d Afri ca. Paris: L Harmattan, 1980, p.28.

32 A disciplina antropológica mesma pode ser considerada em seu conjunto como uma dinâmica da construção da identidade na época do contato generalizado e sistematizado entre o Ocidente e o resto do mundo. Dentro tal horizonte, ela (a antropologia) se deixa entender como o resultado de uma difícil síntese entre função mitológica e ambição cientifica.

33 Segundo o antropólogo italiano, Valerio Petraca, sobretudo a partir dos anos do colonialismo anos que viram florescer as sociedades missionárias e a formalização da ciência antropológica , os etnólogos encontraram-se fisicamente ao lado dos missionários, percorreram as mesmas veredas, permaneceram junto das mesmas populações.

Cf. Il cristianesmo allo specchio. Per un antropologia del cattolicesimo africano. Em

Terra d Africa, Milano: Unicapoli, 1996, p . 109-164. Os interesses coloniais em si se tornaram úteis à obra missionária e as potências coloniais a favoreceram também

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África, América, Ásia); é sempre o mesmo ponto de vista, o do Ocidente etnocêntrico que, com suas observações preconceituosas, interpreta, condena, manipula. Em termos de psicanálise freudiana, dir-se-ia que, como a criança em situação de impotência, o Ocidente tem necessidade de outrem para satisfazer suas necessidades: deseja , então, o retorno de uma presença benéfica.34 Em psicogênese, Piaget chamaria esse comportamento de egocentrismo infantil , uma estrutura de pensamento típica da criança cuja característica principal consiste no fato de ela ainda não distinguir seu ponto de vista de pontos de vista alheios, projetando seus próprios desejos no meio que a cerca. Em termos de legitimação da dominação, Franz Hinkelammert não hesita em dizer que

Toda a história do Ocidente pode-se resumir num lema: a vítima tem a culpa, o vitimador é inocente. O Ocidente é o vitimador do mundo inteiro, um mundo inteiro é sua vítima. Mas, para o Ocidente, o mundo inteiro tem a culpa, ele é um vitimador heróico e inocente35.

Tais representações não deixaram de estimular a grande aventura do expansionismo europeu em terras africanas. Até ao século XIX, a África permaneceu sobretudo no seu interior para a Europa, um enigma. Esse século marcou decisivamente a sorte da África, mudando o rumo do seu futuro. Motivos político-econômicos, científicos e religiosos tinham um papel significativo. Erich Schmid fala de interesse especial da Europa para

a África, particularmente no seu interno e sublinha particularmente dois fatores como causas de nova floração da atividade missionária no continente negro: a campanha contra a escravidão motivada pelas idéias políticas liberais e pelo pensamento humanitário que proclamaram os direitos humanos universais e as explorações geográficas que chamaram atenção de toda a

diretamente, quando reconheceram a sua importância para as colônias mesmas . SCHMID, op. cit., p. 38.

34 JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 3ª ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 139 (verbete: imaginário). 35 HINKELAMMERT, Franz J. Sacrifícios humanos e sociedade ocidental: Lúcifer e a

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Europa, o espírito de curiosidade geográfica que fará da África um

verdadeiro laboratório geográfico 36.

Esse é o motivo pelo qual a missão da época articulava a antropologia (etnologia) com a geografia. É uma velha história bem conhecida: o princípio universalista do Cristianismo realizou-se por meio da prática do proselitismo. A missio sacra, isto é, a pregação da fé aos pagãos (não cristãos), coincidia com o grande processo de aculturação colonial européia nos territórios africanos. Esse consistia em oferta de um grupo constituído pela Igreja, os missionários, ou de modo mais amplo, a cultura ocidental e em recepção de outro, isto é, as populações extraocidentais, pagãos a converter37.

A universalidade confunde-se com a uniformidade. Partindo do binômio

oferta-recepção, a ação missionária concretizou-se principalmente por meio deste procedimento: da prática originária da tabula rasa 38 (limpeza cultural) quer dizer, deculturação, prática geradora de descontinuidade e de desenraizamento, de ocidentalização dos povos negros africanos à prática da plantatio Ecclesiae da era contemporânea. Essa prática consiste em implantar no território extraocidental a estrutura eclesial romana (estruturas física, financeira, educativa e métodos de evangelização, catequese, leis canônicas, Regras de Vida, pessoal de comando, liturgia, etc). A verdade já está dada à Igreja, e com o erro não se dialoga.

A teologia centro-européia se erige, assim, como a teologia, universal e única legítima.

Assim, num grande projeto missiológico baseado sobre um pressuposto eurocêntrico, o Reino de Deus é identificado com a Igreja estrutural39. Isso

marcará de modo bem visível os escritos de Daniel Comboni e os manuscritos de Daniel Sorur. Resulta que muitas sociedades negro-africanas, sobretudo entre jovens, têm perdido a sua capacidade crítica, a sua criatividade; o

36 O pensamento humanitário e as idéias políticas liberais que circulavam na Europa que proclamou os direitos humanos, na realidade não era em si rigorosamente fundado na religião, mas facilitou a convicção de fazer valer o direito de todos os homens ao Evangelho . Cf. SCHMID, o p. cit., p. 38-44.

37 Cf. LANTERNARI, Vittorio. Occidente e Terzo Mondo. Bari-Italia: Dedalo Libri, 1967, p. 261.

38 Faz relembrar a ação missionária no século XVI, junto aos indígenas da América. 39 Sobre a evangelização da África, cf. ELA, J.M. Le cri de l homme africain. Paris: L Harmattan, 1990.

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indivíduo não consegue mais pensar a partir do seu universo simbólico e seu aparato semântico.

Depois de séculos de contatos epidérmicos, promovidos pelo comércio de escravos e de outras mercadorias, passar-se-ia, desde fins do século XIX, ao assalto de terra, à partilha de todo o continente negro.40

Acompanhando o comércio, a política econômica e a espada, a Cruz veio, sempre desde início, representando a figura dos missionários europeus.

Enquanto o dinheiro circulava com sua sede insaciável de rendimento. Protegida pela Espada, com sua vontade imperial de subjugar, a Cruz missionária tinha ambição mais alta e profunda: salvar o negro das trevas, oferecer a Luz da Redenção. Vieram juntos e tinham uma comum e pálida cor, por isso não poucos os confundiram, como se fossem o mesmo, mas eram diferentes. Trata-se de missão colonial .41 É evidente que essa fórmula se baseava na relação de superioridade-inferioridade da qual derivou uma desvalorização das culturas e sociedades indígenas.

Entretanto, entre aqueles que levavam a Cruz, eram largamente difundidos os preconceitos e o complexo de superioridade.

Caberia aos brancos, aos padres brancos, às madres brancas, levar a Boa Nova e o consolo . Aos negros, formados pelos europeus, bem e retamente orientados , caberiam apenas as tarefas menores, auxiliares. Nesse sentido, o teólogo africano, Jean-Marc Ela, observa que o século XIX tem acreditado que cabia aos europeus ser os guias e tutores das raças inferiores . As escolas da missão não escapam ao dogmatismo que liga a universalidade ao designo geral do imperialismo da cultura ocidental.42

40 De fato , os tratados demarcaram as fronteiras das possessões européias a essas fronteiras, com todas as conseqüências, são as dos estados africanos até hoje. Num certo sentido, pode-se dizer que esses tratados foram a mais permanente característica do imperialismo eu ropeu na África ... As conseqüências da partilha, no entanto, perduram ... A África atual, num sentido político, foi criada pelos europeu daqu ela época

.WESSELING, H.L. Dividir para dominar: a partilha da África 1880-1914 ...p.13. 41 Há convergência de interesse entre missão e movimento colonial que favorecia na Igreja católica a tendência de colocar no mesmo plano civilização e atividade missionária. Para aprofundar melhor o assunto cf. RZEPKOWSKI, Horst. Lessico di missiologia.

Storia, teologia, etnologia ... p. 420s; 42 Cf. Le cri de l homme africain...., p.32.

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Assim, esses negros tornavam-se portadores de cultura ocidental e ramificadores estruturais da organização eclesial européia43 quiçá até hoje , prosseguindo a dialética antitética44 cultura superior - cultura inferior 45,

Igreja Romana - igrejas pobres , Províncias do Norte - províncias do sul , Nós - os africanos ; dando continuidade ao método de aculturação colonial. As estruturas das missões são um efeito da empresa do poder colonial na África. E é indubitável que a expansão das Igrejas no século XIX constitui um aspecto da expansão do Ocidente no mundo.46 Talvez hoje em grau menor, mas não deixa de ser colonização .

Logo na introdução de Alle origini della missione dell Africa centrale, Erich Schmid lembra que a pré-história do Instituto missionário comboniano coincide com a fundação e o desenvolvimento da Missão da África Central na metade do século XIX47. Não é difícil perceber e compreender a existência das heranças dessas atitudes e práticas na convivência multiétnica entre os combonianos. É muito valida a aplicação, nesse contexto, do provérbio Bantu bakongo48 que diz : a ferida pode desaparecer, mas a marca de

cicatriz permanece; e ainda, em certos casos algumas feridas menos cicatrizadas reanimam a dor . Isso se refere à dimensão coletiva do mal e ao

43 Cf. TRINCHESE, S., Sviluppi missionari e orientamenti sociali. Chiesa en el magistero di Leone XIII. In: ROSA G. De; GREGORY, T.; VAUCHEZ, A. (dir). Storia dell Italia

Religiosa 3. L Età Contemporanea. Milão: Laterza, 1995 .

44 Segundo Kathryn Woodward, A conceitualização da identidade envolve o exame dos sistemas classificatórios que mostram como as relações sociais são organizadas e divididas; por exemplo, ela é dividida em ao menos dois grupos em oposição nós e eles (...) . Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual, In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 14.

45 Geralmente, hoje, isto não é proclamado verbalmente, mas expresso através das atitudes. Não é difícil perceber, basta observar.

46 Cf. ELA, Jean-Marc, op.cit, p. 33.

47 Cf. SCHMID, o p. cit., p. 9. Lembra-se de que a primeira presença cristã remonta ao período entre séculos II e IV, nas regiões setentrionais do continente, onde se implantou um Cristianismo latino-africano. É época brilhante do s grandes Doutores e escritores como Origenes, Atanásio, Cirílio, Tertuliano, Cip riano, Agostinho.Esse Cristianismo, não apenas parou na difusão, mas, logo, d esapareceu em coincidên cia com o avanço do Islã, a partir de século VII. Uma segunda onda cristã coincidiu com a época de grandes viagens atlânticas do século XV que levaram à descoberta geográfica da África tropical, tomando posse só nas regiões litorâneas. Apenas na época colonial, no século XIX que começa a exploração, com a conseqüente colonização das regiões internas da África negra; isso coincidiu com u m novo surgimento missionário. cf. RZEPKOWSKI, Horst.

Lessico di missiologia . Storia, teologia, etnologia ..., p. 24-27; JOÃO PAULO II, Exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in Africa [14.09.1995] em AAS88 (1996), p. 5- 82.

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aspecto da recepção por herança : determinadas faltas podem, pelo que parece, estar vinculadas a grupos humanos como tais e assim marcam gerações e podem-se inscrever numa cultura e em estruturas sociais49.

Nesse sentido, as atitudes e os comportamentos racistas e preconceituosos não são conjunturais e isolados: sedimentam-se em raízes mais profundas, que vão se construindo e socializando nos processos educativos, até impregnar por completo a forma de viver e de pensar dos indivíduos.

Assim, na difusão de cultura eurocêntrica as projeções cartográficas convertem o Ocidente no centro do mundo. A cronologia oficial se circunscreve aos acontecimentos do Ocidente e da sua órbita ou as chaves interpretativas aparecem dominadas pelo crescimento econômico como excelência de civilização. O arquétipo viril apresentado é modelo de pessoa, do cristão. Todo isso consolida alguns profundos estereótipos sobre os quais se constróem os esquemas racistas de interpretação da realidade.

Não é, portanto, uma acusação, um julgamento, nem calúnia ou difamação afirmar que, desde sua origem, o Instituto missionário comboniano entra, como muitos outros institutos missionários de origem ocidental da mesma época, no século XXI carregando em seus ombros os resíduos de um século e meio: a marca de uma ambigüidade intrínseca vivida no conflito e numa cegueira ou inconsciência coletiva entre amor pela Nigrícia(a dedicação missionária pelo o mundo negro) e o sabor e sentimento de uma etnia branca hegemônica e superior aos outros, diferentes, negros, infelizes . É uma afirmação infeliz, mas real. Só a má fé pode negá-la.

49 Cf. DUBARLE, A-M. Le péché original. Perspectives théologique. Paris: Tournai, 1983.

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1. 2 Filosofia comboniana da Evangelização:

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