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O negro no entendimento de Daniel Comboni

Capítulo I. O contexto no qual se deu a Experiência

1.2. Filosofia comboniana da Evangelização:

1.2.1 O negro no entendimento de Daniel Comboni

A África, o negro, não se apresenta como mera matéria de estudo e da curiosidade científica, mas, sobretudo, como lugar de cristofania no pobre; lugar da humildade do Deus vivo; lugar da revelação divina. Nesse sentido, o acesso ao encontro com o negro é, antes de tudo, uma questão ética de justiça. Nesse acesso encontra-se certamente também um caminho a Deus. O negro está na condição de negação, isto é, no rumor anônimo e insignificativo do ser. Está na condição indigna, de não-sentido. É necessária uma reflexão sobre o procedimento para sair dessa condição do João ninguém - como se diria na linguagem popular brasileira. Reflexão essa que Daniel Comboni quer fazer a partir de um lugar considerado rebelde e criticizador 54. Contudo, não é uma situação aporética. Isso exige o ser- para-o-outro , o que vem a significar a responsabilidade ética pelo negro que lhe permite superar o haver impessoal . Em Daniel Comboni, a responsabilidade funda-se no plano antropológico, na necessidade do negro codificada na sua cultura como projeto de vida, como diria Paulo Suess55 e

52 Essa formula poderia ter sido usada para outra finalidade que não seja a da evangelização, mas nos limitamos sobre as aspirações de Daniel Comboni.

53 Este projeto se constituiu de uma série de postulados teológicos e práticas a respeito da atuação missionária na África e frisa a necessidade de eleger o negro africano como agente da própria evangelização.

54 Em Graça e experiência humana. A graça libertadora no mundo(Petrópolis: Vozes, 2003), de BOFF. L, encontra-se o convite a perceber a importância do lugar a partir donde se elabora uma reflexão teológica; sobretudo quando se trata de situações eticamente gritante. Cf. p. 107-110.

55 Cf. Evangelizar a partir dos projetos históricos dos outros. Ensaios de missiologia. São Paulo: Paulus, 1995.

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na exigência do princípio teológico do amor para com o próximo 56, como socialização e credibilidade da fé ( Mc 12, 31; Mt 22, 38s).

Para ter logo uma idéia sobre o que estava acontecendo no entendimento de Daniel Comboni, basta observar com bastante atenção o seu brasão episcopal. Este mostra que o bispo italiano foi movido não apenas por um conhecimento profundo das situações e condições do continente negro57 chamado no seu tempo de Nigritia, em latim, Nigriland, em inglês (terra dos negros) e de seus filhos, mas, sobretudo, por um espírito religioso. Em

Daniel Comboni, de A. Capovilla, encontra-se esta leitura:

O brasão que o novo bispo escolheu denotava o objeto das suas fatigas e os motivos da sua esperança. No plano inferior estava representada a península africana, com a palavra Nigritia escrita e,

de cada lado, quais símbolos dos inimigos naturais e dos invisíveis da raça negra, um leão e um crocodilo em posição de assalto. No plano superior, sob a legenda in hoc signo vinces, refulgem os Corações de

Jesus e de Maria 58.

O missionário torna-se pioneiro e explorador: procurar penetrar cada vez mais no coração do Continente misterioso com objetivo de redimi-lo. Na época de Daniel Comboni, a África foi conhecida como um território hostil, de difícil penetração, de grandes sacrifícios de missionários, com seu clima agressivo e diferente do europeu, provocando diversas formas de febres e epidemias que provocavam a morte desses; terra a redimir com fatigas de árduos trabalhos apostólicos.

Até metade do século XIX, no olhar do europeu, a África não é apenas um grande enigma, território misterioso, desconhecido no seu interior, mas também um espetáculo sublime, portanto, campo cobiçado; campo a estudar, a descobrir e a conhecer nos planos histórico, físico e social; campo de competições de interesses científicos, coloniais e religiosos.

Percebe-se nas idéias de Daniel Comboni uma imagem de classe, uma forma de estratificação social. No que se refere à sua população, a África é

56 Para o Evangelista João, o amor para com o próximo consiste em passar adiante o amor de Jesus (Jo 13, 34s) e é a forma visível tomada pelo amor p ara co m Deus escondido (1Jo 4, 7-16).

57 Cf. o quadro histórico dos descobrimentos na África. COMOBONI, Daniel. Escritos. Lisboa: Além-mar, 2003, p. 1863-1900.

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um continente de miséria, pobreza, atormentado pela carestia59, pátria mais infeliz e abandonada do mundo60. A África é explorada e humilhada em seus filhos desde os traficantes de escravos aos comerciantes árabes muçulmanos de marfim e de armas. Há muito sofrimento provocado pelo Islã 61 que mantém os africanos na ignorância 62. As potências coloniais européias

afirmavam o seu domínio nas zonas interiores do continente, até então inexploradas. Nada melhor do que ouvir as próprias palavras de Daniel Comboni no relatório que enviou à Sociedade de Colônia na data de 6, de Junho de 1871:

(...) a situação dos negros é bem lastimosa e triste. Muitos anos de experiência convenceram-me de que não só o muçulmano e o infiel, mas também o cristão de boa índole e irrepreensível, com raras exceções, consideram os infelizes negros não como homens, como seres dotados de razão, mas como objetos donde pretendem obter lucros. Em geral, um cavalo, um camelo, um burro, um cão, uma gazela são, de longe, mais apreciados que um negro ou uma negra. O valor destes últimos está apenas em proporção com o preço que custaram o com o dinheiro que eles podem proporcionar com os seus serviços e fadigas e até com as suas baixas paixões. Aqui, o negro, como ser racional, não tem valor algum.( ...). Estes pobrezinhos, arrebatada violentamente a seus pais, têm que fazer duras e perigosas viagens para depois caírem as mãos de amos bárbaros que os vendem uns aos outros oito ou dez vezes. E depois acabam por se tornar objeto de desprezo e vítima de crueldade. A caridade alemã, que mantém os nossos institutos, é a mais nobre obra de civilização e favor de uma parte da família humana mais sofredora e abandonada da Terra e assim os negros são elevados não só a fé cristã mas também à civilização européia.(...) A existência de um instituto no qual os negros são educados na fé e em todos os ramos da cultura, como os institutos da Europa já fez milagres no Egito. De fato, a muitos egípcios perecia absolutamente impossível que os negros pudessem se educados na civilização e que tivessem as aptidões dos brancos. Hoje estão convencidos de que isso se converteu numa esplêndida realidade 63 .

No entanto, Daniel Comboni observa que os negros constituem as tribos primitivas64; é uma raça marcada por uma especial condição de inconstância e

59 Cf. COMOBONI, Daniel. Escritos. Lisboa: Além-mar, 2003, n o 2320, p. 757. 60 Cf. Ibid., n o 1105, p. 333.

61 Cf. Ibid., n o 1721, p. 545. 62 Ibid., n o 4958, p. 1523. 63 Ibid., n o 2524s, p. 827-828. 64 Ibid., n o 4131, p.1304.

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indolência65 . Escrevendo a seus pais, Daniel Comboni conta que é verdade

que estes homens (negros) matam e massacram, são cruéis com os brancos,

mas só quando provocados . Acerca da vida espiritual,

pelas informações que temos, não há nenhuma religião: apenas reconhecem e crêem num espírito invisível que tudo criou, o qual, às vezes, desce a visitá-los sob a aparência duma lagartixa, dum rato ou de uma ave66.

Sobre os Dinka, a tribo de Sorur. Segundo Daniel Comboni, é a maior tribo da África Central. É a razão pela qual desde muito tempo pensou escolhê-la como ponto central de suas fadigas e como campo de seus suores. Os Dinka andam nus, como todas as tribos que tem conhecido até então, cobrem de cinza todo o corpo, inclusive a cabeça e os olhos; isso para se

protegerem dos mosquitos, que em números infinitos, de diversas espécies, atormentam quem vive na África Central . Comboni acha que os Dinka têm traços físicos distintos das outras raças de negros: fronte espaçosa e protuberante, o crânio achatado e inclinado até as fontes, o corpo comprido e delgado. Comboni tem impressão de que os Dinka são preguiçosos com uma vida ociosa e indolente. Porém , a luz do Evangelho brilhará aos seus olhos

e, penetrando em suas mentes e o seu coração, com a graça divina mudarão os seus pensamentos, índoles e costumes . Os povoados Dinka são bastante miseráveis.67

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