A criança, a narrativa e a escola
2.3. O Conto Chapeuzinho Vermelho
Os contos correspondem a uma parte importante da infância, pois além de ensinarem pelo método indireto, despertam na criança o desenvolvimento das atividades de leitura e produção de textos escritos ou orais, já que elas gostam de contar ou escrever os acontecimentos reais ou imaginados que passam a conhecer. Outro aspecto positivo do conto seria, segundo Bettelheim (1980), a possibilidade de este gênero ajudar a criança a lidar com questões emocionais, como o medo e a perda, por exemplo, o que favoreceria a compreensão da realidade por meio da imaginação, ou seja, o conto permite aproximála mais do mundo real, já que elas ainda não o conseguem compreender por completo. Corrobora com o autor Abramovich (1995), para que o importante é a criança acreditar em um mundo irreal e poder vivenciar questões reais, como se estivessem acontecendo com ela, o que reforça o caráter imaginativo deste gênero textual.
Levandose em conta todas essas qualidades do conto, acreditamos ser ele o material mais satisfatório para podermos empreender nossos estudos sobre as relações da criança com a imaginação e a realidade.
Tratando especificamente do conto Chapeuzinho Vermelho, podemos dizer que é um conto bastante conhecido, apreciado pelas crianças e recomendado nos guia de leitura. Segundo Darnton (1986), referências a este conto são bem antigas, como a obra de Egberto de Lièges, Fecunda ratis, datada do século XI, que contava a descoberta de uma menina, usando uma manta vermelha, na companhia de lobos, e a do livro Gesta Romanorum, organizado por Geoffrey Chaucer, John Gower, Giovanni Boccaccio e William Shakespeare, primeira coleção de contos europeus escrita em latim e publicada no século XIV, que se refere à existência, no passado, a um mito cujo enredo relata que Crhonos havia engolido os filhos, mas estes conseguiram sair de seu estômago e encheramno de pedra.
No século XVI, a obra do escritor italiano Giovanni Straparola, Piacevoli Notti (Noites de Prazer), publicada de 1550 a 1553, trouxe inúmeros textos que depois foram adaptados por Charles Perrault e publicados, em 1697, na obra Histórias ou contos do tempo passado, com suas moralidades: Contos de Mamãe Gansa.
Perrault, ao escrever este conto, não queria apenas divertir o público, mas apresentar uma lição de moral para os integrantes da corte. Apesar de ter sido cortesão e arquiteto do reinado de Luís XV e de não nutrir nenhuma afeição pelos camponeses, foi buscar nas histórias orais a inspiração para escrever, adaptandoas para o salão, a fim de eliminar os aspectos que não importavam para a realeza. 24 Este feito de Perrault, o de adaptar histórias populares para a corte, foi inédito na história da literatura francesa do século XVII, pois representava um contato entre as culturas popular e a elitista. 24 Acreditavase, segundo Darnton (op. cit), que este contato de Perrault com a cultura popular deuse por meio da babá de seu filho.
Em 1812, os irmãos Grimm publicaram o conto Chapeuzinho Vermelho. Em uma de suas versões, os irmãos acrescentaram ao clássico final (o salvamento da avó e da neta pelo caçador), uma outra visita que a menina fez a avó, um outro lobo tentando atraíla e a chegada de Chapeuzinho à casa da vovó para contar o ocorrido. Juntas, avó e neta, trancam a porta para impedir a entrada do lobo que escorrega do teto e cai em um recipiente cheio de água e morre afogado. Os contos, apesar de escritos há muito tempo, ainda despertam o interesse tanto do senso comum como da ciência. Prova disso é o interesse da Psicanálise, da Lingüística e da Educação sobre este material.
Tratado especificamente à luz da psicanálise, podemos dizer, segundo Bettelheim (1980), que o conto Chapeuzinho Vermelho representa os perigos da sedução sexual na adolescência. As personagens mãe e avó nada podem fazer para proteger Chapeuzinho desse perigo. Já as figuras masculinas, o lobo e o caçador, representam, respectivamente, o sedutor e a figura paterna. O título do conto revelanos ainda as emoções violentas e o surgimento da menarca, que marca a passagem da infância para a adolescência.
Bettelheim (op. cit.) mostranos ainda que Chapeuzinho é uma personagem ambígua, ao mesmo tempo em que é vítima, é responsável pelo fato trágico: a morte de alguém, no caso do lobo. Para o autor, este é o motivo pelo qual o conto Chapeuzinho Vermelho é tão aceito universalmente, pois mostra que apesar de virtuosa, a garota, assim como qualquer pessoa, é passível de sofrer tentação.
Corso e Corso (2006) acrescentam também que a conversa, aparentemente ingênua de Chapeuzinho com o lobo, possui uma forte conotação sexual, constituindo o
jogo da sedução: os olhos, o ouvido, o nariz e, finalmente, a boca. Esta última peça do jogo é bastante utilizada pelo lobo, empregada sempre para convencer e devorar os personagens das histórias nas quais ele aparece: Chapeuzinho Vermelho e Os Três Porquinhos.
A boca, neste sentido, pode significar tanto a arte de convencer alguém, como os órgãos sexuais.
O lobo, segundo Corso e Corso (op. cit), foi escolhido para este papel porque representa o lado mais agressivo do cachorro, animal que é ao mesmo tempo amado e temido pelas crianças.
Já a figura do caçador, representa o pai. Neste papel, o caçador, assim como um pai, protege, castiga e ensina, sem a necessidade de discursos extensos.
Na atualidade, podemos resumir o conto em estudo como sendo a história de Chapeuzinho Vermelho, uma garota muito bonita, que ganha de sua avó um chapéu vermelho, (este chapéu parece mais um capuz), daí a razão de seu nome. Certo dia, sua mãe pede que ela vá à casa de sua avó, que está doente, deixar alguns docinhos. No caminho, a menina encontra o Lobo Mau que a engana, desviandoa de seu caminho, para que ele possa chegar mais rápido à casa da vovó. Ao chegar lá, o lobo engole ou tranca a vovó no armário, veste as roupas da boa velhinha e deitase na cama. Quando Chapeuzinho chega, nota algo de estranho na aparência da avó e começa a fazer várias perguntas, estabelecendo o diálogo canônico. A menina grita, quando descobre que está falando com o lobo, e então aparece o caçador para salvála.
Apesar de esta ser a versão mais conhecida, existem variações. Na conversa entre Chapeuzinho e sua mãe pode existir ou não a recomendação da mãe para que a garota não fale com ninguém, não pare no caminho e não vá pela floresta. O lobo também pode ser chamado de “anjo da floresta”. Quando o caçador chega à casa da vovó, sua ação depende do que o lobo fez com a vovó: se a engoliu, o caçador abre a barriga do lobo e a liberta, se a trancou no armário ou no guardaroupa, ele abre a porta deste móvel e também a liberta. No final, o caçador pode ainda jantar com Chapeuzinho e a vovó. De qualquer modo, o caçador salva as duas. Neste conto a desobediência de Chapeuzinho à recomendação de sua mãe teve como conseqüência o seu passeio pelo bosque e o perigoso encontro com o Lobo Mau. Estas ações desencadeiam a conversa entre o lobo disfarçado de avó e a menina. A linguagem utilizada é metafórica, pois existe a participação de animais que falam e agem como humanos, como o lobo. O tempo é praticamente cronológico, apesar de ser indeterminado, com a ação parecendo acontecer em apenas um dia. A trama se desenvolve em três lugares distintos: a casa da mãe, a floresta ou o caminho e a casa da vovó. O desfecho, como não poderia deixar de ser, é feliz.
Após estas considerações sobre o conto Chapeuzinho Vermelho, vejamos, a seguir, algumas reflexões sobre a aprendizagem da língua escrita na escola, já que é com base nesta modalidade que nosso corpus será estudado.