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O controle de constitucionalidade e sua finalidade: uma visão doutrinária

Capítulo 2. Os elementos da Argüição de Descumprimento de Preceito

3.1. O controle de constitucionalidade e sua finalidade: uma visão doutrinária

No século XVIII, surge o Movimento Constitucionalista,238 dando guarida à normatização de regras jurídicas de hierarquia superior reunidas em uma nominada Constituição, que serve como limitadora dos Poderes do Estado, preservando os direitos especialmente de liberdade dos cidadãos contra a opressão governamental.

Nesta seara, as Constituições (Cartas Magnas) garantiam inicialmente a separação dos poderes para evitar abusos, tendo também na supremacia de suas regras e preceitos um meio de preservar as liberdades públicas.

Quanto à separação de poderes, esta era uma exigência tão forte no Movimento Constitucionalista que o art. 10 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão estabelecia enfaticamente que: “toda sociedade, onde a garantia dos direitos não esteja assegurada nem a separação de poderes determinada, não possui Constituição”.

Esta separação de poderes para obstar abusos - Legislativo (que edita leis), Executivo (que aplica as leis e desenvolve políticas públicas) e Judiciário (que atesta a correta aplicação das normas) - tornou-se um dogma nos Estados Constitucionais.239

Alguns doutrinadores conduziram a tese da separação de poderes de forma tão radical que chegavam a estabelecer ser esta quase total, significando mesmo numa independência estanque dos poderes, desvirtuando as idéias originais de Montesquieu

238 Sobre o surgimento e a evolução do Movimento Constitucionalista, ver BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 4ª edição, 1993 e SALDANHA, Nelson. A Formação da Teoria Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2ª edição, 2000.

que não pregara a divisão absoluta dos poderes, mas sim a separação de funções e sua interpenetração constante para manutenção do equilíbrio institucional.240

Esta tese equivocada de separação total de poderes acabou por dificultar a própria proteção e garantia das normas e direitos constitucionalmente assegurados, retardando o desenvolvimento das formas e métodos de controle de constitucionalidade.

Portanto, diante desta divisão de poderes estatais “independentes”, percebe- se que a efetivação de um controle de constitucionalidade real, - diga-se controle de atuação do Legislativo e Executivo pelo Poder Judiciário -, para proteção das normas, preceitos, princípios e valores constitucionais-, era algo de certa forma bastante discutida e conflituosa.241

Tal fato gerou a necessidade de uma posição incisiva do Juiz da Suprema Corte Norte-Americana John Marshall que, no histórico caso Marbury x Madison, questionou se deveria o julgador preservar uma lei que está em afronta à Constituição, ou garantir a Constituição declarando a não aplicação de uma lei que a afrontasse.

O voto e a decisão do Juiz Marshall constituem um marco do Constitucionalismo Moderno, tendo se fundado na tese da supremacia constitucional no sentido de que a Constituição é norma superior e por isto em caso de conflito com a lei

240 Sobre o desvirtuamento da teoria de Montesquieu, leciona Aderson de Menezes: “Com efeito, os

revolucionários norte-americanos e franceses, inspirando-se embora em Montesquieu, desvirtuaram o sentido de sua construção teórica, empregando amiúde a expressão separação de poderes ou divisão de

poderes, com a qual fizeram escola dentro do constitucionalismo hodierno. E nesse outro sentido,

passaram a considerar os poderes estatais separados ou divididos, inteiramente isolados em departamentos estanques, sem comunicação possível de um a outro. Daí, evidentemente, o uso imoderado das locuções poderes independentes, mas harmônicos entre si e poderes separados, porém coordenados. Falava-se então, em teoria da separação dos poderes, concedendo-se injustamente a paternidade de tal ou qual doutrina ao escritor das Letras Persas. (...) Se havia chegado à incrível demasia de afirmar que, Montesquieu pregara a separação pura e simples dos poderes. Nada mais falso, muito embora, ainda atualmente, autores de renome continuem a insistir, quando não seja em advogar o excesso em si mesmo, pelo menos em agasalhar o engano interpretativo”. (MENEZES, Aderson de. Teoria Geral do Estado. Rio de Janeiro: Forense, 1996, pp. 254/255). Também, no mesmo sentido, Eros Roberto Grau colaciona: “O que importa verificar, inicialmente, na construção de Montesquieu, é o fato de que não cogita de uma efetiva separação de poderes, mas sim de uma distinção entre eles, que, não obstante, devem atuar em clima de equilíbrio”. (GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2ª edição, 1998, p. 171).

241 Diante desta rígida separação de poderes, a preservação da Constituição pelo Judiciário ficava deveras

prejudicada e era tímida nos primeiros momentos das Revoluções Contemporâneas (Americana e Francesa).

deve prevalecer e manter sua integridade; devendo, portanto, a lei contrária à Constituição ser expurgada do sistema jurídico posto.

A idéia da supremacia constitucional ganha assim inicialmente uma visão meramente objetivista, significando que a Constituição é uma norma superior advinda do Poder Constituinte, e que por isto deve prevalecer em relação a outras normas existentes dentro de um ordenamento jurídico.

Tal visão mecanicista e objetivista da hierarquia normativa, como fundamento básico da supremacia constitucional, ainda vem estampada na atualidade e de forma reducionista em alguns doutrinadores.242

Nesta esteia, a supremacia da Constituição seria garantida por um controle de constitucionalidade no qual se buscaria preservar a Carta Magna, aplicando as normas constitucionais por serem estas hierarquicamente superiores. Bem didática a respeito é a lição de Mauro Cappelletti sobre a forma do juiz aplicar a Constituição e declarar a inconstitucionalidade de normas inferiores, veja-se: “Raciocina-se em última análise, deste modo: a função de todos os juízes é a de interpretar as leis, a fim de aplicar aos casos concretos de vez em vez submetidos a seu julgamento; uma das regras mais óbvias da interpretação das leis é aquela segundo a qual, quando duas disposições legislativas estejam em contraste entre si, o juiz deve aplicar a prevalente; tratando-se de dispositções de igual força normativa, a prevalente será indicada pelos usuais critérios ‘lex posterior derogat legi priori’, ‘lex specialis derogat legi generali’, etc.; mas evidentemente, estes critérios não valem mais – e vale, ao contrário, em seu lugar, o óbvio critério ‘lex superior deroga legi inferiori’ – quando contraste seja entre disposições de diversa força normativa: a norma constitucional, quando a Constituição seja ‘rígida’ e não ‘flexível’, prevalece sempre sobre a norma ordinária contrastante, do mesmo modo como a lei ordinária prevalece, na Itália assim como França, sobre o regulamento, ou seja, na terminologia alemã, Cesetze prevalecem sobre as

Verordnungen. (...) Logo, conclui-se que qualquer juiz, encontrando-se no dever de

decidir um caso em que seja ‘relevante’ uma norma legislativa ordinária contrastante

242 VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2ª edição,

com a norma constitucional, deve não aplicar a primeira e aplicar, ao invés, a

segunda”.243

Como se atesta, seria o controle de constitucionalidade uma tarefa de subsunção e comparação da compatibilidade normativa entre uma lei e a Constituição, afastando-se em caso de conflito a lei para preservação das normas e princípios constitucionais.

Não se considerava, assim, a finalidade do controle de constitucionalidade como sendo mais ampla do que a mera proteção objetiva das normas constitucionais.

Tal visão causava perplexidade ao se buscar fundamentar como o Poder Judiciário poderia decidir estar uma lei afrontando a Constituição. Tal declaração do Poder Judiciário e os efeitos de sua decisão, dentro de uma análise tradicional, poderia inviabilizar a atuação do Poder Legislativo (representado por pessoas escolhidas pelo povo), obstando também a efetivação de políticas públicas pelo Poder Executivo, implicando isto aparentemente numa invasão de um poder sobre os outros, impedindo o desenvolvimento social e podendo gerar abusos com a quebra do equilíbrio institucional.

Até hoje, o controle de constitucionalidade feito pelo Poder Judiciário é questionado em certos aspectos. Por exemplo, não é permitida ainda em regra a extensão de certos efeitos de um julgado em sede de controle de constitucionalidade para determinar ao Poder Público adotar certas medidas na seara jurídico-política- social-econômica (necessidade de manejo do Apelo ao Legislador advindo do Modelo Alemão), ocorrendo também a resistência à adoção da redução do texto de uma lei ou a ampliação de seus efeitos, para adaptá-las aos ditames constitucionais dentro de uma moderna hermenêutica constitucional (Declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, Declaração de inconstitucionalidade com redução parcial do texto).244

243 CAPPELLETTI, Mauro (trad. Aroldo Plínio Gonçalves). O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2ª edição, 1992, p. 75.

244 Cf. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1998, passim.

O tema ganha contornos e preconceitos marcantes quando se argumenta que o controle de constitucionalidade promovido pelo Poder Judiciário significa a invasão dos magistrados sobre os demais poderes em especial sobre o Legislativo, conduzindo à ameaça de um “governo de juízes”. Jorge Miranda refere-se a tal preocupação em sede de controle de constitucionalidade, sintetizando o pensamento de ilustres doutrinadores acerca dos poderes conferidos ao Judiciário e da possibilidade de ocorrência de abusos dentro de uma visão juspolítica tradicional: “Não quer isto dizer, no entanto, que o princípio da fiscalização jurisdicional não enfrente dificuldades ou resistências, por se temer ‘o governo dos juízes’, ou, pelo menos, a politização da justiça, em vez da judicialização da política. (...) Basta recordar a postura de Schmitt – para quem a essência do Estado é a decisão política; a de Loewenstein – se se entrega aos tribunais o direito de frustrar uma decisão política do Governo ou do Parlamento, corre-se o perigo ou de a decisão dos tribunais não ser acatada ou de a decisão política do Governo ficar substituída por um acto judicial que, embora revestido jurídico-constitucionalmente, não é senão um acto político de pessoas sem mandato democrático; a de Burdeau – a autoridade com poder de fiscalização é quem fixa o conteúdo de um política através da interpretação da Constituição; a Constituição não é feita para os juízes, é feita para os governantes; a política do juiz só pode ser negativa; ou a de Alfred Grosser – é difícil a posição dos tribunais constitucionais frente a conflitos de valores ou a antagonismos que atinjam os pontos mais sensíveis dos cidadãos ou os fundamentos éticos da sociedade”.245

Em sentido semelhante, Mauro Cappelletti também ressalta tal inquietude acerca do controle de constitucionalidade a cargo do Poder Judiciário, veja-se a lição do Mestre: “O aspecto mais sedutor, diria também o aspecto mais audaz e, certamente, o mais problemático do fenômeno (o controle de constitucionalidade) que estamos para examinar está, de fato, justamente aqui, neste encontro entre os dois poderes e as duas funções: o encontro entre a lei e a sentença, entre a norma e o julgamento, ente o

legislador e o juiz”.246

245 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional – Constituição e Controle de

Constitucionalidade – Tomo II. Coimbra: Coimbra Editora, 3ª edição, 1996, p. 387.

246 CAPPELLETTI, Mauro (trad. Aroldo Plínio Gonçalves). O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2ª edição, 1992, pp. 26/27.

As críticas acima destacadas demonstram quão insuficiente é justificar o controle de constitucionalidade apenas com base na supremacia formal da Constituição sobre as demais normas jurídicas, sob pena de dar margem à temerosa tese de dominação do Poder Judiciário sobre os demais poderes dentro de uma visão tradicional restritiva de separação estanque das funções estatais, não se visualizando que o controle de constitucionalidade na realidade é acima de tudo um instrumento de efetiva proteção dos direitos individuais, da integridade das normas, dos valores constitucionais e da cidadania, como a seguir restará delineado inclusive em sede da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental.

3.2. O Poder Judiciário, o povo e o controle de constitucionalidade: uma via para