• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 2. Os elementos da Argüição de Descumprimento de Preceito

2.1. O Descumprimento

2.1.3. Os limites subjetivos do descumprimento

Também, como já delineado na Lei nº 9.882/99, no plano subjetivo, o “descumprimento” de preceitos fundamentais ficou restrito a combater atos perpetrados pelo Poder Público. Além disto, nos termos da lei, somente pode ser proposta a Argüição pelas mesmas pessoas e entes legitimados para intentar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Art 1º, caput c/c art. 2º da referida Lei)

149 PIMENTEL, Baruch Spinoza. “Da problemática da prova na argüição de descumprimento de preceito

fundamental”. In: Jus Navigandi, ano: 6, nº 55, http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2727, maio de 2002.

150 Com semelhante entendimento, a lição de Érika da Rocha von Sohsten: "Observando a lei 9.882/99

com mais atenção, ver-se-á uma obrigação, tão somente, para apresentação de prova do preceito fundamental constitucional infringido, conforme o art. 3º, inciso III da Lei nº 9.882/99. (...) Diante disso, é importante considerarmos a possibilidade de que, caso o requerente não tenha idéia, o que é possível, daquilo que acredite estar obrigado a provar, sofrerá indeferimento liminar sob a luz do art. 4º da mesma norma". (SOHSTEN, Érika da Rocha Von. “Argüição de descumprimento de preceito fundamental: um estudo crítico”. In: Jus Navigandi, ano: 7, nº 60, http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3370, março 2003).

Nestes pontos, entende-se que a referida Lei nº 9.9882/99 foi deveras restritiva, merecendo ser criticada.

Primeiramente, nos termos da Lei nº 9.882/99, deve-se compreender qual o Poder Público é causador de afrontas a “preceitos fundamentais”. Seriam apenas os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, ou também entes e pessoas privadas no exercício do “munus publico” que descumprirem preceitos fundamentais a justificar a interposição da Argüição constitucional?

Entende-se que a expressão “Poder Público” deve ser compreendida em sentido amplo, englobando inclusive os entes privados que desempenham atividades inerentes ao Estado, em benefício da necessidade de maior proteção aos preceitos fundamentais. Neste sentido, bem clara a lição de Walter Claudius Rothenburg: “Uma Interpretação conforme a Constituição (do caput do artigo 1º da Lei nº 9.882/99) impõe- se, para admitir a argüição também na eventualidade de o preceito fundamental ser violado por ato de particular em condições de equiparação a ato do Poder Público”.151

Também, Daniel Sarmento delineia, com precisão, a necessidade de proteção aos preceitos fundamentais em relação a atos agressivos perpetrados por entes privados nas atividades em substituição do Estado. Claras as palavras do autor: “Parece- nos que os atos privados que, pela sua natureza, forem equiparáveis à ação estatal, poderão sujeitar-se também ao controle por via da ADPF, caso inexista outro meio para sanar a lesividade. Num contexto como o atual, em que a tônica constitui a substituição do Estado por atores privados, através de desestatizações, terceirizações, parcerias com a iniciativa privada, e outros mecanismos assemelhados, é assaz importante vincular estes atores ao respeito aos direitos fundamentais e à Constituição, através de todos os meios e remédios disponíveis”.152

151 ROTHENBURG, Walter Claudius. “Argüição de descumrpimento de preceito fundamental”. In:

TAVARES, André Ramos & ROTHENBURG, Walter Claudius (orgs.). Argüição de descumprimento de

preceito fundamental: análises à luz da Lei nº 9.882/99. São Paulo: Atlas, 2001, p. 217.

152 SARMENTO, Daniel. “Apontamentos sobre a argüição de descumprimento de preceito fundamental”.

O limite subjetivo do “descumprimento” deveria ser bem mais amplo do que o acima delineado, englobando qualquer tipo de ato gravoso, seja da lavra do Poder Público, da iniciativa privada ou de qualquer cidadão, quando tais atos afetassem os preceitos fundamentais de forma indelével e sensível.

Neste sentido, é bastante criticada a restrição da utilização da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental apenas contra atos do Poder Público. Clara a lição de Eduardo Rocha Dias neste sentido: “Delimita o objeto da argüição, porém, em ‘evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público’ (artigo 1º). Afasta-se, a princípio, a possibilidade de se alegar descumprimento de preceito fundamental face a entidades privadas, como seria a hipótese de uma política discriminatória de recrutamento de pessoal quanto ao sexo, raça ou orientação sexual adotada por alguma empresa privada. A atitude lesiva deve decorrer, portanto, de ato do poder público, o que por si só constitui uma limitação às virtualidades do instituto”.153

De forma idêntica, Daniel Sarmento assevera que os atos de particulares são tão agressivos aos preceitos fundamentais quanto os atos do Poder Público, não se justificando a restrição da utilização da Argüição de Descumprimento somente contra estes. A perspectiva do autor é evidente neste sentido: “No entanto, a ADPF não é, infelizmente, instrumento hábil para o controle do respeito das normas constitucionais, por entidades não estatais, no exercício de atividades tipicamente privadas. Neste particular, pecou por omissão o legislador, que poderia ter aproveitado o novo instrumento para reforçar a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, criando instituto que permitisse ao Supremo Tribunal Federal, nos casos mais graves e emblemáticos de lesão coletiva, proteger o respeito aos direitos humanos no domínio das relações privadas”.154

Realmente, de forma deveras questionável, o Legislador Pátrio restringiu a utilização da Argüição de Descumprimento apenas para sanar casos de agressões perpetradas pelo Poder Público, afastando o manejo deste instituto nas situações de

153 DIAS, Eduardo Rocha. “Alterações no Processo de Controle Abstrato de Constitucionalidade e

Extensão do Efeito Vinculante à Ação Direta de Inconstitucionalidade e à Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental”. In: Revista Dialética de Direito Tributário, nº 55, abril, 2000, pp. 67/68.

154 SARMENTO, Daniel. “Apontamentos sobre a argüição de descumprimento de preceito fundamental”.

descumprimentos a preceitos fundamentais cometidos por entes privados, muitos dos quais extremamente danosos em face de seu grande poder de barganha e influência no meio social.

Além disto, no pólo ativo processual, para interposição da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, apenas restaram legitimados aqueles que detém autorização constitucional para propor a Ação Direta de Inconstitucionalidade (inciso I, do art. 2º, da Lei nº 9.882/99).

Assim, o cidadão comum não pode manejar a Argüição constitucional, sofrendo, entretanto, no mais das vezes os efeitos dos “descumprimentos” decorrentes de atos, normas do Poder Público, especialmente quando restam agredidos relevantes direitos fundamentais.155

Para fins de interposição do instituto constitucional, os opositores156 à ampliação do âmbito do “descumprimento” estabelecem que a extensão a todos os cidadãos da legitimidade para propor a Argüição, bem como a utilização do instituto para obstar os atos privados descumpridores dos preceitos fundamentais, acabaria por inviabilizar os trabalhos em sede do Supremo Tribunal Federal – STF, não auxiliando pragmaticamente em uma maior proteção aos preceitos fundamentais que já teriam inclusive proteção individual ou coletiva através de ações constitucionais específicas (mandado de segurança, habeas corpus, habeas data, mandado de injunção, ação civil pública, ação popular, etc...).

Tais teses não convencem. Isto porque, mesmo ampliando as bases subjetivas e materiais de cabimento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, esta continuaria sendo um instrumento excepcional de utilização somente em situações relevantes, tal como ocorre no plano estrangeiro com o Writ of Certiorari Norte-Americano e o Recurso Constitucional Alemão,157 por exemplo, tendo o Supremo

155 Sobre a posição do cidadão em geral em sede da Argüição de Descumprimento de Preceito

Fundamental, ver principalmente os itens 3.2. e 3.4. da presente Dissertação.

156 Cf. MENSAGEM Nº 265, de 2000-CN (nº 1.807/99, na origem). Diário do Congresso Nacional –

Sessão conjunta, março de 2000, pp. 04593/04599.

157 A respeito destes institutos de direito constitucional estrangeiro, ver os itens 1.2.2., 1.2.3., 1.2.4. e 3.4.

Tribunal Federal – STF o papel sensível na interpretação razoável a ser dada ao novel instituto.

Na realidade, as restrições subjetivas e materiais impostas à Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental pela Lei nº 9.882/99 reduziram bastante o âmbito de utilização do instituto, levando-nos a questionar até mesmo se a novel Argüição constitucional serve mais ao Poder Público em sentido estrito (Governo), para convalidação de seus questionáveis atos e políticas públicas e econômicas perante o Poder Judiciário, do que para proteção efetiva de preceitos fundamentais e da cidadania.158

Isto porque, efetivamente, os atos cometidos por pessoas e entes em sede privada são muitas vezes mais agressivos ao ser humano e à ordem constitucional do que os atos do Poder Público, especialmente em virtude dos tão discutidos fenômenos da globalização e massificação das relações sociais.

Além disto, a vedação da legitimação processual dos cidadãos, em sede da Argüição constitucional, aparenta ser uma restrição exagerada e antidemocrática do instituto, que deveria ser um baluarte principal de proteção da ordem jurídico- constitucional sensível (preceitos fundamentais) e da cidadania no Brasil.

Enfim, no plano subjetivo, nos termos da Lei nº 9.982/99, o “descumprimento” somente pode ser causado por ato do Poder Público, cometido pelo Estado ou ente privado em substituição, tendo apenas autorização legal para interpor a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental as mesmas pessoas legitimadas à propositura das Ações Diretas de Inconstitucionalidade, sendo estas restrições legais deveras questionáveis no âmbito do instituto referido, conforme acima restou delineado.