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O Cristianismo no caldeirão da efervescência religiosa contemporânea

Mesmo sendo algo improvável e difícil de imaginar, face à vertiginosa inovação tecnológica e cultural humana, de um modo geral, foi exatamente o que aconteceu, e está acontecendo: o ser humano, parecendo estar cansado de tantas novidades que facilitam e tornam instantâneas as atividades da vida cotidiana (incluindo as relações inter-pessoais), e por isso se volta novamente à divindade, ao transcendente, lançando mão de ritos, crenças e demais práticas concernentes ao universo religioso e que dão atenção a uma parte do ser por muito tempo minimizada, negligenciada, mas que não foi possível simplesmente excluir da existência: a espiritualidade. É interessante constatar que, em pleno século XXI, o homem esteja a se debater com infinitas questões existenciais e transcendentais, pertinentes aquela espécie de “vácuo” que a razão e o conhecimento, por mais surpreendentemente avançados que sejam, não podem preencher.

A separação entre Estado e igreja (instituição humana, representante do sagrado), e a conseqüente desvinculação dela do Direito, lazer, música, artes em geral e muito particularmente da ciência, representou uma conquista imensurável da humanidade. Mas, quem sabe até mesmo devido ao período deveras prolongado em que a Igreja dominou a sociedade, essa separação acabou se tornando um verdadeiro abismo, a ponto de a situação inverter-se completamente: tudo o que fosse relacionado a alguma idéia, valor ou prática

religiosa, eclesial, era logo rebatido, desconsiderado, ou, no mínimo, olhado com desconfiança. É importante esclarecer que atualmente a religião, enquanto instituição reguladora tradicional, já há muito não detém o poder de regular o universo cultural, social e pessoal dos indivíduos, mas isso não significa que tenha perdido também sua importância e influência.

No que se refere ao contexto do individual, a religiosidade não deixou de se fazer presente, e constitui até hoje uma força latente que é parte importante na constituição do ser humano, em sua esfera mais particular garantida pela autonomia racional e emocional experimentada na Modernidade. Isso porque o grande dilema gerado (ou descrito) pela dialética platônica não deixou de existir, não obstante as inúmeras tentativas, e as diferentes e sucessivas maneiras de interpretá-lo e vivenciá-lo: o ser humano continua até hoje angustiado por seus limites, falhas e imperfeições, a começar pela própria e imutável finitude; e busca no transcendente, na divindade, em algo fora de si e maior, o sentido da existência, ou ao menos, um consolo para a inexorabilidade da mesma. Em síntese, a religião enquanto instituição não regula mais a vida social e política, como o fez durante muito tempo. Mas se, por um lado, ela não pode mais suprimir a secularização, por outro, a secularização também não foi capaz de extingui-la; a religião subsiste e mesmo se consolida sob novas formas.

Segundo Rodrigo Portella (2006, p. 74), no artigo “Religião, sensibilidades religiosas e pós-modernidade: da ciranda entre religião e secularização”, a vivência da religião, ou religiosidade pelo indivíduo na Modernidade não depende necessariamente de vínculo ou fidelidade institucional, que compreende uma apreensão do sagrado mediante a participação e realização de rituais individuais ou coletivos, não obstante ser possível observar a multiplicação exacerbada de seitas, igrejas e denominações, especialmente no terceiro mundo. Na Modernidade, o chamado “cosmo sagrado” não deixou de existir, nem perdeu importância, mas tende a ser cada vez mais pessoal e menos convencionalmente sacro.

No ensaio “Fé e saber”, Jacques Derrida questiona o assombro de alguns diante daquilo que se convencionou chamar de “retorno das religiões”, bem como a própria designação: “retorno”. Para ele, foram ingênuos aqueles que acreditaram que a Razão, as Luzes, a Ciência, a Crítica (marxista, genealogia nietzschiana, psicanálise freudiana, etc), implicariam necessariamente no desaparecimento da Religião (DERRIDA, 2000, p. 15). Porém, se a premissa afirma o “retorno das religiões”, a pergunta é: que retorno é esse? Trata- se de uma fiel repetição, reiteração do que anteriormente foi rejeitado? No contexto do Ocidente, a Religião mais presente e influente é o Cristianismo, o qual, para além das fronteiras da instituição eclesial, cujos desdobramentos hoje são inúmeras denominações,

católicas e protestantes, constitui eixo fundamental da própria cultura ocidental, e está na base também da idéia de sujeito. Mircea Eliade é ainda mais categórico e radical, ao afirmar que, em comparação com outras expressões religiosas, mais antigas, “o Cristianismo é a ‘religião’ do homem moderno e do homem histórico, do homem que descobriu simultaneamente a liberdade pessoal e o tempo contínuo (em lugar do tempo cíclico)” (ELIADE, 1992, p. 136- 137). Para ele, a categoria da fé, introduzida no contexto da experiência religiosa pelo judeu- cristianismo, foi o elemento responsável pela transição do horizonte dos arquétipos e da repetição, de movimento cíclico, estabelecendo o fim do homem antigo, que acreditava poder agradar (e manipular) a suposta divindade responsável por fenômenos naturais positivos ou catastróficos, bem como servia de explicação para outros acontecimentos de natureza mais direta e particular, pelo homem histórico, que concebe o tempo e os acontecimentos numa perspectiva linear, sem retorno.

Eliade aponta os hebreus como o primeiro povo da antiguidade a descobrir o significado da história como epifania de Deus. Mais tarde, essa concepção foi assimilada e ampliada pelo Cristianismo, o que pode ser sistematizado nos seguintes termos: no horizonte da fé de Abraão, patriarca hebreu, “para Deus, tudo é possível”; já a fé do Cristianismo ampliará tal aforismo afirmando que, pela fé, tudo é possível também para o homem... Conforme atestam as palavras do próprio Jesus:

Ao que Jesus lhes disse: Tende fé em Deus; porque em verdade vos afirmo que, se alguém disser a este monte: Ergue-te e lança-te no mar, e não duvidar no seu coração, mas crer que se fará o que se diz, assim será com ele. Por isso, vos digo que tudo quanto em oração pedirdes, crede que recebestes, e será assim convosco (Marcos 11: 22 – 24).

Nesse sentido, Eliade é enfático ao concluir que esta é “a mais elevada liberdade que o homem pode imaginar: a liberdade de poder intervir até mesmo na constituição ontológica do Universo (...); o que configura uma nova fórmula para a colaboração do homem com a Criação” (ELIADE, 1992, p. 136). Para ele, “todas as outras liberdades modernas, seja qual for o tipo de satisfação que possam proporcionar àquele que as possui, não tem força alguma para justificar a história; e isso, para todo homem que é sincero consigo mesmo, equivale ao terror da história” (1992, p. 136). Ou seja, o desespero por sua presença arbitrária num Universo histórico, cuja seqüência de acontecimentos simplesmente se sucede, e o poder de escolhas é relativo e complexo, muitas vezes aleatório ou mesmo irônico. Daí a idéia de Deus funcionar como agente controlador e conciliador, e a possibilidade de um relacionamento direto com ele, representar, ao mesmo tempo, uma libertação e a superação sobrenatural da própria condição, seja o indivíduo consciente dela ou não.

A dificuldade atual em relação a essa postura, ainda que talvez tenha sido ela própria a dar ensejo a essa revalorização do elemento religioso, em particular, e das religiões, num caráter mais sistemático e coercitivo, é que:

o pensar pós-moderno está longe do precedente mundo cristão platônico onde se dava como certa a supremacia da verdade e dos valores sobre os sentimentos, da inteligência sobre a vontade, do espírito sobre a carne, da unidade sobre o pluralismo, do ascetismo sobre a vitalidade, da eternidade sobre a temporalidade (MARTINI, 2008, p. 2).

O autor do artigo onde se encontra o trecho citado acima, arcebispo de Milão, conclui seu pensamento alertando para o fato de que, hoje em dia, em termos dos conceitos éticos e morais citados, e outrora observados no contexto do Cristianismo, ocorre uma verdadeira inversão de valores. O que se observa é “uma instintiva preferência pelos sentimentos sobre a vontade, pelas impressões sobre a inteligência, por uma lógica arbitrária e a busca do prazer sobre uma moralidade ascética e coercitiva” (MARTINI, 2008, p. 3).

Por outro lado, foi essa postura hedonista contemporânea que acabou por arrefecer a supremacia absoluta da razão e do conhecimento, e conquistou maior espaço e valorização para a arte, música, literatura, bem como para as novas ciências humanas, como a psicanálise. E é nesse bojo que também a Religião recupera um espaço de aceitação enquanto saber e expressão cultural e particular do indivíduo. Em contrapartida, essa relativização de valores e crenças não permite mais que o Cristianismo se apresente como a “verdadeira” e “única” religião. Mesmo porque, uma das bases do Cristianismo tradicional é a auto-negação do sujeito, o que implica na renúncia sacrificial dos desejos e vontades, os quais, por sua vez, devem ser submetidos à vontade de Deus.

Segundo Guy Stroumsa, “o sacrifício está no centro de todos os cultos da Antigüidade greco-romana” (STROUMSA, 2008, p. 29-46). Claro que aqui a assertiva se refere ao sacrifício ritual público, em torno do qual se reúne a comunidade. O Cristianismo também é fundado sobre um sacrifício, a crucificação dolorosa e humilhante daquele que havia se apresentado como “O Filho de Deus” enviado ao mundo para ser o Messias redentor de toda a humanidade, e cumprir as promessas de Deus dirigidas ao povo escolhido desde a expulsão de Adão e Eva do Paraíso. O sacrifício de Cristo encontra eco imediato na prática dos sacrifícios de animais, largamente praticados como parte dos rituais judaicos, instituídos pelo próprio Deus como elemento de purificação dentro da Torá (lei mosaica). Esses sacrifícios eram comuns nas religiões pagãs, que também realizavam sacrifícios humanos, de crianças, inclusive dos próprios filhos. O próprio Jesus, dentre as muitas alcunhas pelas quais ele se auto-define, apresentou-se como “cordeiro”, ou, nas palavras de João Batista sobre ele: “Eis o

cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!” (João 1:29b). Nesse contexto mais direto e imediato, sacrifício implica concretamente em derramamento de sangue11. Ora, o sangue é um elemento muito significativo no Judaísmo, que foi cooptado pelo Cristianismo. O sangue é a vida, o bem mais precioso que qualquer um possui, seja homem ou animal.

Ainda que o início do Cristianismo tenha se alicerçado em um sacrifício de sangue, ou seja, na entrega de uma vida, que mais tarde foi restituída de maneira sobrenatural pela ressurreição, dando origem ao mito, este foi o último e derradeiro sacrifício que envolvia derramamento de sangue, pois foi considerado eficiente e suficiente para purgar os pecados de toda a humanidade, presente, passada e futura, conforme registra o autor (desconhecido) da carta aos Hebreus: “Jesus, porém, tendo oferecido, para sempre, um único sacrifício pelos pecados, assentou-se à destra de Deus” (Hebreus 10:12).

Porém, segundo Stroumsa (2008), o Judaísmo foi pioneiro no fim do sacrifício de sangue, ainda que essa medida tenha sido involuntária e sem respaldo teológico, mas por motivos práticos: por duas vezes o templo de Jerusalém, único local autorizado para a realização dos sacrifícios, foi destruído, o que obrigou os sacerdotes e demais autoridades religiosas a apelar para outros tipos de rituais coletivos simbólicos. Após a primeira destruição, durante o exílio na Babilônia, o povo de Israel se reunia ao redor da Tora; depois do incêndio de 70 a.C. (cuja predição proferida por Jesus consistiu em uma das acusações que acarretaram na condenação e execução dele), uma nova relação com Deus, individual e muda, substitui a evidência do sacrifício público.

Superada a relação entre sacrifício e derramamento de sangue (mesmo porque, a manutenção de tal prática implicaria numa desconsideração do sacrifício vicário de Jesus), a noção de sacrifício foi alterada, mas a idéia mantida. Ou seja, sacrifício passou a ser entendido (e experimentado) no âmbito mais pessoal e particular, constituindo-se na auto- negação à qual o Cristianismo é extremamente simpático, visto que a mesma parece ser uma das mais elevadas e eficientes formas de agradar a Cristo, seguindo seu exemplo e ordem: “Então, disse Jesus a seus discípulos: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me” (Mateus 16:24).

Essa auto-negação poderia se expressar de diversas maneiras, sendo as mais comuns e praticadas as abstenções, como períodos de jejuns, oração, sendo incluídas até mesmo algumas penitências de caráter físico.

11 Segundo o Novo Dicionário da Bíblia, “a manipulação cerimonial do sangue representaria a apresentação

solene da vida a Deus, a vida rendida, dedicada, transformada. (...) A expiação é assegurada pela morte da vítima, e não por sua vida”. DOUGLAS, J. D. (org.). O Novo Dicionário da Bíblia. Trad. João Bentes, 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1995, p. 1.435-48).

A questão é que, em plena era do hedonismo exacerbado, onde o imperativo do prazer reina absoluto, baseado no relativismo total, ninguém quer saber de nenhum tipo de sofrimento ou de perda. As facilidades, rapidez e conforto proporcionados e continuamente ampliados pelos sucessivos e sempre melhores recursos da tecnologia deixaram o homem dependente e acomodado, e essa postura é observada principalmente nos jovens, conforme salienta o arcebispo católico de Milão, Carlo Maria Martini, em artigo publicado na Adital:

Neste clima, a tecnologia não é mais considerada como um instrumento a serviço da humanidade, mas um ambiente no qual se dão as novas regras para interpretar o mundo: não existe mais a essência das coisas, mas somente o uso dessas para um certo fim determinado pela vontade e pelo desejo de cada um (MARTINI, 2008, p. 2).

No mesmo artigo, Martini conclui que, nesse contexto, a idéia de pecado e a de redenção, pilares do Cristianismo, ficam excluídas. Em face do relativismo vigente, não há mais pecado e conseqüentemente, não é mais necessário o perdão, nem a redenção, e, muito menos, o “renunciar a si mesmo”. Toda forma de sofrimento (o que implica em sacrifício) é veementemente rejeitada e deve haver o máximo de empenho em neutralizá-la completamente.

No entanto, o que se observa na sociedade de hoje não é o gozo absoluto e irrestrito, a conquista da felicidade. Em termos econômicos, cresce vertiginosamente a desigualdade e a exclusão social, o que redunda numa explosão de criminalidade e violência, alimentada por uma profunda crise de valores morais e éticos, o que torna as relações interpessoais e a vida particular, mesmo entre os que pertencem às classes mais favorecidas, algo vazio, descartável e sem sentido. Talvez esse quadro mais real e imediato ajude a explicar o inimaginável retorno, não das religiões em si, pois essas sempre existiram, e nunca deixaram de existir, conforme esclarece Jacques Derrida (2000, p. 59), mas dessa revalorização do sentimento religioso, que tem levado as pessoas a se voltarem novamente para a divindade e o transcendente na busca por elas mesmas e por um significado para a existência.

Eis aí o grande desafio do Cristianismo, que permanece como uma das três grandes religiões mundiais, e tem seu lugar de importância garantido e reconhecido, como um dos pilares teóricos na construção da civilização ocidental, conforme ressalta o doutor em Teologia e História, Antonio Magalhães (2000, p. 8): não apenas continuar existindo, mas ser ainda capaz de fazer diferença e despertar a fé em meio ao ceticismo e à descrença, justamente no vácuo deixado pela razão e o conhecimento, que não souberam dar plenitude e paz à alma humana. O arcebispo Martini considera o período atual melhor do que antes, pois vê nele “a possibilidade de o Cristianismo mostrar o seu caráter de desafio, de objetividade,

de realismo, de exercício da verdadeira liberdade, da religião ligada com a vida do corpo e não somente da mente” (MARTINI, 2008, p. 2). Nesse sentido, as palavras de Paulo corroboram com essa idéia, quando ele afirma: “Ora, o Senhor é o Espírito; e, onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” (II Coríntios 3: 17).

Martini acredita que no mundo de hoje o mistério de Deus e a possibilidade de conhecê-lo e aproximar-se dele através da fé, o que abarca sempre um risco, torna-se algo mais atraente: “O mistério da Trindade aparece como fonte de significado para a vida e uma ajuda para compreender o mistério da existência humana” (MARTINI, 2008, p. 3).

Assim, a prática de disciplinas consideradas tão obsoletas e avessas ao turbilhão de movimentos, sons e novidades que atordoam o homem de hoje, como as do recolhimento, do silêncio e da oração, podem vir a ser novamente a chave para o indivíduo empreender a maior e mais elevada de todas as conquistas: a de si mesmo, a partir do desenvolvimento da própria espiritualidade.

3 O MITO CRISTÃO HUMANIZADO: “COM A GRAÇA DE DEUS”, DE FERNANDO SABINO

3.1 O homem moderno e sua relação com Deus, ou com o Divino, na