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Espaços possíveis e as possibilidades dos espaços: a casa, o hospital, o

5. Considerações Finais

5.1 O desejo por uma “vida normal”

Celebração de uma vida normal O que faço, faço bem Não tenho montes de coisas que montes de gente tem Mas digo tantas cenas que eu fiz Tantas cenas que sinceramente me fazem feliz São as experiências, são as pessoas São as vivências que transformam vidas simples em vidas boas Intressome mais sobre aquilo que eu vivo E sobre aquilo que vens viver Pura e simplesmente o meu motivo é levar a vida até onde der Aquilo que puder. (Junior, Vida Normal).

Um dos aspectos que mais chamaram a atenção no decorrer desse trabalho foi o desejo que muitos demonstravam em ter aquilo que chamavam de “vida normal”. Embora não tenha sido possível aprofundar o significado desse conceito, a “vida normal” parece estar atrelada ao desejo de retomar um passado já experimentado ou nunca vivenciado. João, fazendo referência à perda da vida normal a partir do surgimento do sofrimento emocional, acrescenta que:

Meu maior sonho? (silêncio) se pudesse ter minha vida normal, não ter perdido a vida normal (silêncio) ele (deus ou o demônio) ta proibindo eu ter a vida normal (silêncio).

O contrário ocorre com Lucas. A “vida normal” para ele é também uma vida jamais experimentada, um passado nunca vivenciado, uma vez que ele foi deixado no orfanato aos oito anos de idade e que não teve contato com sua mãe. Ele demonstra com tristeza acreditar que jamais poderá sair da instituição onde reside para poder vivenciar situações como trabalhar, casar, ter filhos etc. e ainda lamenta não ter estudado desde a infância.

Eu acho que nunca vou sair daqui, nunca vou sair daqui [...] se minha mãe tivesse viva eu ia morar com ela [...] eu posso sair daqui depois que eu tiver falecido, depois que eu morrer.

Se eu tivesse casado (silêncio) não sei se eu vou ter condições de ter filho com mulher [...] eu não sei se eu posso ter filho, mulher, mas eu acho que eu posso ter filho ... [...] Eu gostaria de ter filhos (silêncio) de ter esposa. O homem nasceu não foi para ficar sozinho, o homem nasceu não foi para ficar sozinho, o homem foi feito para a mulher e a mulher foi feita para o homem... [...] Eu quero comprar uma casa. Eu quero comprar uma casa... para viver lá... quero arranjar uma mulher e casar, para não ficar sozinho, arranjar uma pessoa para tomar conta de mim.. uma mulher.

Eu tava viajando, tava trabalhando, tava (silêncio) Eu não era para ser um menino assim, eu era um menino para estudar, para ajudar o país

A “vida normal” parece ser a vida que se imagina ser comum a todas as pessoas. Uma espécie de destino social que envolve etapas pré-estabelecidas e que estejam dentro da média comum da sociedade: estudar, trabalhar70, casar, ter filhos. Geraldo, por exemplo, sinaliza que após a internação no hospital psiquiátrico nunca mais conseguiu trabalhar, e falou sobre o desejo de constituir família. Sobre o conceito de “vida normal”, João esclareceu:

Vida normal é você ter (silêncio) é (silêncio) trabalho, é da vida normal né? Ter um trabalho, fazer as coisas, ter direito (silêncio) ter o que os outros têm. (silêncio). Você tem vida normal, né? Muitos têm, mas eu não tenho (silêncio) é ter contato com as pessoas, ter uma família. Viver a vida normal.

70 Apenas os homens verbalizaram desejo de exercer atividade laboral remunerada, demonstrando uma

A perspectiva de ter uma “vida normal” está associada a sentimentos de esperança/desesperança. Algumas dessas expectativas dizem respeito ao desejo de retomar o convívio familiar. Embora Jacira não utilize propriamente esse termo, ela nutre grandes expectativas de que sua família a reencontre, e de que ela possa, finalmente, retomar o relacionamento com seu antigo namorado, Gabriel. Para aqueles que já não esperam por essa retomada de convívio familiar, como Francisca, por exemplo, a “vida normal” parece ser algo da ordem do passado, do tempo em que era bem feita de corpo, tinha os cabelos negros e compridos. Considerada na RT como depressiva, Francisca não parece mais esperar que algo vai ocorrer para que a sua “vida normal” seja recobrada. Como apontam Souza e Rabelo (2000):

O fechamento das possibilidades advindas do passado – a sensação de que já não podem mais ser retomadas no presente – implica também um encolhimento do horizonte de espera, das expectativas a partir das quais se desenha o porvir. A atualidade – um presente descolado tanto do que foi quanto do porvir - parece então se ampliar desproporcionalmente; há um senso de que o ancoramento na situação já não abre mais para possibilidades de ação e convivência. Porque aparentemente só resta um presente vazio, sem sentido, também a ação nele parece estar fadada a permanecer, ela mesma, sem sentido, seja como recolhimento na solidão, seja como uma investida exagerada contra a situação (SOUZA E RABELO, 2000, p.16).

A “vida normal” diz respeito ao desejo de viver certas experiências consideradas naturais na vida de qualquer pessoa. Se remetendo a uma temporalidade, ela aponta para um passado feliz, agora já perdido e que se almeja recuperar, ou ainda, a um vislumbramento do futuro. Esperar ter a “vida normal” de volta significa também uma ampliação da dimensão do futuro, que agora se mostra promissor, a partir da recuperação de certa felicidade perdida ou mesmo nunca vivenciada. Desse modo, se o passado não se mostra como uma fonte de possibilidades que podem ser retomadas, o futuro também se apresenta como nebuloso e distante para orientar a ação, uma vez que é nas raízes do passado que se orienta a ação para o futuro (SOUZA & RABELO, 2000).

Matthews (2011), tomando como base as ideias de Merleau-Ponty, defende que “somos conscientes de nós mesmos como sujeitos na medida em que somos conscientes de nós mesmos como tendo intenções de agir dessa ou daquela forma – com projetos a realizar” (MATTHEWS, 2011, p. 128), de modo que o tempo brota a partir da inserção atuante no mundo. A intenção na realização de algo, em um vir a ser, é uma forma de ir

além do que se foi no passado, mas também um meio de projetar um futuro. Assim, a experiência está sempre enraizada em um passado de envolvimento com os outros e as coisas, de modo que o porvir já se anuncia com determinada tonalidade afetiva: triste, alegre, promissor etc. Podemos mudar o rumo da nossa história, mas só podemos fazê- lo a partir da nossa vida mesma, de forma que o ter sido constitui a base na qual nos lançamos em direção às possibilidades.

O trecho abaixo, retirado do diário de Lima Barreto que foi produzido quando esse se encontrava internado em um hospital psiquiátrico, ajuda a ilustrar melhor a ideia de “vida normal”:

Digo com franqueza, cem anos que viva eu, nunca poderão apagar-me da minha memória essas humilhações que sofri. Não por elas mesmas, que pouco vale; mas pela convicção que me trouxeram de que essa vida não vale nada, todas as posições falham e todas as precauções para um grande futuro são vãs. Eu tinha tudo, ou tenho tudo, para não sofrê-las, tanto mais que não as provoquei. Sou instruído, sou educado, sou honesto, tenho procurado o mais possível ter uma vida pura. Parecia que sendo assim, que – sendo eu um rapaz que, antes dos dezesseis anos, estava numa escola superior (que todos me gabavam a inteligência, e mesmo até agora ninguém nega) – estivesse a coberto de tudo isso. Mas eu e a sorte, a sorte e eu nos juntamos de tal sorte, nos irmanamos, que vim a passar por transes desses. Desde a minha entrada na Escola Politécnica que venho caindo de sonho em sonho e, agora que estou com quase quarenta anos, embora a gloria me tenha dado beijos furtivos, eu sinto que a vida não tem mais sabor para mim. Não quero, entretanto, morrer; queria outra vida, queria esquecer a que vivi, mesmo talvez com perda de certas boas qualidades que tenho, mas queria que fosse plácida, serena, medíocre e pacifica como a de todos (Lima Barreto, p. 49-50)

Souza (1998) aponta em seu trabalho as concepções que Rose tinha de que a trajetória que sua vida deveria seguir era continuamente interrompida, de forma que o curso normal da sua existência não estava sendo seguido. Nesse sentido, a noção de ruptura também pode auxiliar na compreensão do que seria essa “vida normal”, de modo que uma crise, uma desordem retira a vida dos trilhos, rompe o fluxo que direcionava para a vida normal tomada como suposta. Como sinaliza Schutz (1971, APUD SILVA, 2012), na base das ações dos indivíduos há a perspectiva da manutenção e da estabilidade, de modo que a situação de ruptura seria “o descompasso entre as expectativas sociais e culturais e certas vivências concretas do sujeito” (SILVA, 2012, p. 120). Haveria, portanto, um distanciamento entre a ideia de como as coisas deveriam ser, e do modo como elas ocorrem efetivamente. “A vivência dessas situações expressa a não realização de expectativas sociais com relação ao curso da vida, experienciando dado sentimento

de caos, de perda do futuro e mesmo da organização corporal” (BECKER, 1997 APUD SILVA, 2012, p. 120/121).

Em outra perspectiva, Mol (1998, APUD CUNHA, 2011) aponta que o corpo nem é uma totalidade nem um conjunto de fragmentos, ao contrário, a partir da sua performance ele pode, tanto se dirigir para a fragmentação quanto para a integração. A integração é conquistada a partir do enfrentamento de uma série de tensões e conflitos. Essa integração também envolve, por exemplo, o empenho em se manter a vida dentro dos padrões de normalidade, de retomar ou conquistar aquilo que seria uma “vida normal”. As pessoas que contribuíram para esse trabalho, em diferentes medidas, buscaram mobilizar uma serie de recursos para alcançar esse objetivo: realizar o tratamento no CAPS, frequentar a escola, produzir colares, visitar a família, escutar música de Roberto Carlos, sair para passear, lanchar na padaria do bairro, usar medicação, se relacionar com os vizinhos, manter um namoro etc. Embora a quantidade de investimento tivesse variado em cada um dos sujeitos, esses engajamentos buscavam a superação do sofrimento, da tristeza, à medida que se configuravam como algo que lhes fazia bem. É nesse sentido que seguimos nos tornando.

5.2 Outras considerações: sobre o trabalho dos cuidadores no abrigo e na