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Espaços possíveis e as possibilidades dos espaços: a casa, o hospital, o

4.7 Todos aqueles com quem se vive: sobre a importância de cada um

Mesmo estando em uma casa com outros cinco moradores e tendo uma namorada na RT feminina, Geraldo esclareceu que entre os moradores da RT só tem dois amigos. Em outros momentos, contudo, disse que não se considera amigo de ninguém porque “ali ninguém considera ninguém”, e acrescentou não sentir tristeza diante do falecimento de

outros moradores, só tendo se importado com o óbito de um deles: “não senti muito não”,

Pesquisadora: Como é se sentir sozinho aqui dentro? Geraldo: Sozinho...

Pesquisadora: Mas tem um monte de gente que mora aqui com você... Geraldo: Mas não é parente .... mas não é confiável.

Ana tem um relacionamento interpessoal conturbado com as demais moradoras da RT, sendo que frequentemente ocorrem agressões verbais e, por vezes, físicas. Do mesmo modo, em diversos momentos ela diz acreditar que ninguém gosta dela. Contudo, quando ocorreram óbitos na RT, Ana sempre se mostrou sensível. Na época do falecimento de outra moradora, ela disse também sentir vontade de morrer, demonstrando a existência de certa afetividade entre elas: “Não aceitei a morte de Cida, eu gostava muito dela”.

Moradores da RT feminina e masculina, em confraternização, no espaço da RT feminina, 2012.

Ana sempre dizia que queria namorar alguém e já manteve, às escondidas, alguns relacionamentos amorosos e/ou sexuais com outros usuários do CAPS, os quais foram recriminados pelos cuidadores da RT e demais profissionais do CAPS.

Moradores da RT feminina e masculina, em confraternização67, no espaço da RT feminina, 2012.

No que diz respeito às relações estabelecidas no interior do abrigo com outros moradores, em diversos momentos Lucas fez declarações contraditórias a esse respeito:

Todos os meus amigos eram do orfanato. Tinha um menino chamado Rogério que eu ajudava

Pesquisadora: E hoje, aqui dentro, você tem amigos?

Lucas: tenho. Todo mundo é meu amigo, os funcionários, a administração... Pesquisadora: E os moradores?

Lucas: (Silêncio) tem muita gente (silêncio).

Pesquisadora: você pode me falar ao menos três moradores?

Lucas: tem Jeferson, ele gosta de uma menina, mas não pode namorar com

ela porque é diabético e paralitico...

Pesquisadora: Quem são seus melhores amigos?

Lucas: Os meninos que eu conheci no orfanato. Eu tenho vários amigos,

tenho João, tenho um bocado, tenho um bocado de amizade aqui.

Sobre os depoimentos acima, faz-se necessário reforçar que, embora Lucas declare considerar os profissionais do abrigo como seus amigos, muitos deles dizem sentir medo de Lucas, especialmente durante os momentos nos quais ele se mostrava mais irritado e agressivo. A percepção da presença desses amigos não provocava em Lucas o desejo de continuar na instituição, o que ele deixou claro quando afirmou que preferia morar com sua mãe. Do mesmo modo, como o abrigo ABCD trabalha com a perspectiva da “reintegração familiar”, nenhum morador, quando a família aceitou retomar a convivência, jamais optou por permanecer na unidade por ter um amigo (a) ou namorado (a) também vivendo naquele espaço. Ao contrário, nessas circunstancias, segundo o serviço social da unidade, o que costuma ocorrer é um afastamento completo

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Ocorriam algumas intervenções dentro da RT. Essas imagens, por exemplo, foram de grupos coordenados por uma equipe de residentes, para cantar e tocar instrumentos musicais. Nessas circunstâncias, os moradores de ambas as RTs se reuniam na RT feminina.

daquele morador que saiu do abrigo em relação à unidade como um todo, inclusive dos supostos amigos que ele tinha ali.

Esses vínculos estabelecidos no interior do abrigo são fruto de uma conjuntura que determina sua própria existência. A restrição de contato com o extramuros limita consideravelmente a possibilidade de estabelecer contatos com outras pessoas, que não os outros moradores, sejam do abrigo ou da RT. A construção de vínculos no interior dessas unidades, portanto, é estimulado e determinado pelo contexto ali estabelecido, que inclui a convivência obrigatória e a dificuldade em ir para outros espaços, estabelecer outros laços sociais, ou ainda, de ser a aceito nos poucos espaços de circulação, como a escola, haja vista o estigma de ser uma pessoa considerada socialmente como “doente mental”. Lucas identificou, por exemplo, uma perda de vínculos sociais após ter começado a tomar remédios psiquiátricos:

É por causa do remédio (silêncio)... eu já tive muita amizade, quando tava lá fora eu já tive muita amizade, eu saia na praia sozinho, eu andava na Boa Viagem, andava na Ribeira, quando eu tava no Uruguai, eu ia na casa do meu pai, eu saia daqui de Salvador sozinho para votar em Simões Filho, ia na casa do meu pai final de semana(silêncio) [...] agora eu não tenho muita amizade não, depois que eu to tomando o remédio, tenho não. E outra coisa, se cortar minha cabeça68, eu vou perder mais amizade ainda, porque eu vou ficar na cama (silêncio) meus melhores amigos vão passar por mim...

Há, portanto, a obrigatoriedade de estabelecimento de relações entre os moradores, a qual é circunstanciada pela própria convivência. Não há como dividir o mesmo teto e não ter algum grau de interação, mesmo que esse seja conflituoso, como foi observado na RT feminina. Não se relacionar não é uma opção para esses moradores, inclusive porque os espaços da “casa” são coletivos, incluindo quartos e banheiros.

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Durante a realização das entrevistas, Lucas passou a acreditar que a pesquisadora estava tentando viabilizar uma cirurgia em sua cabeça, para tentar curá-lo. Nesse trecho ele tenta convencer a pesquisadora de que esse processo cirúrgico não seria bom para ele.

Joaquim, que Lucas, em alguns momentos, identifica como seu amigo, S/D.

Assim, pode-se considerar que quando Lucas afirma, ao morar dentro de um abrigo com outras 99 pessoas, que “não conheço quase ninguém”, ele não se refere à quantidade de pessoas que conhece ou com quem convive, mas sim ao significado afetivo atribuído a essas pessoas e relações, o quanto ele se sente importante para essas pessoas, bem como o quanto ele sente precisar delas. É nesse sentido que Geraldo também afirma se sentir sozinho porque as pessoas da RT com quem convive “não é confiável”.

Contudo, não se pode considerar que os vínculos ali estabelecidos não adquiriram alguma importância para os sujeitos. O próprio Lucas, em alguns momentos, conseguia nomear aqueles a quem considerava seus amigos. Geraldo, mesmo acreditando que as pessoas ali não são de confiança, mantém um relacionamento amoroso com outra moradora. Desse modo, alguns relacionamentos estabelecidos pelos moradores tendiam a ser mais significativos, do ponto de vista afetivo, que outros, inclusive porque não manter algum vínculo comprometeria não apenas a convivência e permanência naquele espaço, como radicalizaria a experiência de solidão.

Outro elemento que se deve levar em consideração é que nos laços estabelecidos havia também uma relação de poder. No abrigo, por exemplo, aqueles que conseguiam andar se sobressaiam sobre os cadeirantes. Esses, por sua vez, precisavam estabelecer uma relação de amizade com os que deambulavam, a fim de terem seu deslocamento assegurado com maior facilidade. Além disso, como Lucas contou, o fato de receber

uma quantia semanal de dinheiro, fazia aumentar aqueles que seriam os “candidatos” a seus amigos:

Lucas: eu vou para o colégio, mas eu não vou sozinho para o colégio, eu vou

com Alberto e Joaquim. Alberto é diabético, eu tenho que tomar conta de Alberto, eu tenho que tomar conta de Joaquim, Joaquim tem problema de coluna, certo, então, a Sra. sabe como é que é... sou responsável por eles...

Considerando todas as relações estabelecidas dentro dos locais de moradia, é preciso destacar que a perspectiva fenomenológica descarta a ideia de que o social seja uma soma de subjetividades, ou uma realidade objetiva. Ao contrário, admite-se a noção de intersubjetividade partindo-se do pressuposto de que há modos de coexistência entre os sujeitos, há processos contínuos de interação que se desenvolvem na vida cotidiana (ALVES, 2006). Nesse sentido, é a partir do encontro com o outro que se torna possível a intervenção na realidade, a partir do próprio engajamento dos sujeitos. A ideia de intersubjetividade diz respeito a uma “compreensão mútua” que existe no mundo que é compartilhado por todos (ALVES, 2006).