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Trajetórias de vidas solitárias: as andanças no mundo

2.3 O mundo é esquisito demais: a solidão dos estrangeiros

2.3.1 João

João é um homem com 60 anos, de baixa estatura, moreno, que costumava usar bigode. Ele vive sozinho em uma casa pequena, de apenas um quarto, que ainda está em

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A medida de segurança é determinada judicialmente para aqueles considerados inimputáveis no momento da execução de alguma ação infratora.

construção. Em todas as visitas que foram realizadas à João ele estava deitado no sofá da sala, sozinho, independe do horário ou dia da semana.

Foi diagnosticado com “Esquizofrenia Paranoide” e “Transtornos Delirantes Persistentes” e, segundo vizinhos e alguns profissionais do CAPS, apresentava “crises graves”, e nesses momentos costumava ouvir “vozes de comando que o mandavam incendiar algo, agredir alguém ou cometer homicídio”. Nessas circunstâncias, era considerado pela comunidade e pelos profissionais do CAPS como um homem “violento e perigoso”.

Narrou que sua mãe faleceu em 1978 e seu pai há cerca de dois anos. Antes seu pai morava no interior, depois veio morar em Salvador, mas eles não mantinham nenhum contato. Tinha sete irmãos, sendo que três haviam falecido já adultos. João disse: “morreram de morte, ué, o cara mandou matar”.

Desses quatro irmãos, tinha contato superficial apenas com uma irmã, por nome Paula, que morava a dez minutos da sua casa, com seu filho (sobrinho de João). Paula demonstrava medo de que João pudesse agredi-la. Importante sobre isso é acrescentar que, de acordo com relatos dos vizinhos e da própria Paula, em momentos de crise João se mostrou violento com ela.

Josefinha (vizinha) e Paula contaram que João tentou comprar um revolver na “Feira do Rolo”, tendo sido impedido por um Agente Comunitário de Saúde, por nome Carlos. Isso teria produzido um efeito importante na relação de João com Paula, uma vez que ela informou sentir medo em estar próxima a ele, e especialmente de recebê-lo em sua casa, ainda que ele não esteja em momento de “crise”. Ela contou23 não apenas esse episódio, mas outro no qual João tentou enforcá-la com as mãos, tendo sido impedido por Carlos e pelo seu sobrinho, que estavam presentes no momento.

Entretanto, segundo contou Josefinha, durante os últimos meses Paula passava na casa de João para visitá-lo, mas não entrava, cumprimentando-o da porta. A própria Josefinha em certo momento confessou que quando ia à casa de João pedia aos demais

vizinhos que ficassem atentos, caso ela gritasse por ajuda. Observa-se aqui que a imagem de João estava vinculada na comunidade a uma ideia de periculosidade.

Sobre a relação com a família extensa, João revelou:

Quando o maltrato começou, meus sobrinhos começaram a entrar em minha casa para me roubar.

João foi casado durante 17 anos e teve dois filhos, hoje já adultos: Cristiano e Luísa. Sua ex-mulher vive em Sergipe e eles não mantêm nenhum tipo de contato, nem mesmo telefônico.

Seu filho Cristiano, não falava com ele. Durante os meses em que as informações para esse trabalho foram coletadas, ele recebeu apenas uma ligação desse filho, durante o período no qual vivenciava o início de uma “crise psicótica”. Também durante essa ocasião não recebeu nenhuma visita dele. Luísa o visitava regularmente, em média uma vez por semana, mas a relação estabelecida entre pai e filha não era tranquila. João frequentemente se referia a ela como “mal educada”, “mal criada”, “autoritária” e contava que ela costumava “gritar” com ele. Luísa estava separada do marido e morava sozinha em um bairro distante da casa do pai.

João narrou que nunca sofreu nenhuma internação psiquiátrica, que o “maltrato” começou em sua vida no ano 1992, época na qual trabalhava como caminhoneiro em São Paulo. Em 1993, sua esposa e filhos foram embora. Acreditava que sua família o deixou por causa do “maltrato”:

João: me deixaram sozinho.

Pesquisadora: se o maltrato não tivesse acontecido, o senhor acredita que hoje estaria como?

João: estaria bem melhor, eu ia estar trabalhando (silêncio) ainda estaria com

minha família, foi por causa disso também que ela foi embora [...] eu nunca fiz nada, nunca bati nela.

Disse que ficou recebendo aposentadoria entre 1992 e 1996. Depois de 1996, sem renda e sem família como suporte, sua condição socioeconômica se agravou consideravelmente, e os “episódios de crise” se tornaram ainda mais frequentes, sendo comum que ele se envolvesse em situações de violência.

João contou que quando os primeiros sinais do que denomina como “maltrato” começaram a surgir, passou a frequentar a igreja24:

João: comecei a frequentar a igreja quando estava começando (silêncio) e aí

não mudou nada.

Pesquisadora: quando estava começando o maltrato, o senhor achava que estava acontecendo o que?

João: eu achei nada não, sabe por quê? Porque ainda estava cedo. Depois o

pessoal começou a falar, começou a acontecer coisa, tragédia (silêncio) acidente, morte.

Pesquisadora: com o senhor? João: não, comigo não. No mundo.

Era inútil perguntar o que era o maltrato, pois João sempre respondia: “maltrato, ora”, demonstrando irritação por não conseguir compartilhar plenamente um conteúdo que para ele era tão óbvio. Nesses momentos, era preciso não insistir muito, uma vez que ele explicitava muita dificuldade em expressar o que sentia. Sobre esse assunto, Cunha (2012) sinaliza que “as narrativas de sofrimento emocional são marcadas pela expressão de perda do compartilhamento do mesmo mundo das pessoas ao redor” (CUNHA, 2012, p. 90), o que sugere certa dificuldade na tradução dessa experiência sensível, que era vivenciada no corpo situado no mundo, à medida que ambos estavam maltratados. A vivência do maltrato se apresentava para João como algo que as pessoas não conseguiam compreender, era também para ele uma experiência solitária, não compartilhada no mundo.

João encontrou na vizinha, Josefinha, e em um agente comunitário de saúde, Carlos, os principais vínculos. Tais pessoas, como será detalhado no capítulo seguinte, se constituíram como pontos de ancoragem para João, e passaram a se responsabilizar pelos principais cuidados a ele.

2.3.2 Percursos do encontro

O contato com João ocorreu por mediação do CAPS II no qual ele fazia acompanhamento à saúde mental. O primeiro encontro ocorreu já em sua casa, sendo

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João, assim como José, faz referência a uma busca pela igreja no início do sofrimento. Do mesmo modo, Geraldo atribui à mediunidade uma parte do seu “problema”. Contudo, as pessoas que contribuíram para esse trabalho não apresentaram outros elementos acerca dessa temática ligada à religiosidade, embora eu tenha tentado aprofundar esse tema.

que contava com a presença de uma profissional da referida unidade, a quem João era vinculado. Essa profissional (Terapeuta Ocupacional) acompanhou algumas das visitas à João, até que ele não sentisse mais a necessidade da presença dela enquanto mediadora.

As visitas ocorreram durante o período de seis meses, semanalmente, praticamente todas na própria residência de João, com exceção de algumas que ocorreram no CAPS e uma que ocorreu em uma lanchonete do bairro. Todos os encontros aconteceram durante o período matutino ou vespertino, normalmente em dias úteis da semana, com exceção de alguns sábados.

Considerando a dificuldade inicial que João demonstrava sentir com a presença da pesquisadora, durante as primeiras idas à sua casa objetivou-se o estabelecimento de um vínculo, que permitisse que os momentos das entrevistas não se configurassem como agressivos ou ansiogênicos para ele.

Para João não era fácil falar sobre sua história de vida e a solidão que sentia. A todo o momento ele buscava falar sobre outros temas, como programas da televisão. Foi preciso respeitar seus limites diante do que era possível ser relembrado e contado. A narrativa era comumente entrecortada por longos silêncios, que às vezes eram interrompidos com algum comentário destoante do tipo: “você quer assistir à televisão?”. Durante todo o tempo demonstrava estar pensativo sobre sua própria vida.

Desse modo, a reconstrução da sua trajetória de vida foi um esforço para “costurar” as diversas e fragmentadas versões que ele descreveu da sua própria história. Além disso, em muitos dias demonstrava estar mais ansioso, o que dificultava e, muitas vezes impossibilitava o uso do agravador. Contudo, todas as visitas realizadas foram registradas em diário de campo.

A casa de João ainda estava em construção durante o período das entrevistas. Embora já estivesse com toda a estrutura formada, ainda faltavam os acabamentos, tais como piso, pias, portões, grades nas janelas e portas25etc. A casa era pequena, constituída por um

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quarto, sala, cozinha, banheiro e área de serviço. Sobre isso, João às vezes se queixava, dizendo que a escolha de que a casa teria um único quarto não foi dele, mas sim de Carlos. Em frente à casa havia uma área cuja a proporção em metros quadrados era similar a da própria casa, na qual havia materiais de construção como bloco e areia. As galinhas e cachorros da vizinhança costumava ficar nesse local. Com um tempo, foi construído um muro e João colocou um madeirite que fazia a função de um portão, impedindo a entrada desses animais.

Para essa área havia uma serie de projetos. Luísa intencionava construir uma casa para ela, ideia que às vezes agradava a João, às vezes não. Outra proposta, colocada pelos profissionais do CAPS, era de que naquele espaço pudesse ser construída uma pequena horta, que possibilitasse que alguns alimentos pudessem ser cultivados, colhidos e consumidos. João sempre concordava com tudo que era sugerido para aquele espaço.

A casa era mobiliada com um sofá que se localizava na sala, onde também havia uma televisão, uma estante e uma mesa com cadeiras. No quarto havia uma cama com colchão e armário. Não havia móveis na cozinha. O próprio João justificou que não precisava de fogão, pois o “cara” o proibia de cozinhar.