• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3 – FRITZ MÜLLER E SUA VISÃO DE SISTEMÁTICA

3.1 O desenvolvimento dos crustáceos por Fritz Müller

Fritz Müller escreveu ao longo de sua vida 264 artigos científicos e um livro (SCHLENZ, FONTES & HAGEN, 2012, p. 48-61), publicado na Alemanha em 1864 com o título de Für Darwin.

O principal objetivo de Für Darwin era demonstrar que as teorias propostas por Darwin em Origin eram passíveis de serem aplicadas a um grupo de animais. De fato, com seu livro Müller estabeleceu não só uma coleção de observações práticas que corroboraram as teorias de Darwin, mas também uma proposta de filogenia baseada em estudos comparativos. Em Origin Darwin buscou explicar a divergência dos táxons a partir de um modelo teórico; o trabalho de Müller, no entanto, trouxe exemplos reais para explicar essa divergência através das teorias de Darwin.

Müller pretendeu estabelecer árvores genealógicas levando em conta que, com isso, poderia falsear a teoria de Darwin, corroborá-la ou não obter resultados concludentes. Ele supôs que, se a teoria darwiniana não houvesse sido construída com uma base sólida, poderia ser derrubada e destruída facilmente a partir de um estudo detalhado sobre um determinado grupo animal. Se a teoria de Darwin fosse passível de aplicação, ela seria capaz de explicar como grupos de animais se separaram ao longo do tempo e quais sequências ou eventos fizeram com que houvesse distinção entre os grupos.

Müller escolheu aplicar a teoria ao subfilo Crustacea, devido à familiaridade do autor com esse grupo – antes de chegar ao Brasil, ele havia trabalhado com diversos grupos de crustáceos no mar Báltico (SOUZA, 2017). Não obstante, o conhecimento taxonômico sobre Crustacea já tinha avançado substancialmente na época (PAPAVERO, 2003).

Em sua pesquisa para a consolidação de Für Darwin, Müller percebeu que a classificação existente para os crustáceos baseava-se somente nos caracteres de separação dos grupos (gêneros, famílias e ordens), e não em caracteres que unissem os grupos (MÜLLER, 2009, p. 23). Isso tornava o trabalho de classificação taxonômica exaustivo, pois compreender o desenvolvimento das formas mais próximas – e, consequentemente, as relações taxonômicas

sob o ponto de vista ontogenético – necessitaria de estudos família por família, gênero por gênero e até espécie por espécie (MÜLLER, 2009, p. 24). Dessa forma, Müller buscou realizar um robusto trabalho sistemático sob o ponto de vista evolutivo: ordenar os crustáceos em uma árvore genealógica, levando em conta não apenas caracteres para separação dos diversos grupos internos de Crustacea, mas também aqueles que unissem os seus componentes (a partir do reconhecimento de atributos compartilhados). Para isso, seria necessário um conhecimento sobre o desenvolvimento dos crustáceos, o que ele procurou abranger em seu livro.

Nos primeiros capítulos do Für Darwin (I, II, III, IV, V e VI), Müller concentra-se em tratar da morfologia, fisiologia e peculiaridades sexuais sob o ponto de vista evolutivo. Após estes estudos, o autor constata que a embriologia seria necessária para a compreensão e localização da forma ancestral no registro embrionário: os capítulos VII, VIII e IX são dedicados à história do desenvolvimento embriológico, em consonância com o evolucionismo darwinista. Já nos capítulos finais (X, XI e XII), o autor considera novos princípios de classificação para os crustáceos sob o ponto de vista evolutivo.

Müller analisou os dois grupos principais de crustáceos classificados à época (ditos inferiores e superiores). A classificação admitia que crustáceos superiores possuíam uma fase larval complexa denominada de zoea e os inferiores possuíam uma fase larval mais simples, denominada de náuplio. Em sua pesquisa, Müller encontrou entre os dois grupos uma fase evolutiva comum, demonstrando que, mesmo dentro de um grupo aparentemente tão diversificado, haveria um ancestral comum a todos as espécies conhecidas (MÜLLER, 2009, p. 37-42), conforme sugeria a teoria de Darwin:

Considerações sobre a história evolutiva dos crustáceos conduziram-me à conclusão que, se fosse possível derivar crustáceos superiores e inferiores de ancestrais comuns, outrora também os primeiros deveriam ter passado por estados semelhantes a náuplio. Pouco tempo depois eu descobri larvas semelhantes a náuplios em camarões, e confesso que essa descoberta trouxe- me a primeira inclinação decisiva a favor de Darwin (MÜLLER, 2009, p. 37).

Müller considerava que os organismos poderiam sofrer duas formas de evolução: Os descendentes chegam a um novo termo, afastando-se cedo ou tarde da forma paterna; entretanto, ainda no caminho de adquiri-lo, passam por esse caminho sem deixar-se influenciar; então, em vez de parar, avançam sempre mais. (MÜLLER, 1864, p. 75)

Dessa forma, haveria ou (1) uma divergência entre o descendente e o ancestral em certo momento da história evolutiva ou (2) os descendentes recapitulariam o desenvolvimento dos ancestrais, de forma que o desenvolvimento da espécie refletiria sua história embriológica.

Müller então sugere que os crustáceos, passando por formas larvais mais simples, carregavam a história de seus ancestrais na fase embrionária, conceito posteriormente atribuído na historiografia a Ernst Haeckel (1834-1919), que se utilizou deste conceito de Müller2 na elaboração de seu princípio da recapitulação, segundo o qual a ontogenia (desenvolvimento individual do organismo) recapitula a filogenia (desenvolvimento evolutivo a partir do grupo ancestral). Müller postulou que os crustáceos superiores possuíam em seus estágios embrionários estruturas semelhantes ao estágio de náuplio, até então conhecido apenas para os crustáceos inferiores. Ele encontrou esse estágio em camarões (Figura 18), demonstrando que tanto crustáceos superiores como inferiores compartilham um estágio básico de desenvolvimento e que, conhecendo-se as etapas semelhantes na ontogenia, seria possível reconstruir a história filogenética dos grupos através da ancestralidade comum.

Figura 18: Desenvolvimento de um camarão. A. Náuplio de um camarão (MÜLLER, 1864, p. 38): na

forma mais simples (1a), não há divisão entre cefalotórax e abdome, apenas o rudimento de novos apêndices. B. Zoea mais jovem do mesmo camarão (MÜLLER, 1864, p. 39): na forma intermediária, o náuplio se transforma em zoea através dos novos apêndices (maxilas e maxilípedes anteriores e intermediários). C. Zoea mais velha do mesmo camarão (MÜLLER, 1864, p. 40): há a formação dos olhos, número maior de apêndices e uma divisão corporal (MÜLLER, 2009, p. 85-88).

A reconstrução da filogenia através da ontogenia é tratada por Müller como uma das principais conclusões de seu estudo:

Em um curto período de poucas semanas ou meses, as formas cambiantes de embriões e larvas farão passar diante de nós um quadro, mais ou menos completo e mais ou menos verdadeiro, das transformações através das quais a espécie, no percurso de milênios incontáveis, percorreu até o seu estado atual (MÜLLER, 2009, p. 144).

Para reforçar o seu argumento, Müller estende suas conclusões aos Annelida, especificamente para Serpulidae. Nesta família, ele também observou que o desenvolvimento individual de três gêneros atravessava estágios de desenvolvimento semelhantes (MÜLLER, 2009, p. 144-145), concluindo que a história de uma espécie:

... será preservada tanto mais perfeitamente na sua história de desenvolvimento, quanto maior for a série de estados juvenis pelos quais ela passa de maneira uniforme, e será tanto mais fiel quanto menos o modo de vida dos jovens diferir do dos adultos, e quanto menos as particularidades das formas juvenis possam ser concebidas como transferidas de fases mais tardias para as mais jovens, ou como adquiridas independentemente. (MÜLLER, 2009, p. 150).

Sabe-se, porém, que Müller não utilizou desta premissa (ontogenia recapitula filogenia) de forma tão generalizada como ocorreu nos trabalhos de Haeckel, visto que acreditava que a recapitulação concordava com a reconstrução filogenética até certa medida e depois ocorria uma divergência das linhagens descendentes. Posteriormente, o próprio Müller analisou um caso distinto de caranguejo que emergia do ovo como pequeno adulto, não passando por qualquer estágio de metamorfose (MÜLLER, 1892c), e também casos de camarões que apresentavam metamorfose abreviada (MÜLLER, 1892d). Estes estudos de Müller, publicados nos Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, foram analisados pela autora em estudo anterior (SOUZA, 2017).

Ainda relacionado ao desenvolvimento de Crustacea, Müller discutiu o dimorfismo no gênero de isópode Tanais. Ele observou que os machos da espécie próximos à muda assemelhavam-se às fêmeas e que, após a metamorfose, surgiam duas formas diferentes de machos: alguns apresentavam grandes pinças, enquanto outros não possuíam essa estrutura desenvolvida, porém apresentavam como característica distintiva, antenas com muitos filamentos olfativos (MÜLLER, 2009, p. 46). Sob a perspectiva darwiniana, Müller explicou

as duas variedades em um cenário de luta pela existência: segundo ele, a seleção natural favoreceria os isópodes que apresentavam grandes pinças, estabelecendo estados derivados que não existiam em indivíduos jovens.