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O deus malvado e a visão trágica da existência

No documento victorhugodecastrodutra (páginas 62-66)

2.1 Mitologias do mal

2.1.3 O deus malvado e a visão trágica da existência

Como exemplo do mito trágico Ricoeur se remete aos cantos poético-miméticos gregos, mas tem a sagacidade de nos informar que estes não são os únicos, mas o qual ele escolhe para ilustrar a ideia de um deus malvado.

Para Ricoeur esta concepção de um deus malvado tende mais a um espetáculo e não a uma especulação (Ricoeur, 1969, p.212). Destarte o que se espera do espetáculo é o final desenlace da história narrada do canto grego, este desenlace mostra a figura do herói trágico que luta, que escolhe e que avança em seu próprio fim numa predestinação ao mal que ocorrerá consigo. E isto, um espetáculo aos ouvintes do conto, um espetáculo de suas tragédias que nos avisam dos desígnios de um deus malvado e nos convida a pensar sobre as ações do herói e sobre nossas próprias ações. Para Ricoeur a teologia trágica é inseparável do espetáculo trágico.

A avaliação de Ricoeur se sistematiza em três momentos de interpretação para o entendimento da tragicidade do herói frente ao deus malvado. Um momento pré-trágico, que cria subsídios para o trágico explicando a maldade dos deuses, um momento propriamente trágico, onde se vê o sofrimento do herói frente sua culpabilidade de ser, e por fim um momento em que o deus malvado é pai da justiça e permite a salvação do herói pelo elemento trágico.

Ricoeur enfatiza os elemento pré-trágicos, assumindo que são anteriores ao drama e ao espetáculo. Que são, a cegueira dos homens e a fatalidade da vida, tema este que “[...] aparece em todas as culturas, todas as vezes que a iniciativa em culpa remetida ao divino e que esta iniciativa divina funciona através da fraqueza do homem e aparece como possessão divina.”26 (P. Ricoeur, 1969, p.213).

Ricoeur nos mostra como os deuses gregos são antropologizados, dando a eles sentimentos humanos. Um deles é emblemático, a inveja. Os deuses podem sucumbir à inveja dos homens e por este sentimento serem aturdidos por imoderações. Mas neste caso com grandes consequências para o humano invejado. Na literatura grega a inveja foi mesmo substituída pela imoderação. Neste sentido os homens são joguetes nas mãos dos deuses que lhes favorecem ou lhe molestam.

26“[...] appears in all cultures, every time that the initiative in fault is traced back into the divine and that this divine initiative works through the weakness of man and appears as divine possession.”

Mas ainda esta imoderação também acomete ao homem sob a forma de hybris, um orgulho que o cega em seus objetivos. O herói da tragédia tem de conviver com seus sentimentos e tomar um caminho de sabedoria para não sucumbir a seu orgulho.

Quanto à fatalidade da vida, ela é clara. Nascimento e morte:

Assim, a fatalidade da morte e de nascimento assombra todos os nossos atos, que são, assim, tornados impotentes e irresponsáveis. A "labilidade" psicológica do herói homérico tem sido frequentemente enfatizada - a debilidade da síntese psicológica de seus atos, o que faz com que pareçam os acontecimentos sem um assunto pessoal e, conseqüentemente, a presa de poderes superiores. É de passivo verbo -áâsTai- que a cegueira é expressa, a cegueira em si - Ate - é o seu outro lado, positivo e ativo, sua projeção em um mundo de poderes transcendentes..27

(Ricoeur, 1969, p.215)

A tragédia grega denota a impotência do homem à vida, frente ao destino (moiras) e é esta impotência que faz com que os homens, ou mesmo o herói, sejam vítimas de entidades superiores. Mas, por outro lado, a responsabilidade de ser vitima é sua, uma culpa que o faz vítima. O destino (moira) é impessoal, como aspecto do poder transcendente que o afeta. E é por seu daimon28 que é guiado o herói. Neste sentido o herói também é guiado por poderes transcendentes, e neste sentido é impessoal. Ricoeur nos conclama a pensar o paradoxo da culpabilidade neste caso de impessoalidade. Por um lado a culpa é do herói que age, por outro é dos deuses que o guiam.

Para Ricoeur, contudo, se as moiras representam um aspecto impessoal de destino, Zeus em contraparte não o faz. Ele é o rei dos deuses e também é capaz de inveja ou desejo pelos mortais. Neste sentido há um duplo entendimento sobre o destino, o qual se solidifica na pessoalidade de um deus maligno que pune e se diverte com o sofrimento da humanidade. É aqui que o trágico começa ganhar forma.

A personalização dos deuses dá ensejo ao nascimento do trágico. Com a acepção de que os deuses são passíveis de inveja, se dá o nascimento de sua vingança contra a humanidade. A pergunta sobre o que é a inveja dos deuses convida ao diálogo dos sábios. E a

27 “Thus the fatality of death and of birth haunts all our acts, wich are thereby rendered impotent and irresponsable. The psychological “lability” of the Homeric hero has often been emphasized – the feebleness of the psychological synthesis of his acts, wich makes them seem like happenings without a personal subject and consequently the prey of superior powers. It is by a passive verb – ἀἃσθαι- that the blinding is expressed; the bliding itself – Ατη – is its other side, positive and active, its projection into a world of transcendent powers.” (n.t. Optamos pela transliteração do grego no texto em português)

estes respondem: “É imoderação divina, e é medo de imoderação que instiga a resposte ética da modéstia.”29 (P. Ricoeur, 1969, p.217)

Para Ricoeur, os homens sábios num entendimento não trágico da genese da hybris: “sucesso se torna desejo por mais e mais – pleonesía – ganância se torna complacência, e complacência se torna arrogância.”30 (P. Ricoeur, 1969, p.217). Em nosso autor, a hybris é primeira a ftonos (inveja). Assim os sábios, para Ricoeur, tentaram moralizar a divindade dando uma punição à “hybris” (orgulho, imoderação). E justificando a punição divina do deus maligno.

É interessante notar que Ricoeur coloca que a proximidade com a queda bíblica é evidente e se torna trágica novamente na medida em que a hybris é intermediada pela cegueira do homem. Na Bíblia é Adão que por cegueira come do fruto proíbido e por isso é punido por um Deus justo. Nos cantos gregos a divindade agora pune o orgulho e a cegueira dos homens, e assim moralizados, os deuses não sentem inveja, mas punem a culpa humana.

São essas as características do trágico: cegueira lançada pelos deuses, e um daimon pessoal, de um lado e imoderação e inveja, por outro (P. Ricoeur, 1969, p.218) Mas para ser plenamente trágico, para Ricoeur, tem de haver a predestinação do mal, o futuro trágico do herói grego. Sem o futuro trágico, não há espetáculo, não há lamento e comoção. Sem a predestinação ao mal o trágico fica sem relevo.

Ricoeur nos fala que a tragédia concentra dois pólos, o deus malvado e o herói. Com Zeus se incopora um satanismo difuso na figura dos daimones (P. Ricoeur, 1969, p.218). O deus malvado agora incorpora a instância dos entes conselheiros que como daimones indicacam ao herói como proceder, e mais ainda representam os conselheiros dos inimigos como no caso da invasão persa. São os daimones os conselheiros de Xerxes.

Com Ésquilo, Ricoeur diz haver uma plasticidade da relação entre Prometheus e Zeus. Entre o herói e o deus malvado. A partir de Ésquilo pode-se falar então em culpabilidade do ser. A culpabilidade do ser, contudo, apresenta um paradoxo. Há um deus malvado senhor dos daimones, e a própria culpa pela ação do herói. Este paradoxo é o da relação entre destino trágico e liberdade. A culpabilidade do ser é dada pela imoderação, ou orgulho. Contudo o deus malvado o irá punir, mesmo tendo o herói sido aconselhado pelos daimones. E assim se mostra a própria malvadez do deus malvado.

29 “It is divine immoderation, and is it fear of immoderation that instigates the ethical risposte of modesty.” 30"succes begets a desire for more and more – πλεονεοξἰα – greed begets complacence, and complacence begets arrogance.”

Em nosso autor, a teologia trágica intende uma auto-destruição para a consciência religiosa (P. Ricoeur, 1969, p. 226). O homem religioso deve acatar a vontade do deus malvado, e se é a vontade dele que o homem pereça, este o fará. É um círculo de paradoxos onde o homem deve aceitar a malevolência de seu deus como um ato de fé, aceitar a maldade do mundo como vontade divina, e a nosso ver o que torna o homem o mais passível dos seres, aceitando o mal do mundo como parte da divindade.

No terceiro ponto listado por nós, Ricoeur fala de uma libertação ou salvação no trágico. A salvação no trágico se dá, não só no personagem, mas nas lágrimas derramadas pela platéia que se comove e se identifica com o herói, e finalmente chora ao som do belo canto grego, e se purifica pelas lágrimas derramadas.

É de se notar, nos lembra Ricoeur, que no fim das tragédias Zeus o tirano se torna Zeus pai da justiça (P. Ricoeur, 1969, p. 228). Zeus, neste momento do entendimento da tragédia, age para o bem depois do sofrimento dando o merecido reconhecimento aos personagens do drama (neste ponto Ricoeur pontua a similitude com o Deus da Bíblia Hebraica), Zeus liberta Prometheus de seu eterno sofrimento, liberta Prometheus de sua “cruz” onde abutres comem seu fígado, enfim Zeus perdoa a afronta de Prometheus. Se tornando um deus justo.

Mas, então, há também na tragédia grega um deus que abandona os homens a sua própria sorte: “Em Sófocles já não há um fim trágico como o de Ésquilo. O deus hostil faz-se sentir menos por pressão do que por sua falta, abandonando o homem a seus próprios recursos.”31 (P. Ricoeur, 1969, p.228). Esse abandono minimiza a maldade do deus, que não mais pune o homem, mas o abandona à sua própria sorte. O deus malvado aqui se apresnta como juiz no destino final, e não como um adversário ao herói.

O tema da salvação se encontra então na própria tragédia e não fora dela. É no espírito trágico que se encontra a salvação. Ricoeur frisa que é pelo entendimento (phronésis) de sua situação que o herói pode ser salvo. A phronésis é aqui a capacidade do herói em reconhecer sua mácula, reconhecer seus atos como atos imoderados. Mas lembramos que a phronésis também aparece em O SI-MESMO COMO UM OUTRO como a capacidade do homem em escolher o melhor para si. É o entendimento a capacidade do homem em escolher o bem para si em frente ao mal. E neste sentido que dizemos, a partir de Ricoeur, que a phronésis opera também como o arrependimento da teologia, judaico-cristã. Se o mal foi feito, ainda se pode entender que foi mal e não bem, neste sentido o entendimento permite

31“in Sofócles there is no longer an end of the tragic than Aeschylus. The hostile god makes himself felt less by pressure than by his abscence, abandoning man to his own resources.”

que o homem não cometa o mal novamente32. A phronésis, lembramos, é a capacidade, em Aristóteles, do homem em bem deliberar.

Na tragédia e na vida grega, a salvação vem do entendimento, que recorre a Apolo ou Dionísio. Apolo é capaz de lavar a mácula de corrupção do herói, ou mesmo do cidadão grego. Ele lava a mácula permitindo que a pessoa possa novamente se integrar à sociedade tendo se arrependido de seus erros. Dionísio, contudo, faz com que a lama seja pura novamente. Na salvação dionisíaca a pessoa se torna uma nova pessoa. O herói neste caso é outro que não mais o mesmo. Em ambas salvações, o entendimento do lamento se torna o fim do espetáculo. E assim, é o próprio elemento trágico que exatamente salva o herói de seu destino, salva sua alma na imortalidade do conto e nas lágrimas dos espectadores.

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