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O mito adâmico

No documento victorhugodecastrodutra (páginas 66-70)

2.1 Mitologias do mal

2.1.4 O mito adâmico

Ricoeur faz uma distinção inicial que para nós é imprescindível onde diz que o mito de Adão é o mito antropológico “par excellence” (P. Ricoeur, 1969, p.232). E em sua condição antropológica apresenta três características. A primeira delas é apresentar um ancestral comum para toda a raça humana. A segunda o mito adâmico separa bem a origem das coisas da origem do mal. Na gênese bíblica o mundo é criado bom, “e YHWH viu que era bom”, e só então é criado o homem. “A gênese do mal coincide com a antropogonia”33 (P. Ricoeur, 1969, p.232)

Para Ricoeur só o mito adâmico é no senso pleno antropológico. E apresenta três características; primeiro, ele apresenta o mal como fonte originária do homem de nosso tempo, é o Adão nosso ancestral comum quem conhece o mal. Ricoeur pontua que o mito Adâmico não deve ser chamado de mito da queda (como colocaram as dissertações precedentes), isto devido a uma crença de que Adão é um homem superior e uma vez assim é estranho a nossa condição humana e falível. A crença na queda de Adão crê por dedução que ele é culpado por não produzir uma superpopulação. Em poucas palavras: “O símbolo da queda, então, não é o autêntico símbolo do “mito Adâmico””34 (P. Ricoeur, 1969, p.233). Segundo, o mito Adâmico é a tentativa mais significativa de separar a origem do mal da origem do bem. A origem do mal no mito Adâmico ainda remete-nos a uma questão fundamental da filosofia e da teologia, isto é, à da liberdade, é Eva, e consequentemente

32Veremos a phronésis com mais detalhes no capítulo três da presente dissertação. 33“the genesis of evil coincides with antropogony.”

Adão, quem escolhe em liberdade comer do fruto proibido. Demonstrando assim que o homem pode falhar, demonstra a imperfeição do homem frente a Deus. E mais: “isto é, no sentido estrito, o poder da criatura humana para desfazer (défaire), e para desfazer-se (se défaire), depois que ele foi feito (fait) e aperfeiçoado (par-fait)..”35. Voltaremos a esse “mais” no item 2.3 do presente capítulo. (P. Ricoeur, 1969, p.233 à p.234).Terceiro, apesar de Adão ser o protagonista principal do mito, existem outras figuras que descentralizam a tessitura da trama, são elas, Eva e a serpente.

A avaliação de Ricoeur não vai na mão, em estrito senso, do entendimento histórico do mito, mas busca, muito mais, o significado do mito. O mito nos traz a especulação sobre imperfeição que reside na liberdade, e denomina essa especulação de pré-filosófica, e é justamente assim que Ricoeur diz: o símbolo dá o que pensar. Nosso autor pontua que “Adão não é uma figura importante no Antigo Testamento: os Profetas o ignoram; vários textos fazem, de fato, o nome Adão (sujeito de um verbo no plural) e os filhos de Adão, mas sem alusão à história da queda (... ), ele é, talvez, apenas o primeiro exemplo do mal”36 (P. Ricoeur, 1969, p.237). Nosso autor nos mostra que o mito de Adão não é único na exemplificação do mal no que tange à Bíblia Hebraica, “ele é talvez o primeiro exemplo do mal”, e existem outros como o Caim, Sodoma e Gomorra, Babel e mesmo o dilúvio. E nos recorda de que mesmo Jesus não o cita.

O que nos importa é que falar em um pecado original, marcado no mito de Adão, é fazer uma avaliação de segundo grau, isto é uma interpretação, que tende explicar o mito a partir do agora. E frisa Ricoeur que este motivo faz com que a avaliação agostiniana sobre o pecado original, nunca será adequadamente contada. (P. Ricoeur, 1969, p.239)

O mito Adâmico cria bases sólidas para o monoteísmo. Deus é um, contudo o mal existe. Não há mais lugar para o conflito entre deuses. E por não haver conflito prepara a humanidade para a universalização da experiência, que por sua vez é uma das características dos mitos. E ainda há uma pura antropologização do mal e uma desmitologização da teogonia, baseada no drama da queda, o homem é imperfeito e Deus é sagrado.

Por outro lado, a mesma teologia que pontua Deus como um e bom, acusa o homem, gerando pecado e culpa. Este homem do pecado e da culpa gera o homem que se arrepende. E do arrependimento uma salvação. Contudo, Adão demonstra que todos nós somos falíveis e

35“hat is to say, in the strict sense, the power of the humam creature to undo (défaire), and to unmake himself (se

défaire), after he has been made (fait) and made perfect (par-fait)”

36“Adam is not an important figure in the Old Testament: the Prophets ignore him; various texts do, indeed, name Adam (subject of a verb in the plural) and the sons of Adam, but without allusion to the story of the fall (…) he is perhaps only the first example of evill”

desse modo unificados em sua figura de culpa. Adão torna possível também o arrependimento. Ele preserva características da pessoa, a pessoa que pensa, a pessoa que age, a pessoa que sofre, neste sentido o arrependimento de Adão universaliza mais uma vez a humanidade em torno de um Deus comum. E mais, é através de Adão que o perdão se torna universal. Num jogo dialético entre culpabilidade e salvação.

Por outro lado a desobediência de Adão o leva ao exílio. A punição divina é exemplar, desobedecer Deus o excluí do Gan Eden. A desobediência marca ainda a liberdade. A escolha de todos os homens fica assim marcada tal como no mito. Pela oposição em se fazer o que se é tentado a fazer ou obedecer a lei divina. Aos transgressores, punição. Assim os elementos de desobediência e exílio se tornam chaves para o entendimento do mito Adâmico. Exílio que só termina após o dilúvio ao qual Noé sobrevive.

O mito adâmico ainda explora o momento de ruptura entre ontológico e histórico. O mito da queda mostra como fator ontológico a bondade da criação, e somente depois da aparição do homem como falível é que surge o mal. A especulação nos leva a dizer que o mito propõe a origem do mal como histórica e não ontológica. É no momento da queda que o homem perde seu caráter ontológico em favor do caráter histórico. E destarte o mal surge na existência histórica e não ontológica. O que para nós representa mais uma vez a ênfase de Ricoeur em colocar o mal como um fenômeno (que nos escandaliza) e que nos aparece assim dissociado da bondade da criação. O mal histórico, no entendimento do mito, se dá em um determinado momento. Momento esse que Ricoeur enfatiza como instante.

Mas o que dizer sobre esse instante em Ricoeur? Primeiramente o mito tem uma intenção: explicar que o instante em que Adão come do fruto ele cai da condição de inocência, que lhe permitia habitar o paraíso, a uma condição de conhecimento que inicia a maldição. Isto no sentido de que é um homem universal que une a multiplicidade dos povos, uma unidade na multiplicidade. Secundariamente, o mito Adâmico apresenta em sua estrutura um drama que se passa da criação até o instante da queda. No começo Deus cria toda a trama do mundo e a palavra diz: “E Deus viu tudo o que fez e eis que era muito bom.” Neste contexto o mundo é criado bom e Ricoeur nos diz que há muito desta passagem até a queda: “ “Esta história é fruto de longa maturação.”37 (P. Ricoeur, 1969, p.245). Sua ênfase de um lado reitera o aspecto antropológico do mal ocasionado pelo homem, e de outro lado expõe como a história curta relata um drama de grandes proporções sem incorrer no risco de que Yaweh seja confundido com as forças das quais ele é Senhor.

Adão no mito é o representante de toda a humanidade. E neste sentido a maldição a ele imposta é imposta sobre toda a humanidade. E como consequência, o comer da fruta proibida é o fim da inocência e o começo da história dos homens. A maldição então explica o fato dos homens serem forçados a laborar a terra para alimento, e explica ainda a dor do parto. Tudo isso como condição humana.

O homem é o ser capaz, depois da queda da distinção entre bem e mal. Esta distinção começa no instante da queda, no comer da fruta proibida. Assim o homem é agora o responsável pelas coisas do mundo, seja agindo bem, seja agindo mal, reconhecendo os dois em sua vida, e as vezes, em face do mal sofre. Mas, mais fundamental é a liberdade colocada assim, o mito Adâmico é um mito que também mostra o problema da escolha, a liberdade faz parte de seu drama. É também a liberdade que se herda de Adão. Apesar da perda da inocência, contudo:

Se agora perguntarmos o significado daquela inocência a qual o mito projeta como um "antes", podemos responder: dizer que ele está perdido ainda está a dizer algo sobre ele, é pressupor uma ordem, pelo menos, para cancelá-lo . Inocência aqui interpreta o papel kantiano da coisa-em-si: isto é pensar a extensão do ser posta, mas isto é conhecimento; isto é o suficiente para dar-lhe o papel negativo de um limite em relação às pretensões do fenômeno para ser coextensivo com o ser38

(P. Ricoeur, 1969, p.250)

Ricoeur nos lembra que pensar a inocência não é conhecê-la. Imaginar o paraíso não é saber como é. A inocência é um estágio perdido, que somente podemos especular, bem como o pecado. Ele não é um estado ontológico do homem, é como dissemos um estado, bem como a inocência. No caso de Adão, ele peca, contudo não é um pecador a todo o tempo, Adão foi também inocente. Desta forma nem inocência, nem pecado são coextensivos ao ser.

Mas há ainda outro ponto em se tratando do mito adâmico. A inocência é perdida, mas, por quê? Para Ricoeur, o drama de Adão se situa no lapso de tempo entre a inocência e a queda, onde as figuras secundárias do mito tomam relevo. Eva representa nos primeiros comentários a fragilidade, contudo ela não só representa a fragilidade como é frágil todo ser, Adão também é frágil e por isto cai em tentação. Para Ricoeur não é o sexo de Eva que o

38"If now we ask the meaning of that innocence wich the myth projects as a “before”, we can answer: to say that it is lost is still to say something about it; it is to posit it in order at least to cancel it. Innocence here plays the role of the Kantian thing-in-self: it is thought of the extent of being posited, but it is known; that is enough to give it the negative role of a limit in relation to the pretensions of the phenomenon to be coextensive with being"

atrai, mas sua própria constituição frágil. Contudo é a serpente a tentação, é ela quem chama a atenção de Eva, mas mais do que um ser, ela também é parte da auteridade que conclama Adão a comer do fruto proibido: “a serpente, então, representa este aspecto passivo da tentação, pairando sobre a fronteira entre o exterior e o interior”39 (P. Ricoeur, 1969, p.256).

De certa forma a serpente é o desejo do homem. E ainda, mais do que isso, a serpente representa o mal do outro já lá. “O Mal é parte das relações interhumanas, como linguagem, ferramentas, instituições.”40 (P. Ricoeur, 1969, p.258). Destarte a serpente representa também a alteridade do mal, pode ser assim um outro na relação interhumana quem seja a serpente. Ela representa, como última tentativa de desmitologização dos mitos precedentes, algo que não pode ser absorvido na liberdade do homem, isto é o próprio mal. Não o mal como uma contraparte de Deus, é necessário enfatizarmos sua inferioridade a Deus, ela é muito mais a sedução que aflige a fragilidade do homem.

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