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O direito a Consulta na jurisprudência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos

3 DIREITOS HUMANOS, POVOS INDÍGENAS E A CONSULTA

3.3 O DIREITO A CONSULTA PRÉVIA, LIVRE E INFORMADA Durante as duas últimas décadas a consulta previa, livre e

3.3.3 O direito a Consulta na jurisprudência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos

O Sistema Interamericano de Direitos Humanos desempenhou um papel crucial na elaboração de jurisprudência, emissão de informes, se consagrando como protagonista na interpretação do direito de povos indígenas.

Dentre esse material, se destaca a interpretação de que o direito à propriedade abarca tanto a propriedade privada de indivíduos como de povos indígenas e tribais; a de que povos indígenas que vivam em terras ancestralmente ocupadas tem o direito de obter o título desses territórios, de forma que os Estados tem a obrigação de legalizar e proteger seus direitos de propriedade; e sobre o dever da consulta quando direitos e interesses indígenas forem afetados, como uma obrigação estatal, correlata ao direito de propriedade dos povos indígenas.

Da mesma forma, em seus informes, a Comissão tem reconhecido e propagado que os Estados devem seguir o procedimento da consulta prévia antes de outorgar concessões de exploração de recursos naturais em territórios ancestrais, propondo soluções amistosas, vinculantes às partes.

Rodas destaca que o Sistema Interamericano não se detém estritamente a Convenção Americana de Direitos Humanos ao analisar os casos de violações de direitos humanos de povos indígenas, interpretando-a luz da Convenção 169 e a Declaração ONU-DPI, assim

criando um “direito interamericano dos povos indígenas”, que vincula tanto Estados americanos que ratificaram as mencionadas normais internacionais, como os que não ratificaram (2014, p. 312).

Ademais, o SIDH utiliza como critério hermenêutico a interpretação evolutiva dos direitos humanos, teoria que se firma na constatação de que tratados de direitos humanos são instrumentos vivos, que devem acompanhar a evolução dos tempos e das condições de vida, consolidando um caráter expansivo do rol de direitos abarcados pelos sistemas de proteção.

Inclusive, a CIDH recomendou aos Estados que regulassem seus ordenamentos jurídicos internos prevendo-a, para garantir o princípio da legalidade e segurança jurídica, sustentando que a ausência de previsão legal interna não exime os países de seu cumprimento.

Entre os casos paradigmáticos sobre direitos indígenas no SIDH, destacamos três: caso Awas Tingni vs. Nicarágua, Saramaka vs. Suriname e Sarayaku vs. Equador.

O caso Awas Tingni vs. Nicarágua foi o primeiro caso sobre direitos indígenas a ser levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Com base no artigo 21 da Convenção Americana de Direitos Humanos, a Corte reconheceu o caráter coletivo do direito à terra, bem como a intrínseca relação entre a terra, a cultura e a espiritualidade daquele povo, direitos que têm sido reiteradamente reafirmados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em outros casos que tratam de terras e recursos naturais de povos indígenas.

A partir da jurisprudência desenvolvida pela Corte a partir do Awas Tigni, se desenvolveu um dos casos mais emblemáticos da Corte Interamericana, o Saramaka vs. Suriname (2007), em que foram estabelecidos requisitos e condições que devem ser observadas para definir um processo de diálogo entre o Estado e um povo indígena ou tribal afetado por um plano de desenvolvimento predatório em seu território, assegurado o direito a consulta.

No caso Saramaka, a Corte decidiu que o Suriname havia violado o direito à propriedade da comunidade, por planejar atividades de exploração de ouro em território tradicional, sem consulta-la previamente.

Observando que o povo Saramaka possuía uma conexão com sua terra ancestral que ia além da relação de subsistência, mas também abarcava uma relação necessária para a continuidade de sua vida e identidade cultural que era distinta de outros setores da comunidade nacional, a Corte aclarou a necessidade de reconhecer o povo Saramaka

como tribal, assim determinando que comunidades como essa requeriam medidas especiais que garantissem o exercício pleno de seus direitos: “particularmente com relação ao desfrute de seu direito de propriedade, para salvaguardar sua sobrevivência física e cultural”(2007, 85).

Nesse sentido, a Corte definiu standards para o procedimento da consulta prévia, estabelecendo que tal feito implica em uma comunicação constante entre as partes, que deve ser realizada desde as primeiras etapas do projeto, suprido de informações completas sobre os possíveis riscos, para que se houver consentimento, que seja de forma voluntária e de boa fé.

El Estado debe cumplir con las siguientes tres garantías: primero, el Estado debe asegurar la participación efectiva de los miembros del pueblo Saramaka, de conformidad con sus costumbres y tradiciones, en relación con todo plan de desarrollo, inversión, exploración o extracción…que se lleve a cabo dentro del territorio Saramaka. Segundo, el Estado debe garantizar que los miembros del pueblo Saramaka se beneficien razonablemente del plan que se lleve a cabo dentro de su territorio. Tercero, el Estado debe garantizar que no se emitirá ninguna concesión dentro del territorio Saramaka a menos y hasta que entidades independientes y técnicamente capaces, bajo la supervisión del Estado, realicen un estudio previo de impacto social y ambiental (CORTE IDH, 2007, p. 129).

A Corte avançou ainda mais na interpretação evolutiva dos direitos humanos, ao garantir que, quando se tratem de planos de desenvolvimento de grande escala e impacto dentro do território indígena, o Estado tem a obrigação, não só de consultar a comunidade, como de obter o consentimento livre, informado e prévio destes, segundo seus costumes e tradições.

Também no caso Saramaka vs. Suriname, a Corte expressou o dever do Estado de compartilhar, razoavelmente, os benefícios do projeto com a comunidade, como uma forma de indenização pela exploração de terras e recursos necessários para sua sobrevivência.

Inclusive, a ausência de consulta prévia foi considerada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no Caso do Povo XakmokKásek vs. Paraguay, como discriminação de fato contra um povo indígena que foi marginalizado no gozo de seus direitos.

Sarayaku, no Equador, denunciado em 2003 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos106.

O Equador havia outorgado uma concessão a uma empresa transnacional para exportação de petróleo em uma área que incluía 65% do território tradicional da comunidade, sem consulta-la ou procurar seu consentimento. Mobilizados, os Sarayakus foram alvo de uma campanha sistemática de perseguição, tanto por parte de empregados da empresa quanto pela exército e pela polícia, que bloqueavam o acesso da comunidade a mencionada área e atentaram contra a integridade de seus líderes.

Em 2003, a CIDH, e posteriormente, em 2013, a Corte Interamericana outorgaram medidas de proteção em favor de seus líderes e integrantes da comunidade, que ainda seguem vigentes. Assim, foi criado um precedente essencial para outros povos indígenas na região.

Com base na jurisprudência da Corte Interamericana, em 2009, a CIDH assentou importante entendimento sobre limitações em terras indígenas para realização de atividades extrativistas ou obras grandes de desenvolvimento107, para as quais afirmou ser necessário o

preenchimento de três requisitos108:

(a) o cumprimento da legislação internacional em matéria de desapropriação, como contemplado no artigo 21 da Convenção Americana, (b) Não aprovação de qualquer projeto que pudesse ameaçar a sobrevivência física e cultural do grupo, e (c) aprovação somente após consultas de boa-fé, e, quando aplicável, autorização, de um estudo prévio de impacto ambiental e social feita com a participação indígena, e participação razoável nos benefícios.

Assim, verifica-se o perfil inovador e protagonista da Comissão na

106 O caso da comunidade Sarayaku é um dos que são identificados como propulsores do argumento de alguns países sobre a necessidade de restringir a faculdade da CIDH de ditar medidas cautelares e as críticas a sua independência frente a soberania dos Estados. Ver mais no capítulo 4 desta dissertação. 107 Inclusive, em informe de 2010 sobre a situação da Colômbia, a CIDH reconheceu a relação entre o desenvolvimento de megaprojetos de infraestrutura e de exploração de recursos naturais estava invariavelmente associada a violência contra comunidades indígenas (SANTAMARIA, 2013, p. 72).

108 CIDH. Relatório “Derecho de los pueblos indígenas y tribales sobre sus tierras ancestrales y recursos naturales. 30 de dezembro de 2009, par. 225.

defesa dos direitos indígenas, em consonância com outros instrumentos de proteção.

Com relação às medidas cautelares, em casos relativos à questão da consulta prévia, as medidas concedidas em geral tem relação a violações de direitos humanos como a intimidação e perseguição, assassinatos, desaparecimento de lideranças.

As medidas cautelares foram uma das causas da recente crise do Sistema, que evidenciou contradições dentro do próprio Sistema, tensões ao redor das consultas, interesses de multinacionais, e da dependência rentista do extrativismo nos modelos de desenvolvimento regionais, como o caso da medida cautelar relativa ao caso da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Brasil, que será tema do próximo capítulo.