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O “DRAMA” RADIOFÔNICO

poucas as tentativas já feitas junto à Fifa para modificação de várias regras do futebol, sob a desculpa de que elas motivariam o público, que não passam de sugestões para adaptação dos interesses de emissoras que detêm o poder de transmissão. Felizmente, pelo bem do jogo, os dirigentes ainda resistem a boa parte destas “inovações”.

O certo é que essa formatação do jogo e de seus “atores”, o enquadramento de parte do campo pela imagem da tv durante a transmissão, fazem com que haja uma interferência na narrativa, dentro da concepção de McLuham de que o meio é a mensagem. Não é a qualidade da informação, mas o formato em que ela se apresenta.

jogo da sedução. Rudolf Arnheim, estudioso do rádio desde a década de 30, aponta uma série de características do veículo.

Domina não só o maior estímulo conhecido para os sentidos – a música, a harmonia e o ritmo – mas, ao mesmo tempo, é capaz de descrever a realidade por meio de ruídos e do veículo de divulgação mais amplo e abstrato que o homem possui: a palavra. No rádio, o som e as palavras revelam a realidade com a sensibilidade do poeta, e nela se encontram os tons da música, os sons mundanos e espirituais, penetrando assim a música no mundo das coisas; o mundo se enche de música e a nova realidade criada pelo pensamento se oferece de modo muito mais imediato e concreto que no papel impresso: o que até há pouco tempo somente eram idéias escritas, passou a ser algo materializado e bastante vivo.88

Veículo capaz de descrever a realidade por meio de ruídos nos parece uma boa definição para o rádio. Daí a preocupação de Sanz em defender que, apesar de ser ideal que se tivesse um texto ou um roteiro para o locutor, o grande desafio em que se encontra o profissional da comunicação numa transmissão é justamente o de acompanhar um evento ao vivo. Onde, segundo ele, “a fala vazia, para ocupar tempo, é desastrosa”.89 Sanz acredita que a filiação do rádio é a mesma do melhor teatro popular.

Improvisação significa liberdade e domínio da informação. O que talvez haja sido o mais vigoroso movimento teatral europeu moderno, a commedia dell arte, resistiu durante três séculos às tentativas de controlá-lo e não deixou uma só peça escrita. Palavras e situações modificam-se de praça em praça, aldeia em aldeia. Isso só foi possível porque seus intérpretes eram também seus criadores e sabiam o que estavam falando. A dramaturgia desses artistas cênicos nas selvas da Indochina, na Itália renascentista, nos sertões brasileiros, em praças de todo o mundo, estruturou-se na improvisação. Na capacidade de introduzir no espetáculo informações desconhecidas do público, recolhidas pela trupe em outros burgos e aldeias, e personagens ou “causos” locais.90

Na transmissão do futebol, também as situações se modificam a cada momento e não dá para se ter uma fala programada. Em sua narrativa, o locutor conta também com essas informações desconhecidas do torcedor (normalmente vindas do repórter de campo ou plantão esportivo, retiradas dos bastidores do espetáculo). O narrador precisa criar para si uma situação, uma referência, que contribui para que ele consiga alcançar o clima que deseja transmitir, tal qual na construção dramática.

88 ARNHEIM, 1980 apud SANZ, s.d.

89 SANZ, s.d., p.18

90 Ibidem, p.24

É comum aos narradores esportivos imprimirem ritmos rápidos às suas falas, representando a realidade subjetiva e não a objetiva. A memória emocional tem papel semelhante ao funcionar como um arquivo no qual o apresentador encontra a tonalidade emotiva que vai imprimir à informação. Da mesma forma, a recriação da emoção dá subsídios ao profissional para, por exemplo, transmitir a sensação que o espetáculo, a partida de futebol, lhe provocaram.91

O narrador esportivo não pode hesitar, sob pena de proporcionar ao ouvinte o desejo ou a oportunidade de mudar de canal. Embora tenha marcas de gênero muito claras, ele enfrenta uma série de desafios e constrangimentos diante de um espetáculo absolutamente inesperado. É interessante observar que o narrador do jogo logo caiu no gosto do povo brasileiro. Fascinou e se incorporou ao próprio jogo, permitindo retomar o papel do contador de histórias, mantendo-o como relator das emoções, de dramas, alegrias, vitórias e derrotas.

A conseqüência imediata não poderia deixar de ser o surgimento de um estilo de narração própria, de um formato enraizado em nossa identidade cultural, despertando o interesse dos meios de comunicação. Afinal, o futebol lida diretamente com o mito e isto a mídia sabe tratar muito bem. O jogo alimenta o imaginário do torcedor, que, por sua vez, se identifica com o jogador, o idolatra e o transforma em mito. Mídia e esporte trabalham com mecanismos de massificação e, desse modo, constroem e destroem os valores culturais e impõem outros. Os estudos da comunicação mostram que a massificação do esporte no Brasil aconteceu com a união do futebol de campo e o rádio.

Nelson Rodrigues, quando fazia parte da equipe de cronistas do Globo, em 1931, escreveu sobre a importância que ganha o futebol, superando aspectos puramente esportivos, invadindo outras dimensões humanas.

(...) a bola é um reles (...) detalhe, pois o que interessa no esporte é o ser humano por trás da bola, é o drama, é a tragédia, é o horror, é a compaixão.

O que vale são as histórias – cômicas, dramáticas ou simplesmente pitorescas – que se formam em torno das personagens e instituições do universo futebolístico. Através desse suplemento interpretativo, que são os

91 SANZ, s.d., p.28

incontáveis discursos que a sociedade produz sobre o espetáculo, o jogo ganha uma dimensão nova e emocionante.92

O professor Marcelino Rodrigues da Silva, em “Quem desloca tem preferência”, destaca que as narrativas do futebol foram e continuam sendo permanentemente recriadas e reinterpretadas pelas tradições esportivas que se formam em torno de regiões, cidades, bairros, grupos familiares, comunidades de imigrantes e etc.

Para compreender o alcance desse fato, talvez seja útil recorrer às reflexões de Walter Benjamin, em seu clássico ensaio sobre a posição do narrador diante das dramáticas transformações impostas pelos tempos modernos.

Reconhecendo na narrativa um alto grau de abertura interpretativa e apontando para suas ligações com a memória coletiva, Benjamin nos ajuda a perceber o papel desempenhado pelas histórias do futebol no difícil processo de reinvenção das formas populares de sociabilidade e comunicação vivido pela sociedade brasileira ao longo do último século.93

Vera Regina Toledo afirma que o radialista esportivo “tinha a função básica de criar a imagem da disputa para aqueles que estavam distantes do jogo. O imaginário era acionado e, deste modo, posso afirmar que as ideologias, identificações e simbologias do esporte tiveram seu nascimento nesta época.”94

Os locutores esportivos recorrem às mais diversas estratégias para concretizar a sedução junto ao torcedor. Seja através de uma linguagem estereotipada, de uma associação do jogo à guerra, de adjetivações que, ao contrário do que sempre se apregoou entre os comunicadores sociais, nada tem de pobre ou banal. Através de uma retórica de amplificações, o narrador convida o ouvinte a fazer parte do espetáculo. Ele é parte de todo o processo de transmissão. “O narrador dá um novo sentido à metáfora tradicional. Logo, o torcedor adota esse novo significado e passa a repeti-lo à exaustão.

O uso da retórica estimula a visualização do jogo e abre espaço para a fantasia e o sonho do espetáculo.”95

92 RODRIGUES FILHO, 1994, p.11

93 SILVA, 2004

94 TOLEDO, 1999, p.73

95 ALMEIDA, 2004

André Masini, escritor paranaense, escreveu um artigo no jornal O Paraná, que reflete bem o que essa retórica provoca no ouvinte, mesmo aquele que não conhece bem o jogo ou não se interessa muito por futebol. Aos 7 anos, quando foi levado pelo pai para ver um jogo entre Palmeiras e Corinthians, ficou empolgado com Rivelino e com a transmissão pelo rádio daquilo que acontecia em campo.

A emoção que vinha do rádio era indescritível. Não que eu entendesse algo do que estivesse sendo narrado ou do que de fato acontecia no jogo. Não. Eu nem sabia o que era “meia-cancha”, ou “intermediária”, ou “impedimento”...

mas a voz do narrador exprimia uma intensidade tão dramática ... uma importância tão grandiosa... que parecia retratar uma batalha épica e sobrenatural, uma batalha mítica entre o bem (o Corinthians) e o mal, travada em alturas gloriosas muito acima de nossa realidade terrena e que ficaria gravada eternamente nas imensidões infinitas. 96

O poeta Carlos Drumond de Andrade, em 1931, escreve uma crônica em que demonstra sua perplexidade pela cena que viu na Avenida Afonso Pena, em Belo Horizonte. Em princípio, ele é informado que aquela multidão estaria reunida para ouvir

“pelo telefone o jogo dos mineiros na Capital do país”. Drumond descreve os detalhes da eufórica comemoração dos torcedores depois da vitória por 4 a 3 sobre o Rio de Janeiro. Mas, acima de tudo, mostra sua dificuldade de compreender, na época, a força que o rádio já demonstrava. Sua crônica terminava assim:

Não posso atinar bem como uma bola, jogada à distância, alcance tanta repercussão no centro de Minas. Que um indivíduo se eletrize diante da bola e do jogador, quando este joga bem, é coisa fácil de compreensão. Mas contemplar, pelo fio, a parábola que a esfera de couro traça no ar, o golpe do center-half investindo contra o zagueiro, a pegada soberba deste, e extasiar-se diante desextasiar-ses feitos, eis o que excede de muito a minha imaginação. A centenas de quilômetros, eles assistam ao jogo sem pagar entrada. E havia quem reclamasse contra o juiz, acusando-o de venal. Um sujeito puxou-me pelo paletó, indignado, e declarou-me: ‘o Senhor está vendo que pouca-vergonha? Aquela penalidade de Evaristo não foi marcada’. Eu olhei para os lados, à procura de Evaristo e da penalidade, via apenas a multidão de cabeças e de entusiasmos; e fugi.97

A velocidade, a entonação, a dicção e a imprevisibilidade dos acontecimentos dão ao narrador e ao ouvinte a emoção. O locutor, para conquistar a audiência, precisa também ter uma boa visão de jogo, qualidade que está ligada ao que

96 MASINI, 2005

97 ANDRADE, 2002, p.23-24

vai além da jogada, que pode ser descrito e valorizar a narração. E mais, este profissional precisa ter rapidez de reflexos; noções de notícia, para saber como acionar os demais integrantes da equipe de esportes durante a partida.

Deste narrador se cobra um ritmo adequado, em que prevaleça o equilíbrio e o controle para não se exagerar, o que pode causar descrédito. Essa cobrança se acentuou a partir do momento em que a televisão começou a mostrar os jogos. Aquele lance descrito como quase gol e que passou longe não cabe mais. Se acreditamos que ainda muitas pessoas optam por ver o jogo na tv ao som do rádio, o descuido com a precisão na descrição leva o desmentido pela imagem e a conseqüente perda de credibilidade.

Mesmo assim, já com a chegada da televisão, muitos estudiosos apostam que existe uma diferença muito grande em um jogo transmitido pelo rádio. J. Silveira aposta que há uma diferença nos narradores.

Levei anos desde o tempo da TV Tupi, fazendo testes e comparações, tudo dentro da mais rigorosa isenção, de forma que agora posso afirmar, sem qualquer dúvida, que os nossos times de futebol jogam melhor no rádio do que na televisão. E que os locutores das rádios vêem tudo, mas tudo mesmo, o que passa no campo, o que não acontece com os locutores e comentaristas da televisão.98

Completando esse “time” de amantes da transmissão esportiva pelo rádio, não poderia ficar de fora o cronista esportivo Armando Nogueira.

Sempre achei que o futebol perdeu muito, em fantasia, depois que apareceu a televisão, aplacando no torcedor a capacidade de sonhar cada drible, cada passe, cada chute, cada gol. Graças a Deus, o rádio me pegava pela mão e me transportava aos campos de futebol na minha utopia. Abençoado o rádio que me nutriu de tantos devaneios recolhidos nas tramas da grande área.99

98 SILVEIRA, 1997, p.13

99 NOGUEIRA, 2005, p.10

4 MITOS, ÍDOLOS E HERÓIS DENTRO E FORA DE CAMPO

Toda sociedade tem a necessidade da transcendência. Essa transcendência de tornar um homem comum em um homem diferente é a que proporciona o surgimento de toda a legião de deuses, de heróis e super-heróis. O mito é justamente o elemento de transcendência. E para que ele exista é necessário que exista o rito, que é sua celebração, a narrativa mítica. É um elemento que tem que passar por vida, paixão, morte, lamento e ressurreição.

Para Roland Barthes100, o mito representa um sistema de comunicação, uma fala apropriada, uma mensagem, um modo de significação, uma forma. “A fala mítica é formada por uma matéria já trabalhada em vista de uma comunicação apropriada: todas as matérias-primas do mito, quer sejam representativas, quer gráficas, pressupõem uma consciência significante, e é por isso que pode raciocinar sobre eles independentemente da sua matéria,” diz ele.

Trabalhando com a idéia de Roberto DaMatta de que o futebol representa a sociedade, ele deve ser entendido como um fato complexo, que fascina e leva todos que o assistem, além de se divertirem, a exprimirem sua própria vida. O que ocorre através deste jogo-espetáculo é uma simulação, uma representação intensificada do próprio cotidiano da população.

É interessante recorrermos à idéia do antropólogo Geertz, quando explica que o jogo (qualquer jogo) é uma forma de auto-representação do sujeito, tal como a cultura celebra esta representação e é por isso que se faz o jogo, não a guerra. Jogadores sempre são guerreiros. A violência é deslocada.

100 BARTHES, 1975, p.132

O futebol corresponde a um fenômeno cultural, espontâneo, em suas implicações simbólicas, quaisquer que sejam elas: o campo representando o território;

os homens se apresentando como heróis; a disputa como sendo o confronto do bem e o mal; a bola como um ideal a ser perseguido.

O mito é uma forma de interpretação de determinada ação realizada. Ele conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no começo do tempo. Existe para dar resposta ao que ainda não tem ou não consegue resposta. Os personagens do mito são os “entes sobrenaturais”, os deuses conhecidos pelo que fizeram no tempo primordial, originário do começo de tudo. Os mitos descrevem as diversas interferências do sobrenatural sobre o nosso mundo.

O homem necessita cada vez mais de buscar o jogo para reencontrar-se nas diversas oportunidades perdidas, para reencontrar-se na sua própria vida, devido a uma ligação desequilibrada existente entre os componentes naturais e culturais... O esporte em geral, mais especificamente o futebol, é uma forma de afirmação social e de conquistas pessoais, que se propagam para o âmbito mundial, encobrindo o jogador vitorioso de uma auréola mitológica na categoria de herói.101

Mônica Rebecca Ferrari Nunes, em O Mito no Rádio, chama a atenção para a necessidade de percebermos qual a dimensão que a sonoridade ocupa na vida do ser humano. “É a partir das propriedades e particularidades do som que se funda nossa relação com as vozes e os objetos sonoros que vêm do rádio”, diz Nunes. Ela recorre a Roland Barthes na busca de uma melhor definição para o significado da voz humana.

A voz humana é, com efeito, o lugar privilegiado (eidético) da diferença: um lugar que escapa a toda ciência, pois não há nenhuma ciência que esgote a voz; classifiquem, comentem historicamente, sociologicamente, esteticamente, tecnicamente a música, haverá sempre um resto, um suplemento, um lapsus, um não dito que se designa ele próprio: a voz. Este objeto sempre “diferente” é colocado pela psicanálise na prateleira dos objetos do desejo... Toda a relação com uma voz é forçosamente amorosa.102

101 MOTTA, 1990, p.39

102 BARTHES apud NUNES, 1993, p.15

Ronaldo Helal defende que “um fenômeno de massa não se sustenta sem a presença de ‘estrelas’. São elas que atraem as pessoas aos eventos e transformam-se em um referencial para os fãs.”103

O rádio, especialmente o da década de 30 e 40, resgata a força da narrativa, no momento em que faz a digressão da realidade para recriar, numa metáfora.

É o grande passeio do locutor, que passa a utilizar dessa forma metafórica para atribuir ao nome do jogador um aposto, tal e qual na narrativa épica. Ao seu nome, o jogador passa a ter associado um aposto. Situação vivida inclusive pelos próprios locutores de rádio, que também aos seus nomes ganharam complemento pela sua característica ou estilo.

Roberto DaMatta lembra que as regras delimitam ações e tempo e, assim, abrem, paradoxalmente, o jogo para a eternidade. Ele acrescenta que a elite brasileira sempre resistiu ao futebol porque “certamente o jogo significa basicamente ter de se submeter a regras que valem para todos...em vez de jogo, temos em geral ritualizações onde os poderosos sempre inventam novas regras e modificam drasticamente o jogo”.104 No entanto, o futebol é uma forma positiva de cidadania, uma vez que permite juntar o mundo da casa com o universo impessoal da rua. O futebol fascina o público pelo que veicula de igualdade e possibilidade de exercer escolhas – de exercitar a liberdade.

Assim, acabamos por adotar o conceito de que vivemos em “uma pátria de chuteiras” e verificamos que estamos trabalhando em torno de nações (aqui mais no sentido de tribos), como a nação rubronegra, a corintiana, a botafoguense, a cruzeirense, que, dentro de campo, travam uma “guerra”. Somente uma narrativa que traga todo esse espírito poderá despertar e refletir o clima que envolve esse espetáculo. E é nisso que as transmissões esportivas se transformaram: um grande show.

103 HELAL, 2005. O artigo parte de projeto com objetivo de investigar algumas práticas identificadas com as chamadas culturas populares, como, por exemplo, o surgimento e a Cultural.

104 Ibidem

O rádio tem um espaço da criação junto à imaginação dos ouvintes. Essa riqueza de comunicação perde força exatamente quando a sociedade deixa de ser narrativa para ser figurativa e ilustrativa com o surgimento da televisão. Porque a tv passa a transmitir de uma forma direta, sob os mais diversos ângulos, onde o telespectador vê a jogada, literalmente, sob os mais diversos pontos de vista. Ao eliminar essa narrativa radiofônica, elimina-se o mito para se ter em seu lugar o ídolo, que é a projeção de uma imagem.

Essa imagem acaba sendo revestida por elementos do cotidiano. Por exemplo, além de ser um bom jogador, a pessoa tem que lutar para construir uma boa imagem, lutando para resguardar a intimidade. O rádio preserva e se utiliza o tempo todo da paixão. Ele trabalha esse campo da paixão que elabora o tempo mítico.

Enquanto a sociedade se organiza na esfera do “estar”, como fala Régis Debray, a televisão conquista o espaço e surge o elemento midiático. A imagem, então, desmistifica tudo. E assim, o que passa a valer, acima de tudo, é a informação.

O professor José Luiz Ribeiro (informação verbal)105 chama a atenção para o que Walter Benjamim fala sobre a queda da aura, na verdade entendida como uma transformação de sua substância: o herói morto ainda é herói. Segundo ele, a queda da aura de um grande jogador do passado ficou na memória. Hoje, não, ela fica no documento. Hoje, o treinador e o jogador são muito mais cientistas do que apaixonados, por isso trocam de clube na maior rapidez. O que rege é o aspecto mercantilista que envolveu o futebol.

O que sempre deu aos locutores de rádio um prestígio grande não foi especificamente a narrativa, mas a forma como eles narravam. A personalidade que eles apresentavam era movida pela paixão. Todos os que trabalharam no rádio, especialmente na década de 40 e 50, eram apaixonados pelo rádio, pelos fãs. O trabalho era movido pela felicidade de contar o que viam. É diferente do que hoje são os locutores de futebol na televisão, que são profissionais formatados. (informação verbal)106

105 Nota referente a palestra proferida no curso de Introdução ao Teatro, no Centro de Estudos Teatrais – Grupo Divulgação, em março de 2005.

106 Ibidem

É essa alegria que José Luiz ressalta na transmissão do futebol pelo rádio, que contribui também para a aproximação com o torcedor. Com sua característica de companheiro e prestador de serviço, o rádio apresenta uma narrativa em confronto com o caráter professoral que passou a ser a marca das transmissões esportivas da televisão. Talvez esteja aí a explicação para a tolerância maior que o torcedor tem com os exageros do locutor de rádio e a sua crítica implacável aos narradores da tevê, como Galvão Bueno, que é alvo de críticas por ter uma intervenção forte no campo da opinião.

Os locutores de televisão, ao assumirem esse caráter professoral, trouxeram uma “necessidade” de seriedade na narração. Com esse caráter mais didático, ficou difícil para a locução esportiva na televisão ter o espaço para a descontração e alegria, já que o narrador está sob controle de toda a estrutura de transmissão, com o diretor de tv ditando o que vai ser dito e não o que vem do campo.

Quando o rádio floresce existe uma diferença de gênero. Para o homem, restava o noticiário do Repórter Esso e o futebol. Era delimitado o que era programa para o homem. A novela era para a mulher, como os programas que davam conselhos e etc. Para o homem ficou reservado o espaço da aventura e para a mulher o elemento reclusão. É antropológico, enquanto o homem saía para a caça, a mulher ficava separando sementes. Fica então criado o espaço do jogo. E o jogo é o espaço para o indeterminado. A mulher podia se libertar através das novelas, com as heroínas, tinha seus sonhos sexuais com a voz do galã, ela podia fugir através da narrativa. O homem se libertava do peso do cotidiano, do peso de ser homem numa sociedade machista, encontrando no futebol o espaço para se emocionar, chorar, ter emoção. De novo a aventura, já que o jogo não tem limite. O jogo implica na reversão da expectativa do cotidiano.107

Não são poucos aqueles que afirmam que a espetacularização do esporte surge com a televisão. Se o rádio deu ao futebol a popularização entre os brasileiros e o transformou em paixão, a televisão o transformou em espetáculo e em negócio. No entanto, diante da força que a narrativa radiofônica sempre teve, não deve ser considerado exagero dizer que também o rádio contribuiu para a transformação de jogadores em heróis. Afinal, entre os anos 30 e 50, foi o rádio quem apresentou ao

107 Nota referente a palestra proferida no curso de Introdução ao Teatro, no Centro de Estudos Teatrais – Grupo Divulgação, em março de 2005.