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O ECA: uma questão de utopia ou de fracasso?

A despeito das conquistas legais acima mencionadas, lamentavelmente, percebemos que a realidade concreta das crianças e adolescentes de nosso país, ainda de forma considerável, diverge do que foi preconizado pelo Estatuto da Criança e Adolescente, conforme afirmamos no início deste capítulo. Em relação a esse contexto de divergências, duas palavras, no mínimo, têm sido associadas ao ECA: enquanto para alguns atores sociais, o Estatuto é sinônimo de fracasso, como podemos ver em Bastos (2002), para outros, representa uma utopia (Melo, 1999; Oliveira, 2000). Sabendo que

as palavras refletem e refratam a realidade, assim como validam e norteiam nossas práticas sociais (Bakhtin, 2004/1929), consideramos necessário dedicarmos um espaço neste trabalho para pontuarmos, mesmo que brevemente, alguns avanços e dificuldades da implantação do Estatuto de uma forma contextualizada, numa tentativa de problematizar as críticas dirigidas ao mesmo.

Decerto que é possível reconhecer alguns avanços nas intervenções junto à população infanto-juvenil com base nas avaliações que Costa (1999) e Bazílio (2003a) tecem em relação ao processo de implementação do referido Estatuto em seus primeiros dez anos de vigência como, por exemplo, o bom funcionamento de alguns conselhos; a liberdade de imprensa que a sociedade dispõe para denúncias de violações; as iniciativas exitosas, mesmo que isoladas, de desinstitucionalização, sem mencionar o fato do

Estatuto ter influenciado e inspirado legislação semelhante em diversos outros países latino-americanos, constituindo-se um importante elo do Brasil com os mesmos. E,

nesse sentido, podemos, ainda, acrescentar a atuação das promotorias especializadas da infância e da juventude em alguns Estados, uma vez que essas têm buscado realmente apurar as irregularidades nas unidades educacionais de atendimento, chegando a agilizar as devidas correções ao adotarem geralmente uma forma consensual de resolução, conforme registram Queiroz e Falqueto (2003).

Entretanto, os problemas parecem ser muitos e os obstáculos, de difícil superação, o que nos faz compreender Bazílio (2003b) quando afirma que o Estatuto está em risco. Segundo esse mesmo autor, ao lado de Conselhos Tutelares, em sua maioria, fragilizados pela falta diversificada de recursos, sejam eles físicos, materiais, de apoio, humanos qualificados, bem como pela existência de práticas clientelistas, comprometendo o seu dever de zelar pelos direitos da população infanto-juvenil, temos as medidas sócio-educativas sendo implantadas às avessas do que foi idealizado. Isto

porque as práticas adotadas denotam a persistência de um modelo repressor e excludente de atendimento, cujas raízes encontramos no Código de Menores. Tomando como referência a realidade das unidades federadas mais populosas, Bazílio (2003b), em relação à prática existente dessas medidas, afirma, dentre outros aspectos e de uma forma pontual, que o quadro de violência institucional ainda se mantém nos moldes da FEBEM. Nessa mesma direção, nota-se que grande parte dos juízes, dentre outros integrantes do sistema de aplicação das medidas, encontra-se fiel à vertente positivista da criminologia em que se fundamenta o sistema prisional; e que, semelhante à realidade dos conselhos, como vimos acima, parte considerável das unidades de internação dispõe de um quadro funcional insuficiente e mal qualificado, não só tecnicamente, como também em termos políticos.

Com Volpi (1999), que também se propõe a analisar as práticas de atendimento sócio-educativas, construídas ao longo desse período de implementação do ECA, podemos confirmar esse descompasso entre o real e o ideal, como também acrescentar outros dados nesse sentido. Segundo esse autor, superlotação, inexistência de uma proposta educativa, subordinação da medida de privação de liberdade à área da justiça, manutenção da estrutura física dentro dos padrões penitenciários, dispondo ainda de celas, mantidas fora de qualquer exigência mínima de salubridade e dignidade, excessivo rigor da justiça na imputação da medida, inexistência de uma política descentralizada de execução e articulada com outras políticas sociais, falta de recursos humanos adequados, dentre outros aspectos, têm configurado a realidade efetiva do atendimento dispensado, nesse caso, aos adolescentes que estão em privação de liberdade.

Quanto aos programas de execução da medida liberdade assistida - LA, de interesse mais específico deste trabalho, conforme aponta Basílio (2003a, 2003b), a

insuficiência de recursos não tem conferido a estes um bom desempenho, nem, por conseguinte, a credibilidade enquanto alternativas eficazes, de forma a reduzirem o tempo de internação em caso da medida de privação de liberdade. Esse mesmo autor ainda chama a nossa atenção para o fato de que a qualidade do atendimento nesses programas, como ocorre com as outras medidas sócio-educativas, encontra-se também comprometida pela falta de clareza por parte de muitos operadores do próprio sistema sócio-educativo sobre o que venha a ser a própria LA. Além disso, observamos que o princípio da intersetorialidade do atendimento em que as ações sócio-educativas devem se integrar a toda rede de atendimento, não se restringindo apenas a um órgão específico, também não vendo sendo cumprido (Fucks, 1999), minorando, dessa forma, as possibilidades de inserção social dos adolescentes, mesmo quando o seu processo educativo se dá em meio aberto.

A esse quadro de contradições, que por si já atualiza a necessidade do reordenamento institucional (Campos & Francischini, 2005) para a implantação efetiva do ECA, ao demonstrar que velhas práticas de atendimento resistem e chegam a se sobrepor ao novo olhar representado pelo mesmo, devemos somar o fato de que tais práticas contam a seu favor com o ideário neoliberal que passa a nortear nosso país a partir dos anos de 1990 à revelia da Constituição que há pouco tempo havia sido promulgada (Bazílio, 2003b; Oliveira, 2000). Como nos lembram Sartor, Martins e Silva (2002), a partir da Carta Magna, símbolo de nosso processo de redemocratização, tornou-se possível a alocação descentralizada das ações e dos recursos públicos com a criação de canais institucionais de participação da sociedade civil e o estabelecimento do pacto federativo, que prevê a ampliação relativa da carga tributária e responsabilidade social dos Estados e Municípios, com vistas a garantir, através de políticas públicas universais, a concretização dos direitos sociais conquistados.

Entretanto, sob o jugo da ótica neoliberal para a qual o livre jogo dos interesses de mercado é a forma mais racional e mais justa de alocar recursos econômicos, o estado é visto como improdutivo, ineficiente, a privatização, a solução mais prudente, e os problemas sociais, uma questão secundária a ser resolvida pela solidariedade social, segundo descreve Rocha (2001), o que podemos observar, de acordo com Bazílio (2003b), é o desmonte da ação social do estado brasileiro, com a subseqüente redução dos gastos nessa área e a postura não-intervencionista na economia, resultando na oferta de serviços públicos cada vez mais precários para a maioria da população e na adoção de políticas sociais focalizadas nos setores mais pauperizados. Políticas essas que, como bem apontam Pereira e Stein (2003), não são veículos de inclusão social, na medida em que excluem e, assim, mantêm o máximo possível de pessoas para aliviar as despesas do governo, reservando, ainda, aos contemplados um tratamento estigmatizante e um status de cidadania inferior, uma vez que suas necessidades, vistas como expressão de faltas morais e não direitos sociais, são reduzidas ao nível da sobrevivência e atendidas mediante o cumprimento de certas contrapartidas em relação ao Estado. Assim, além de não liberarem os pobres de sua situação de privação, funcionando como “cadeias de dependência” (p. 88), as políticas focalizadas contribuem para o aumento da pobreza, ao deixarem no desamparo os grupos sociais não focalizados, mas suscetíveis ao empobrecimento.

Na área da infância e adolescência, temos, como exemplos dessa tendência de focalização das políticas sociais, uma série de programas sociais do governo federal, a saber, o Bolsa-Escola do Ministério da Educação, o Bolsa-Renda (para a população situada nas regiões da seca) do Ministério da Integração Nacional, o Bolsa-Alimentação do Ministério da Saúde, o Bolsa Criança Cidadã do PETI para vítimas - 7 a 14 anos de idade - de exploração sexual ou envolvidos em trabalho precoce e afastados da escola, o

Agente Jovem da Secretaria de Assistência Social, o Sentinela para vítimas de exploração sexual, nos quais a distribuição de recursos limitados entre a parcela mais pobre da população infanto-juvenil lhes constitui uma característica comum. Porém, devemos sinalizar que, atualmente, além de não produzir os efeitos compensatórios desejados, esses programas sequer atingem todas as famílias pobres, ao se restringirem aos municípios que têm condições de arcar com os 50% dos custos do programa, exigidos pelo governo federal, excluindo, dessa forma, os municípios mais pobres (Sartor et al., 2002).

Diante do último Censo Demográfico realizado em nosso país, podemos constatar a profunda desigualdade social com que essa tendência neoliberal corrobora (Rocha, 2001): enquanto 1% da população rica detém 13,5% da renda nacional, os 50% mais pobres, apenas 14,4% da mesma. E se considerarmos, ao mesmo tempo, o fato de que a maioria dos adolescentes em conflito com a lei possui baixa escolaridade, pertencem a famílias de baixa renda e que a maioria dos atos infracionais cometidos são contra o patrimônio, com base em algumas pesquisas realizadas de âmbito nacional (Rocha, 2002, citado por Brasil/SEDH, 2004; Volpi, 2001), poderemos entender melhor porque os defensores do Estatuto o qualificam como uma utopia e não como um fracasso. Percebemos, então, que a divergência entre o Estatuto e a realidade de atendimento dispensado aos adolescentes em conflito com a lei não decorre de falhas de seu próprio texto, seja em suas proposições ou em sua lógica, como as forças conservadoras sugerem (Bazílio, 2003b), mas expressa a distância ainda a ser percorrida pelos movimentos sociais para tornar as práticas de atendimento à altura da utopia que subjaz o ECA, isto é, do que foi e é ainda desejado, enquanto ideal: “a democratização da sociedade, uma melhor distribuição de renda, a ampliação dos horizontes da

cidadania e a ênfase nas políticas sociais básicas”, como nos lembra Arantes (1995, p.218).

Desse modo, o ECA se constitui um projeto de sociedade democrática, participativa, inclusiva, sendo a sua implantação uma luta contra-hegemônica em uma realidade regida por um projeto neoliberal periférico que aprofunda o nosso quadro de desigualdade e de exclusão social, em que os direitos humanos básicos e garantidos em lei também são violados (Oliveira, 2000), dando continuidade e firmeza a práticas excludentes historicamente arraigadas em relação às crianças e aos adolescentes de nosso país, como vimos anteriormente neste trabalho, ao reconstruírmos o caminho percorrido pela assistência à infância. Um projeto que, em consonância com nossa condição de seres históricos, portanto, inacabados, e a percepção da história como um tempo de possibilidades, implica necessariamente nossa inserção responsável em um processo permanente de busca a fim de não só sustentá-lo ideologicamente, mas principalmente de engendrar para e com as nossas crianças e adolescentes condições objetivas a sua efetivação (Freire, 1996; Sarmento, 2002).

Ignorando, portanto, que as condições de implementação efetiva do ECA, principalmente no tocante às medidas sócio-educativas, não foram asseguradas, bem como a complexidade que envolve a sua concretização, Projetos de Emendas Constitucionais a favor da redução da maioridade penal de 18 para 16 anos têm circulado no Congresso Nacional, com o propósito de ver solucionado o aumento da violência social. Dentre a série de argumentos que têm servido de apoio aos defensores dessa proposta, merece destaque o chamado mito da irresponsabilidade do adolescente ou da impunidade, apontado por Volpi (2001), pela relação estreita e, ao mesmo tempo, distorcida que o mesmo estabelece com o Estatuto em torno da questão da inimputabilidade penal. De acordo com esse mito, os adolescentes estariam mais

propensos à pratica de atos infracionais porque a legislação, no caso, o ECA, se mostra branda na sua punição, diferentemente do Código Penal, fomentando, assim, um clima de impunidade. Nesse sentido, podemos compreender porque o Estatuto é identificado como sendo a lei que “protege” os adolescentes, como um fracasso no controle da prática infracional junto aos mesmos, sendo, assim, responsabilizado por sua própria não-implementação, enquanto a lógica que preside o referido Código parece ser vista como a que, na verdade, tem eficácia.

Entretanto, como outrora esclarecemos neste trabalho, o direito à inimputabilidade penal não quer dizer que os adolescentes são desresponsabilizados pelos atos infracionais que cometem, sendo os mesmos submetidos ao cumprimento obrigatório das medidas sócio-educativas, cuja eficácia está condicionada, em grande parte, às reais condições em que as mesmas ocorrem e que se constituem a contrapartida do Estado e da sociedade civil, em função de sua condição de destinatários de proteção integral. Ademais, como afirma Volpi (2001), o agravamento das sanções não tem reduzido a prática infracional, de forma que o sistema prisional, fundamentado nessa lógica, não se constitui em referência positiva dentre as políticas de controle dos delitos, não se justificando, por conseguinte, a proposta de estender aos adolescentes o mesmo tratamento dispensado aos adultos. Em Foucault (1987), podemos ver que, desde 1820, esse sistema é denunciado como “grande fracasso da justiça penal” (p. 221), seja em sua finalidade repressiva ou corretiva, e reiterado, inclusive, mediante as várias reformas de que fora objeto, nas quais a prisão, paradoxalmente, tem sido o seu próprio remédio. Das denúncias descritas por esse autor e que ainda hoje se fazem atuais, temos que:

-As prisões não diminuem a taxa de criminalidade: pode-se aumentá- las, multiplicá-las; ou transformá-las, a quantidade de crimes e de criminosos permanece estável,ou ainda, aumenta...;

-A detenção provoca a reincidência, depois de sair da prisão se tem mais chance que antes de voltar para ela...;

-A prisão não pode deixar de fabricar delinqüentes. Fabrica-os pelo tipo de existência que faz os detentos levarem (...) isolados nas celas, (...) imposto um trabalho inútil (...), impondo aos detentos limitações violentas...;

-A prisão favorece a organização de um meio de delinqüentes, solidários entre si, hierarquizados, prontos para todas as cumplicidades futuras (...). E nesses clubes é feita a educação do jovem delinqüente que está em sua primeira condenação. (p. 221-222)

E, na medida em que esse mesmo autor reflete sobre o fracasso da prisão, podemos ainda compreender que a delinqüência produzida pela mesma, a chamada delinqüência institucionalizada, constitui produto e instrumento de dominação política em nossa sociedade quando, através dela, pode-se exercer o controle das ilegalidades produzidas pela população pobre e ofuscar a criminalidade de “cima” que gera e sempre amplia aquelas ocasionadas pela necessidade, ao produzir miséria e revolta nos pobres. Um tipo de criminalidade que opera sob a permissão das leis, chegando a dispor, inclusive, do direito de ser tratada com indulgências e indiscrição quando, por acaso, cai nas malhas do sistema jurídico. Para o autor, “Não há natureza criminosa, mas jogo de forças que, segundo a classe a que pertence os indivíduos, os conduzirão ao poder ou à prisão...” (p.240).

Assim sendo, podemos notar que as propostas de redução da idade penal como forma de solucionar a violência subjaz e, ao mesmo tempo, alimenta a compreensão de que a violência social é um problema de ordem individual, cuja solução não envolve intervenções na matriz da produção da pobreza, a partir de políticas públicas, mas somente no indivíduo e de forma segregadora, afastando-o do convívio social, como se fosse a própria fonte de desordens. Por outro lado, o próprio sistema prisional se mantém intocável, inquestionável entre aqueles que desconhecem suas engrenagens,

contribuindo, por conseguinte, com a manutenção do controle sobre a população pobre, dado que grande parte dos que habitam as prisões pertencem a esse segmento populacional.

Diante do exposto, a idéia de fracasso associada ao ECA, que apontamos no início desta discussão e na qual a redução da maioridade penal se apóia, constitui-se um dos impasses a ser superado na luta pela implementação efetiva do ECA, ao lado do projeto neoliberal de sociedade. Considerando que nossa sociedade não reconhece, ainda, nos adolescentes em conflito com a lei, a sua condição de sujeitos de direitos, a desmistificação dessa visão negativa em relação ao ECA se faz necessária, dado o poder que ela tem de cooptar adeptos a favor da reformulação do Estatuto. Ao contrário, provavelmente veremos os adolescentes serem responsabilizados pelas “situações irregulares” em que vivem, como outrora, quando eram considerados menores, ou como os adultos, caso sejam inseridos no sistema prisional, sendo subtraídos do seu direito à proteção integral em função de sua condição peculiar de desenvolvimento.

Capitulo II

A Instituição Familiar em Foco

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