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4 CAPÍTULO IV A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA E O ENSINO

4.1 A escola indígena sergipana e a escola indígena mato-grossense:

4.1.6 O ensino de Ciências na EEI: algumas reflexões

Ao considerar a relevância das descobertas das ciências como ferramentas de desenvolvimento da sociedade, pois foi a partir das contribuições da ciência que a humanidade conseguiu desenvolver-se em vários campos, como na área da saúde, nas tecnologias, nos alimentos e na área da educação, a partir daí, analisando o atual quadro do sistema educacional brasileiro, percebe-se que é preciso repensar constantemente a maneira como devem ser abordados os conhecimentos escolares provenientes das ciências no processo de ensino e aprendizagem para que, assim, o aluno compreenda a relação entre suas necessidades básicas e o conhecimento adquirido na instituição escolar.

Dessa forma, é fundamental refletirmos sobre o ensino de ciências em seus diversos níveis, e não apenas aquele praticado na Educação Básica, portanto, deve-se levar a discussão ao período que antecede este momento, ou seja, faz-se necessário discutir num contexto histórico a maneira como os cursos de formação de professores trabalham as Ciências Naturais junto aos futuros professores (NASCIMENTO, FERNANDES E MENDONÇA, 2010). Pois, muitas vezes, o professor reflete em sua prática de ensino aquilo que lhe foi proporcionado durante sua formação inicial e não procura desenvolver competências e/ou habilidades para aprimorar o trabalho pedagógico a ser desenvolvido.

Ao associarmos no contexto do ensino das Ciências Naturais à modalidade educacional indígena, com suas especificidades, sendo a principal delas o trabalho, visando à interculturalidade, vamos perceber que, assim como nas escolas das demais modalidades, a necessidade da reflexão sobre o processo de ensino e aprendizagem das ciências em meio aos grupos indígenas configura-se como um dos aspectos inerentes ao cumprimento dos objetivos a que se propõe esta modalidade educacional (BRASIL, 1998).

Sobre a problemática da estruturação ou restruturação das práticas pedagógicas a serem efetivadas e da maneira como se deve desenvolver o ensino de Ciências Naturais durante o processo de formação dos professores, sobretudo na EEI, Lopes (2012) vai discutir as necessidades da formação inicial dos futuros professores das Ciências Naturais, destacando que

[...] os conteúdos deveriam ser trabalhados de forma contextualizada e problematizada culturalmente. No entanto, essa abordagem dos conteúdos é fragilizada nos cursos de licenciatura das áreas das Ciências Naturais, os quais não contemplam uma formação contextualizada. (LOPES, 2014, p. 17).

Em relação ao processo de contextualização do ensino, como já falamos, é imprescindível que os alunos sintam-se incluídos no processo, e em se tratando da modalidade educacional indígena que é estabelecida como uma educação diferenciada das demais modalidades espera-se que o aluno indígena não seja um mero espectador do processo educacional, mas que ele possa auxiliar sua comunidade na busca por melhores condições no desenvolvimento de suas atividades, sem que se percam ao mesmo tempo suas crenças, hábitos e costumes.

Desta maneira, a busca por uma prática pedagógica que envolva ou associe os conteúdos curriculares através da interação professor-aluno, deve priorizar a situação organizacional da comunidade, fazendo com que a ciência ali trabalhada não se resuma ao conteúdo teórico, que por si só, não passa de conceitos previamente definidos, sendo acompanhados por fórmulas com cálculos imaginários que tornam o trabalho extremamente abstrato e desconexo da realidade.

Diante do quadro atual do processo de ensino, mesmo com a inserção das orientações dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), ainda se percebe a ênfase em transmitir o conteúdo científico escolar integralmente, preocupando-se apenas com a retransmissão de informações abordadas nos livros ou demais fontes, situação esta difícil de ser transformada, pois, apesar dos congressos e seminários na

área educacional abordando discussões sobre este tema, não se consegue atingir o nível de conscientização necessário aos principais agentes do processo que são os professores da Educação Básica, até porque os mesmos dificilmente participam destes eventos.

Em face da situação acima citada em que não percebemos uma considerável presença dos professores em eventos que discutem melhorias para as práticas pedagógicas, nos deparamos com a constante situação em que a prática de sala de aula é pautada no ensino tradicional conteudista, tal prática tende a desestimular os alunos a continuarem seus estudos.

Como exemplo, citamos o que foi observada por Lopes (2014) junto à escola indígena Aturua mato-grossense, na qual, ao analisar o ensino de ciências, mais precisamente sobre a maneira como é trabalhada a ciência Química, a autora destaca que,

[...] os conteúdos encontrados nos cadernos dos alunos, por sua vez, refletem a cópia fiel do livro didático de Química ou, em outras palavras, um ensino de Química livresco. Com efeito, esses conteúdos caracterizam um ensino tradicional, fundamentando em descrição sucinta que privilegia os cálculos e representações químicas sem qualquer relação com a realidade do aluno (LOPES, 2014, p. 13).

Por essa razão, é que os alunos muitas vezes não se identificam com as abordagens realizadas pelos professores de determinadas disciplinas, tendo-as como algo fora do seu contexto social, e, portanto, desnecessárias para solução de seus problemas. Esta situação é comumente observada no ensino das Ciências Naturais, especialmente tratando-se de Química e Física.

Sobre a utilização do livro didático como único recurso no auxílio do professor em sala de aula, Lopes (2014) ressalta que

A forte influência do Livro Didático de Química parece estar vinculada, principalmente a dois aspectos. O primeiro refere-se ao fato de não terem sido publicados livros didáticos de Química voltados à Educação Escolar Indígena. O segundo diz respeito ao fato de não ter sido contemplado, no processo de formação de professores, uma discussão acerca da produção de material didático da área para essa modalidade de ensino. (LOPES, 2014, p. 10).

Percebe-se, então, ao considerarmos estes dois aspectos, que a deficiência observada em algumas práticas pedagógicas tornando-as tradicionais e descontextualizadas, não pode ser atribuída especificamente ao professor, pois não compete diretamente a ele a construção e/ou estruturação do livro didático, de acordo com as especificidades da comunidade escolar.

É necessário ressaltar ainda, que não é de responsabilidade dos licenciandos a organização da matriz curricular e os conteúdos a serem abordados e discutidos durante a sua formação inicial, e desta forma, muitas das situações as quais o professor irá se deparar em

sala de aula não fez parte do contexto de sua formação, incluindo ai a escolha de um material didático adequado à prática pedagógica.

Portanto, cabe uma reflexão por parte de todos os envolvidos no processo educacional a fim de que, diante das transformações sociais e tecnológicas pelas quais passam a sociedade constantemente, percebam que não há como os professores permanecerem reféns de um único recurso muitas vezes descontextualizado perante a realidade dos seus alunos e transmitindo definições básicas como sendo verdades absolutas.

Em relação ao ensino da ciência Química trabalhada no processo de escolarização dos indígenas, percebemos que são grandes os desafios para efetivação de uma prática pedagógica que contemple as necessidades, ou melhor, as realidades encontradas pelo país, pois, em face da organização de cada grupo indígena, o ensino deve estar voltado a contribuir para o aprimoramento de suas atividades, além de proporcionar aos alunos informações científicas que ampliem suas visões (LOPES, 2012).

Em razão dos desafios a serem superados, a partir da realidade de uma escola indígena, Lopes (2014) ao expressar suas conclusões sobre o ensino de Química realizado na escola indígena dos Bakairi em Mato Grosso, destaca que,

[...] o ensino dos conhecimentos químicos escolares está, de certa maneira, distante da realidade desses alunos e, por consequência, pouco têm contribuído para a entrada nessa nova dimensão cultural: a ciência Química. Ainda inferimos que o conjunto das relações, propiciado pela escola a esses alunos, com o saberes e objetos dos saberes das Ciências Naturais, parecem não contribuir para construção de mais uma forma de olhar o mundo. Defendemos ainda a inserção dos conhecimentos bakairi cotidianos no espaço da sala de aula, particularmente na área das Ciências da Natureza, como forma de compreender as diferentes maneiras de ver, interagir e agir sobre/com/no mundo. (LOPES, 2014, p. 19).

Dessa forma, compreende-se que o planejamento do ensino de Química para EEI, ao ser elaborado, visando atender o que se propõe no Referencial Curricular Nacional para Educação Escolar Indígena (RCNE/Indígena), não pode se deter aos conhecimentos químicos escolares, se estes não possibilitarem aos alunos a capacidade em desconstruir e reconstruir suas visões sobre o mundo ao seu redor.

Neste sentido, quando se oferece aos alunos as condições de perceber o ambiente a sua volta, e os levam a discutir os conteúdos químicos abordados na sala de aula relacionando-os com aquilo que necessariamente faz parte de suas atividades diárias, os alunos terão melhores condições de se expressar o que irá permitir a interação professor-aluno.

A partir da interação entre o professor e os alunos e entre aluno-aluno, é que o ensino das Ciências propiciará a aprendizagem, pois, se nas ações em sala de aula não se observar o retorno do aluno para com aquilo que os professores estão apresentando, ficará caracterizada a

mera transmissão de conteúdos, e assim o ato de ensinar e o aprender que devem estar interligados não se efetivarão como esperado.

Ao comentar sobre o desenvolvimento do processo de ensino numa escola indígena, enfatizando a preocupante situação acima abordada, como exemplo concreto para o não alcance dos objetivos da Educação Básica, em especial no que se refere ao ensino das Ciências Naturais na EEI, Lopes (2015) destaca alguns dados de sua pesquisa na comunidade escolar indígena, na qual aponta que,

Os conhecimentos das Ciências da Natureza são trabalhados seguindo a lógica das escolas não indígenas, determinada pela “lógica” do Livro Didático (LD): fragmentação nas disciplinas de Química, Física e Biologia. Em relação à carga horária, parece haver menos privilégio para as disciplinas da Área das Ciências Naturais, em particular para disciplina de Química, em comparação com outras áreas. (LOPES, 2015, p. 9).

Com base nestes dois pontos, compreendemos que não apenas a escolarização dos povos indígenas, mas de maneira geral os alunos das demais modalidades educacionais, esta de certa forma limitado em relação às contribuições que os conhecimentos científicos das Ciências Naturais possibilitam no desenvolvimento das atividades cotidianas dos mesmos.

Desta maneira, entendemos que o processo de Ensino de Ciências Naturais não atingiu o principal objetivo, que é aproximar os cidadãos do desenvolvimento da ciência e consequentemente, no que se refere à escolarização dos indivíduos, fazer com que os alunos frequentem os estabelecimentos escolares no intuito de aprimorar os seus conhecimentos prévios e estabelecer uma relação de continuidade dos estudos.

Diante do exposto, ao buscar compreender/analisar a EEI e o ensino de Ciências Naturais contrastando a realidade de duas escolas desta modalidade educacional, pode-se observar que apesar dos avanços que a legislação proporcionou, ainda constatam-se situações vistas por pesquisadores da área em todo o sistema educacional brasileiro, em que,

De modo geral, a ciência ainda é percebida pelos sujeitos como algo distante, aparentemente sem qualquer influência direta sobre sua realidade vivencial. As dificuldades de compreensão das complexas relações existentes entre as teorias científicas e técnicas, ciência pura e aplicada e teoria e prática leva-os a perceberem as ciências apenas pelos resultados de suas aplicações, favorecendo o surgimento do cientificismo, da fusão ciência/técnica e do mito da neutralidade científica (NASCIMENTO, FERNANDES e MENDONÇA, 2010, p. 240).

Portanto, a realidade observada no contexto educacional brasileiro, analisada a partir de casos específicos como a temática deste capítulo, mas, que englobam pontos extremos do sistema de ensino do país, considerando que focamos em escolas situadas em regiões

diferentes do país, nos mostra o quanto se faz necessário os programas de avaliação do processo de ensino e aprendizagem, a fim de que sejam implantadas as políticas públicas que efetivamente aprimorem o processo.

Sobre o ensino das Ciências Naturais, independente da modalidade educacional, tal análise nos permitiu observar que a ausência de recursos didáticos ou mesmo a utilização de recursos inadequados a um determinado público, ao invés de atrair os alunos pode afastá-los definitivamente da escola. Percebemos ainda, que o ensino de Ciências Naturais nas duas localidades não contemplam as diretrizes estabelecidas pela legislação, pois, o uso, por exemplo, de material didático de química igual aos das demais instituições contribuem para tornar a modalidade de EEI igual ao ensino efetivado nas demais comunidades não indígenas.

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