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O entrecruzamento entre a Lingüística e a Psicanálise

4. O SUJEITO

4.2. O entrecruzamento entre a Lingüística e a Psicanálise

A palavra está, fundamentalmente, alienada ao

outro como a imagem ao espelho, porque aquilo que procuro na palavra é a resposta do outro que irá me constituir como sujeito:a minha pergunta fundamental ao outro diz respeito a onde, como e quando começarei a existir na sua resposta. Aparecem, aqui, duas funções da palavra intimamente ligadas: a mediação para o outro e a revelação do sujeito.

Roland Barthes e Eric Marty

O entrecruzamento entre a Lingüística e a Psicanálise se dá no momento em que aquela transcende o imanentismo, que excluía da língua aspectos a ela fundamentais, como o sujeito, o interlocutor e a cena enunciativa, concebendo-a como fechada sobre si mesma. Para que possamos nos situar, cabe lembrar que, embora toda a teoria pós-imanentista procure dar conta do papel do sujeito, ela está dividida em duas vertentes: uma que considera o sujeito-origem, fonte da linguagem, e outra que o vê enquanto sujeito-efeito. É nesta segunda que se coloca a psicanálise, justamente por distanciar-se do sujeito homogêneo e soberano proposto pela primeira. Nas palavras de Authier-Revuz (1998 a), “Passar da consideração da língua, concebida como ‘ordem própria’, sistema finito de unidades e de regras (...) à consideração da fala, do discurso, é abandonar o domínio homogêneo, fechado, onde a descrição é da ordem do repetível, do ‘UM’ por um campo duplamente marcado pelo ‘NÃO-UM’, pela heterogeneidade teórica que o atravessa...”

Assim, não há como aderir a uma concepção sem abandonar a outra, uma vez que, na primeira vertente, considera-se a ilusão do sujeito em relação à transparência discursiva e, na segunda, sendo “o sujeito tomado como efeito, sujeito produzido pela linguagem, tomado numa divisão constitutiva, o estatuto dos fatos observáveis só pode ser outro, pois a possibilidade de transparência é aí imaginária” (TEIXEIRA, 2005, p.68).

Authier-Revuz (1998a) deixa bastante claro que esse entrecruzamento não resulta da necessidade de se complementar a Lingüística e a Psicanálise ou de suprir carências conceituais das mesmas. A recorrência a um saber exterior à Lingüística

constitui uma aproximação conceptual, um reconhecimento da heterogeneidade teórica de alguns de seus mais importantes conceitos – a exemplo do sujeito, do discurso e da enunciação –, o que não constitui, nem de longe, um estudo interdisciplinar, posto que a interdisciplinaridade tem o caráter complementar em que uma ciência, por não ter condições de esgotar, sozinha, um determinado objeto de estudo, busca outras ciências. Em outros termos, essa recorrência não é feita para se esgotar um objeto que seja exterior nem à Lingüística nem à Psicanálise, mas para tratar de conceitos que lhes são internos e comuns.

Acrescente-se que, embora tenha buscado, também, outras áreas do conhecimento, como a Filosofia, a Matemática e Antropologia Cultural, Lacan não via nelas a fonte dos fundamentos teórico-epistemológicos da psicanálise, visto ser essa uma questão que lhe é interior. Essa busca representou uma transposição à biologia e à psicologia, ciências que delimitavam o campo da psicanálise e marcou a necessidade de “retificar a prática psicanalítica, que havia adquirido uma função ortopédica” (TEIXEIRA, 2005, p. 71). Lançou-se, assim, com vistas a um reajuste

interno e por meio de um retorno às origens, um outro olhar sobre a teoria, um olhar

que não se limitava, como já apontamos, a campos afins, mas lhes era transcendente.

Isso exigiu um discurso epistemológico e fez com que a psicanálise, “traçando um novo roteiro para a ciência e a relação entre ambas” (TEIXEIRA, 2005, p. 71), conquistasse um outro espaço e pudesse ser vista com outros olhos no campo científico, que não aquele marcado pela habitual hostilidade.

O inconsciente sempre foi deixado de lado pela ciência, graças à sua natureza heterogênea e constitutivamente marcada pela censura, o que desfaz quaisquer possibilidades de segurança e de certeza, tão primados por esta. Daí porque a crença na existência de um sujeito previsível na sua completude e identificável por sua homogeneidade trouxera segurança, plausividade à ciência lingüística, que, durante tanto tempo, excluiu do seu objeto questões a ele fundamentais. Assim, o princípio da divisão do sujeito impossibilita o completo domínio de um campo dos estudos lingüísticos.

A Psicanálise, por seu turno, não possui o status de ciência, justamente por ter como objeto algo que, longe de ser controlável, é marcado por incertezas e impossibilidades, o que lhe possibilita, no campo científico, “desfazer as certezas, romper as ilusões de ancoragem segura, pois nesse UM que fantasticamente se constrói, um real vai emergir, exigindo um esforço incessante de recriação” (TEIXEIRA, 2005, p. 72).

O reconhecimento da não unicidade do “eu” tanto por Bakhtin quanto por Lacan trouxe uma outra perspectiva para o tratamento do sujeito e da linguagem e, conseqüentemente, valorosas contribuições para a Lingüística. Em Bakhtin, o conceito de “outro” está diretamente relacionado ao dialogismo e à sua concepção de linguagem. Brait (2001) aponta a obra Marxismo e Filosofia da Linguagem como o primeiro indicativo do que era, para o autor, esse “outro”, seja no momento em que ele afirma que o sujeito, ou seja, “a consciência individual”, absorve o que ele

denomina de “índices sociais de valor” do que lhe é externo para, depois, transformar em “índices individuais” – e é aí, também, que o outro integra o sujeito -24, seja quando vê a questão sob a ótica da materialidade lingüística, ao tratar das formas do discurso citado enquanto formas mostradas de heterogeneidade e da recepção da enunciação de outrem. Acrescente-se a essa obra o livro Problemas da Poética de

Dostoievski, conforme também já tratado neste estudo, em que a concepção que o

autor construiu do outro, da polifonia e da incompletude do sujeito ganha grande expressividade; o livro “Questões de Literatura e de Estética: a Teoria do Romance”, bem como “A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento”.

O “outro” lacaniano, por sua vez, traz, em sua constituição, como não poderia deixar de ser, concepções distintas das bakhtinianas e designa “... um lugar simbólico – o significante, a lei, a linguagem, o inconsciente ou, ainda, Deus – que determina o sujeito, ora de maneira externa a ele, ora de maneira intra-subjetiva em sua relação com o desejo” (ROUDINESCO e PLON apud BRAIT, 2001, p.15). Relacionando o conceito de outro ao inconsciente, Lacan buscou estabelecer a distinção entre as concepções freudianas e psicológicas e é nesse ponto em que se situam as diferenças sobre a alteridade entre ele e Bakhtin, visto que este não trata a questão sob nenhuma das duas perspectivas.

Sempre sem perdermos de vista as nossas limitações teóricas no terreno lacaniano e os nossos objetivos iniciais – que têm em Bakhtin a principal ancoragem -, teçamos algumas considerações sobre a sua concepção de alteridade. O conceito de “Estádio

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do Espelho” por ele formulado em 1936 traduz três etapas da construção da representação que a criança tem de sua própria imagem e da imagem do outro. Tais etapas antecedem o momento em que ela não percebe o seu corpo enquanto um todo uno, mas disperso. É a dialética do espelho quem vai proporcionar a percepção do não esfacelamento corpóreo:

Esta experiência fantasmática do corpo esfacelado, cujos vestígios nos aparecem tanto na configuração de alguns sonhos, como nos processos de destruição psicótica, é realizada na dialética do espelho, cuja função é neutralizar a dispersão angustiante do corpo próprio. (DOR,1989, p.49)

A partir dessa percepção da totalidade do seu corpo, a criança, em um primeiro

momento da fase do espelho, vê o reflexo de sua própria imagem como se fosse o

reflexo de uma outra pessoa, da qual ela tenta se aproximar, o que traduz uma confusão do que é “eu” e o “outro”, a partir de quem ela se orienta no início, e que acontece entre os seis primeiros meses de idade e os dois anos e meio. É no

segundo momento da fase do espelho que a criança vai perceber que o reflexo é seu

e não de outrem. Esta “constitui uma fase decisiva no processo identificatório” (op. cit:80). No terceiro momento, estando convicta de que a imagem no espelho é sua e reconhecendo-se nela, a criança vivencia uma relação entre os dois momentos anteriores: ela experimenta a dispersão em sua totalidade corpórea “Reconhecendo- se através desta imagem, a criança recupera assim a dispersão do corpo esfacelado numa totalidade unificada, que é a representação do próprio corpo” (op. cit.:80).

É através da imagem do corpo, pois, que a identidade é, para Lacan, construída e estruturada, ela é a identificação primeira do eu, a partir da qual, dado o estágio de

sua maturação, essa percepção gira em torno do imaginário, longe da especificidade do seu corpo.

Embora as distinções sejam inevitáveis, haja vista serem diferentes as raízes teóricas dos dois autores, o ponto de interseção acontece justamente no momento em que ambos consideram que a alteridade integra o sujeito, que ele está, de uma forma ou de outra, inundado, repleto dela, o que é decisivo na maneira como um e outro compreendem a linguagem.