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Os tempos dos enunciados explicitamente modalizados

3. A MODALIDADE

3.1. Os tempos dos enunciados explicitamente modalizados

O tempo dos enunciados é de fundamental importância na distinção epistêmico, não- epistêmico. Assim, de forma geral, pode-se “conferir aos enunciados relativos a eventos passados uma interpretação preferencialmente epistêmica, e, aos enunciados relativos a eventos futuros, uma interpretação preferencialmente de raiz, embora a interpretação epistêmica não fique excluída” (NEVES, 2000a, p.3). De fato, não se pode conferir, por exemplo, obrigatoriedade a alguém para fazer algo no passado, de forma que a modalidade de raiz está mais direcionada para enunciados que indiquem futuridade, embora os epistêmicos possam ocorrer. Vejamos os seguintes exemplos:

(15) Como o par conflito-regra não tinha aplicação limitada ao domínio da sociologia, ele pôde ser transferido ou objetivado para o do urbanismo pelo par lugar-plano, ou seja, o conflito foi remetido ao lugar e a regra ao plano, de modo a estabelecer o diálogo entre esses dois campos do conhecimento. (TDA) (Grifo nosso)

(16) É fundamental que as estações situem-se em espaços que apresentem alto nível de acessibilidade espacial (...). Assim, esses equipamentos poderão usufruir do potencial da malha viária, ao mesmo tempo em que podem contribuir para incrementar o desenvolvimento das áreas no entorno desses equipamentos. (DMA) (Grifo nosso)

No exemplo (16), o verbo poder tem significado de raiz (capacidade ou habilidade), pois é pessoal, ou seja, ele relaciona-se diretamente ao sujeito modal “equipamentos” – Note-se, também, a importância da oração anterior “É fundamental

que as estações situem-se em espaços que apresentem alto nível de acessibilidade espacial” nessa classificação, pois é o nível de acessibilidade das estações que

tivéssemos tido acesso a apenas à segunda oração: “Assim, esses equipamentos poderão usufruir do potencial da malha viária”, a possibilidade epistêmica poderia ser considerada na análise, pois na classificação de períodos que indicam futuridade, embora haja uma tendência para interpretação de raiz, a epistêmica também pode ocorrer:

(17) A Estação Recife corresponde à antiga Estação Central, terminal da Linha Centro. De acordo com o projeto de eletrificação da Linha Sul, deverá ser aberta uma nova via paralela à Estação e à Rua Floriano Peixoto. (DMA) (Grifo nosso)

Note-se uso do verbo dever numa clara indicação de possibilidade.

No (15), o verbo é epistêmico (possibilidade), ou seja, o que possibilitou a transferência ou a objetivação do par conflito-regra para o domínio do urbanismo pelo par lugar-plano foi o fato de ele não ter aplicação limitada ao domínio da sociologia. A sua leitura como deôntico não se justifica uma vez que, como foi dito, a um evento passado não se podem atribuir significados deônticos. No caso, o verbo poder não indica permissão, como acontece em:

(18) A implantação deste projeto se dará em uma colina no topo da qual foi instalada (...) uma caixa d’água de grande porte (...) sede de encontros de marginais, que oferecem grandes riscos aos incautos visitantes do Horto, o que nos dá mais um forte motivo para intervir no mesmo, uma vez que sua vegetação nativa já foi devastada e ainda não pôde se recompor. (MGA) (Grifo nosso)

que não admite uma leitura do tipo ainda não se permitiu à vegetação nativa

devastada recompor-se, mas: a vegetação nativa ainda não teve a possibilidade de se recompor.

A distinção entre modalidade epistêmica e de raiz também pode ser indicada pela pessoa gramatical do verbo. Segundo Neves (2000a), os períodos tendem mais para a interpretação deôntica quando estão na primeira pessoa e a modalidade epistêmica se relaciona mais com a terceira pessoa:

(19) Tal projeto se enquadra na designação de Montaner (..) como um museu destinado às ciências naturais; no entanto, devo ressaltar uma ligeira variação do mesmo, ao aproximá-lo também aos espaços destinados ao conhecimento humano... (MGA)

(20) Um museu de história natural deve procurar ser o mais completo possível em termos de acervo... (MGA)

Em (19), o verbo tende para a obrigatoriedade e, em (20), para necessidade epistêmica.

O estudo da polissemia de enunciados explicitamente modalizados merece uma atenção especial, principalmente quando se tem em vista descortinar as intenções do sujeito enunciador e a compreensão do que podemos denominar “jogo subjetivo” da linguagem. Sim, se ela é, por excelência, veículo de expressão do “eu” dos locutores (seja na forma oral ou escrita, sejam estas formais ou informais), o mascaramento da origem enunciativa tem uma razão de ser e a exploração do valor polissêmico das formas, através da opção por um significado em detrimento de outro, constitui, certamente, um interessante recurso desse jogo. No caso do texto científico, o significado epistêmico é mais usual, pois, na análise dos dados de uma pesquisa, o uso de formas que indicam de obrigatoriedade, por exemplo, denota falta de maturidade do pesquisador, que precisa “deixar a porta aberta” à continuidade de

sua pesquisa, à confirmação ou à contestação dos seus resultados, não podendo, por isso, ser muito asseverativo.

Essas questões exigem uma análise criteriosa dos dados e o conhecimento dos vários significados que um modalizador pode adquirir em diferentes situações é condição sine qua non para a compreensão do fenômeno.

No próximo capítulo, nossa atenção se volta para a compreensão do papel desse sujeito no espaço discursivo, que ele integra juntamente com o outro. Embora tenhamos consciência de que não é apenas por meio dos aspectos lingüísticos que o dialogismo se faz presente, ou seja, ele transcende o escopo das análises que se restringem à palavra, consideramos ser importantes as considerações até aqui tecidas sobre os modalizadores, visto ser a palavra quem materializa a concepção que o sujeito constrói do eu e do não-eu, a quem seu discurso se direciona.

Tratar do sujeito, dos vários papéis por ele assumidos no discurso e da presença dos ‘outros’ implica, enfim, um olhar sobre a subjetividade que rompe com a concepção que coloca o eu em uma posição de transcendência sobre o tu e com aquela que acredita na tirania do outro (veja-se, no próximo capítulo, a primeira fase da Análise do Discurso – seção 4.1). Implica, sobretudo, em falar do que os autores da terceira fase da Análise do Discurso (doravante AD), conforme veremos no capítulo 4, a seguir, denominam de ‘coexistência’, de ‘incompletude’. Para tanto, é necessário que façamos um breve relato da concepção do sujeito em três distintos momentos da AD,

segundo a classificação de Pêcheux, em seu artigo “A análise de discurso: três épocas”.