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4. O SUJEITO

4.5. A morte declarada do autor em Foucault

4.5.1. Sobre os discursos fundadores

Ainda que concordemos com a conhecida afirmação de Bakhtin de que apenas o Adão mítico, ao “fundar” o mundo com sua primeira palavra, escapara da orientação dialógica do discurso, é preciso reconhecermos que há, no decorrer da história da humanidade, a produção de discursos que inspiram centenas de outros (tenham estes últimos o papel de refutar ou de ratificar aqueles). Assim, todas as ciências têm seus “pais” e também teóricos que dividem as suas histórias em períodos que antecedem os seus discursos e os que os sucedem. Estes são, por Foulcault, nomeados de “fundadores da discursividade”. A sua função de autores vai além de suas obras:

Estes autores têm isto de particular: não são apenas os autores das suas obras, dos seus livros. Produziram alguma coisa mais: a possibilidade e a regra de formação de outros textos. (...) eles estabeleceram uma possibilidade indefinida de discursos. (FOUCAULT, 1992, p. 58)

Isso se dá, entretanto, de forma diferente nos romances. Quando Bakhtin, por exemplo, afirmou, em sua obra Problemas da Poética de Dostoiévski que esse autor rompeu, no século XIX, com a tradição monofônica característica do romance

europeu de então, ele identificou categorias dialógicas nas relações entre o autor e o herói que eram recorrentes em suas obras, o que constituía algo inovador. No romance, em outros termos, é o estabelecimento de determinadas estruturas que, ao serem fundadas por um autor, inauguram um gênero e podem ser utilizadas (e até perpetuadas) por outros autores. Por outro lado, quando Bakhtin, já na década de vinte – momento no qual os estudiosos da linguagem limitavam suas análises à frase -, tratava não somente do enunciado, mas também da enunciação e da interação entre os sujeitos, ele, atuando enquanto “instaurador da discursividade”, abriu a possibilidade para a existência de uma infinidade de discursos outros que, seguindo o seu, não se limitam à lingüística stricto sensu. No segmento abaixo, que é um trecho da tese de doutorado em Arquitetura, a autora (ainda que aborde questões totalmente distintas da problemática da autoria), aponta as instâncias que fundaram os discursos os quais ela (e o teórico que embasa o seu texto) retoma em sua própria produção, fazendo a distinção entre o discurso fundador e o discurso modificado, esse último representado por Habermas e pelas vanguardas artísticas e literárias, como se verá a seguir:

(37) Habermas (1990) apresenta duas linhas de argumentação para a modernidade: a primeira, como conceito epocal, significando “novos tempos” e “tempos modernos”, tendo por referência textos de Hegel e as expressões “moderno” e “modernização” ficam como conceitos subjacentes. A segunda,

como significado estético, a partir da compreensão do modernismo elaborado pelas vanguardas artísticas e literárias.

(Grifo nosso)

Foucault traz Freud e seus estudos para ilustrar essa questão: “Dizer que Freud fundou a Psicanálise (...) quer dizer que ele tornou possível um certo número de

diferenças relativamente aos seus textos, aos seus conceitos, às suas hipóteses que relevam o próprio discurso da Psicanálise”. (op. cit., p. 60)

Foucault estabelece, nesse ínterim, a diferença entre instauração da discursividade o que denomina de fundação de cientificidade – muito embora ele próprio reconheça que nem sempre é fácil estabelecer tal distinção e que essas duas instâncias não são incompatíveis. No segundo caso, o ato que funciona como ponto de partida para a existência de uma determinada ciência estará, ainda que assumindo diferentes formas, presente nas transformações sofridas por ela. No primeiro caso, as obras dos autores não são o ponto de partida das ciências, mas há uma relação de heterogeneidade entre o ato de instauração da discursividade e as transformações que lhe sucedem, que nada mais são do que possibilidades de aplicação daquele:

(...) diferentemente da fundação de uma ciência, a instauração da discursividade não faz parte das transformações ulteriores (...) a obra destes instauradores não se situa em relação à ciência e no espaço que ela desenha; mas é a ciência ou a discursividade que se relaciona com a obra deles e a toma como primeira coordenada. (op. cit., p. 62-63)

Assim, se nos momentos posteriores à fundação de uma cientificidade acontecem redescobertas dos fundamentos de uma ciência, os eventos que sucedem a instauração da discursividade constituem retornos às origens. É o que faz um pesquisador, ao desenvolver a sua tese, por exemplo: para que os seus estudos sejam considerados relevantes e ele traga, com os mesmos, alguma contribuição para a área a qual pertence, precisa dominar as teorias que alicerçam essa ciência, o que somente é possível por meio do referido retorno às origens; um retorno que

possibilite, nas palavras de Foucault, a transformação da discursividade. A autora do segmento abaixo, ao inteirar, na apresentação da sua tese, seus leitores sobre o percurso por ela trilhado, deixa explícita a necessidade não só do retorno às origens, mas de dar uma nova feição aos discursos que a embasam, transformando-os, conseqüentemente:

(38) É preciso esclarecer que tal forma de apresentação deve-se ao fato, já mencionado, de as nossas pressuposições epistemológicas serem um tanto, por assim dizer, frouxas, o que tem-nos levado a utilizar explicações, uma

ou outra vez, levantadas por diferentes linhas teóricas, quando isto tem-

nos parecido necessário e, outras vezes, a ousarmos inventar nossas próprias explicações. (TDL) (Grifo nosso)

A pesquisadora, que afirma ter necessitado recorrer a linhas teóricas distintas em seu estudo, efetuou o retorno que é inerente aos discursos fundadores e, também, os modificou, assim como o fizeram (e o farão) os pesquisadores outros que se debruçaram sobre o mesmo objeto. Pressupõe-se, pois, que, em uma pesquisa, todo retorno há que preceder a necessária modificação acima referida, para que não aconteça, pura e simplesmente, a repetição improdutiva do discurso.

4.6 O SUJEITO-AUTOR

O Ferrageiro de Carmona (...)

Conhece a Giralda em Sevilha? Dou-lhe aqui humilde receita De certo subiu lá em cima. ao senhor que dizem ser poeta:

Reparou na flores de ferro o ferro não deve

fundir-se

dos quatro jarros das esquinas? nem a voz ter diarréia. Pois aquilo é ferro forjado. Forjar: domar o ferro à força

Flores criadas numa outra língua. não até uma flor já sabida,

Nada têm de flores de fôrma mas ao que se pode até ser flor

moldadas pelas campinas. se flor parece a quem o diga.

João Cabral de Melo Neto.