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2.4. O diálogo em Mikhail Bakhtin

2.4.1. O enunciado

Os diferentes campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem, que é tão diversa quanto são esses campos. O uso da língua se dá por meio de enunciados orais e escritos que são elaborados e proferidos pelos integrantes de um determinado campo (BAKHTIN, 2010, p. 261). Se tomarmos como referência a escola, podemos perceber uma série de enunciados que são partilhados por determinados grupos e segundo determinadas situações. Esses enunciados orais e escritos dependem também da área do conhecimento em que estão baseadas as situações. Se a área é Matemática, esses enunciados terão determinado estilo e, se for Geografia, terão outro. Se quem constrói o enunciado é o professor, existem determinadas características; se são estudantes, existem outras.

A reflexão em torno dos enunciados nos leva à questão da semiótica ou ao uso de signos e símbolos de significado sociocultural. A natureza da linguagem utilizada em determinada área do conhecimento pode ser determinante para a definição dos processos de comunicação. O que ocorre na Matemática, especialmente no campo da Álgebra, é que os signos e símbolos, muitas vezes, não fazem sentido para os sujeitos, que sequer conseguem

dialogar sobre os conteúdos matemáticos, como veremos, por exemplo, em algumas situações da pesquisa exploratória.

Os enunciados refletem as características, as finalidades, os conteúdos de um determinado campo, por isso, possuem um estilo próprio. Apesar de individuais, os enunciados carregam o estilo de uma determinada área que é eminentemente social. Para Bakhtin (2010, p. 262), cada campo adota “tipos relativamente estáveis de enunciados”, os quais são denominados “gêneros do discurso”.

Bakhtin e Volochínov (2009, p. 113, grifos dos autores) argumentam que a enunciação é, por excelência, um ato social e, portanto, cultural e, assim, pleno da relação de poder: “o ato de fala, ou, mais exatamente, seu produto, a enunciação, não pode de forma alguma ser considerado como individual no sentido estrito do termo, não pode ser explicado a partir das condições psicofisiológicas do sujeito falante. A enunciação é de natureza social.”

Assim, enunciar é exprimir, expressar, transmitir por meio de palavras, sentimentos, emoções, ideias, opiniões que, apesar de individuais, compõem um campo de significação que não é meramente individual, mas social. A enunciação pressupõe a existência do outro que escuta, que acolhe, que replica, que concorda, que discorda, que interage, enfim que dialoga com aquele que produz o enunciado.

Assim pensada, a enunciação e, portanto, os enunciados, na perspectiva de Bakhtin e Volochínov (2009, p. 133), são constituídos não apenas de “formas linguísticas que entram na composição (as palavras, as formas morfológicas ou sintáticas, os sons, as entoações), mas igualmente pelos elementos não verbais da situação.” Fazem parte de um todo que inclui significações individuais e sociais. É o próprio Bakhtin (2010) que adverte que a perda da situação compromete a compreensão da mesma forma que a perda da palavra. Assim, um enunciado só pode ser compreendido ou só adquire sentido dentro de uma situação e porque provém de alguém com destino a alguém, ou seja, está situado em determinado espaço sociocultural e em determinado tempo.

Na Matemática, a perda da situação se dá pelo tipo de “transposição didática” (CHEVALLARD, BOSH e GASCÓN, 2001, p. 136) que se faz dos objetos matemáticos. Nós sabemos que a matemática escolar se diferencia, em muitos aspectos, da “obra matemática original”. Isso se deriva do fato de que o saber matemático passa por transformações e/ou reconstruções para torná-lo passível de ser ensinado e aprendido na escola. Nesse processo, o papel do professor de Matemática é oposto ao papel do matemático; enquanto este último trata de um saber despersonalizado e descontextualizado, o primeiro deve resgatar a situação que gera, na sua gênese, o conhecimento.

Os enunciados matemáticos dependem, portanto, das situações que, por sua vez, dependem da transposição didática. Quando a transposição didática não se compromete com a Matemática como construto humano e com a possibilidade de o estudante fazer matemática a partir de conhecimentos “contextualizados em situações próximas” (PAIS, 2001, p. 28), a interação do professor com os estudantes, dos estudantes entre si e destes com a Matemática é marcada pela ausência de significados partilhados.

A enunciação é, portanto, o produto da interação de sujeitos que dividem um mesmo espaço sociocultural, partilham uma dada situação e sentidos subjetivos (GONZÁLEZ REY, 2003). De acordo com Bakhtin e Volochínov (2009, p. 117, grifos dos autores):

Toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia- se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor.

Quando escolho as palavras que vão compor o meu discurso não o faço aleatoriamente. Escolho as palavras que tenham significado para mim, mas que penso que estejam ao alcance do outro que me ouve. Nesse processo, não estou escolhendo apenas signos abstratos de uma língua, mas palavras que são socialmente significativas em meu meio social e que são adequadas para aquela situação em particular. Estou construindo enunciados.

Mas não podemos deixar de considerar que o que está ao alcance do outro, do meu ponto de vista, é sempre uma hipótese que traduz o que imagino ser o conhecimento teórico e prático-real que o outro possui. Quando enuncio uma ideia para o outro, parto dessa hipótese, que pode estar próxima ou distante do que o outro realmente sabe e do que o outro é. Isso tem uma implicação pedagógica importante do ponto de vista das interações, pois o diálogo pode contribuir para a eficácia da hipótese, enquanto processo de permanente reconstrução, na medida em que, por meio das enunciações do outro, posso ter pistas dos seus pensamentos.

A relação pedagógica é marcada pelas hipóteses que o professor tem acerca do conhecimento do aluno. Quando constrói seus enunciados, o professor parte dessas hipóteses, construindo expectativas sobre o fazer do aluno que podem tanto limitar quanto possibilitar a ação/reflexão do aluno sobre os objetos do conhecimento.

Bakhtin e Volochínov (2009, p. 127) defendem que a língua não é um sistema abstrato de formas linguísticas, de signos e também não é apenas o ato de fala individual monológico. A língua é constituída pelo fenômeno da interação verbal, por meio do que eles denominam de enunciações. Assim “a interação constitui a realidade fundamental da língua.”

Segundo Bakhtin (2010, p. 275 e 296), “por sua precisão e simplicidade, o diálogo é a forma clássica de comunicação discursiva” e “todo enunciado é um elo da comunicação discursiva de um determinado campo.” Assim, os sujeitos que participam do diálogo e constroem seus enunciados participam de um jogo de significação que pressupõe intenções, reciprocidade, escolha de meios linguísticos, estilos e antecipações que vão caracterizar o gênero do discurso e que permitirão a compreensão do conteúdo desses discursos.

Mas o outro que se coloca na posição de ouvinte não é passivo, pois ele pode atribuir significado que nem sempre é o mesmo do emissor e, assim, há no diálogo a “alternância dos sujeitos do discurso”. O sujeito que fala passa a palavra ao sujeito que ouve, dando lugar à “compreensão ativamente responsiva” deste, que constrói réplicas a partir dessa compreensão (BAKHTIN, 2010, p. 275). Desse ponto de vista, podemos definir o diálogo como essa alternância entre enunciados.

Bakhtin (2010, p. 275) adverte que as relações dialógicas de “pergunta-resposta, afirmação-objeção, afirmação-concordância, proposta-aceitação, ordem-execução etc – são impossíveis entre unidades da língua (palavras e orações) [...] Essas relações só são possíveis entre enunciações.” E essas enunciações pressupõem a existência de diferentes sujeitos do discurso que são membros da comunicação discursiva. Pressupõe que existem outros em relação ao falante. Desta forma, são os enunciados, e não as palavras e orações, a unidade da comunicação discursiva.

Para Bakhtin (2010, p. 292), as palavras e as orações em si não pertencem a ninguém e não carregam significados ou juízos de valor a priori. São os enunciados ou as enunciações no interior do diálogo que possuem essa capacidade. “Portanto, a emoção, o juízo de valor, a expressão são estranhos à palavra da língua e surgem unicamente no processo de seu emprego vivo em um enunciado concreto.”

Essa concepção nos remete ao dialogismo como princípio fundante da língua. Para Bakhtin e Volochínov (2009, p. 127),

O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo” num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja.

Esse conceito ampliado de diálogo possibilita considerar que nos espaços sociais há diferentes tipos de diálogo, que nessa perspectiva pode acontecer entre duas ou mais pessoas, entre uma pessoa e um texto qualquer e até entre dois ou mais textos. No caso da aula de Matemática, o diálogo acontece entre o professor e os estudantes, entre os estudantes, entre ambos e os objetos matemáticos e até mesmo entre o estudante e ele mesmo.

A pesquisa em sala de aula torna tal realidade ainda mais complexa, quando insere o diálogo do pesquisador com todos esses sujeitos e com os objetos matemáticos.

Assim percebido, o diálogo compõe uma comunicação verbal e não verbal que se vincula a diferentes situações, textos e contextos, em uma rede tecida por formas complexas e carregadas de sentidos subjetivos (GONZÁLEZ REY, 2003).

É importante destacar também que, para Bakhtin (2010), o sujeito que fala não é o primeiro a falar, não inaugura o enunciado, pois este como elo da comunicação discursiva faz parte de um campo de significação social em que as intenções, os estilos, os conteúdos são partilhados. As palavras e orações são “repetíveis”, mas os enunciados são “irrepetíveis”. Quando escolhemos palavras e orações para os nossos enunciados, nós as tiramos de um repertório que é social e não de um sistema abstrato de formas linguísticas. Nossos enunciados, contraditoriamente, se reportam ao contexto sociocultural, ao campo a que se referem e, principalmente, aos enunciados de outros.

A experiência discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interação constante e contínua com os enunciados individuais dos outros. Em certo sentido, essa experiência pode ser caracterizada como processo de assimilação – mais ou menos criador – das palavras do outro (e não das palavras da língua). Nosso discurso, isto é, todos os nossos enunciados (inclusive as obras criadas) é pleno de palavras de outros, de um grau vário de alteridade e de assimilabilidade, de um grau vário de aperceptibilidade e de relevância. Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos, reelaboramos, e reacentuamos (BAKHTIN, 2010, p. 294, grifos do autor).

O outro é sempre alguém que eu assimilei, que entrou em meu discurso oral ou escrito. Nesse sentido, minha voz está repleta de outras vozes, meus enunciados são constituídos por outros enunciados. Ao construir meus enunciados, vou me constituindo como sujeito. Desta forma, o dialogismo é princípio de constituição do sujeito e seu princípio de ação (FIORIN, 2008, P. 55).

Em sala de aula, a fala do estudante está repleta da fala do professor, de colegas, de outros professores e dos livros que leu até aí. Do mesmo modo, a fala do professor está repleta das vozes de seus colegas, dos seus ex-professores, dos livros que leu ao longo da vida, dos livros didáticos.

Para Ponzio7, o outro, quer eu goste ou não, vai entrar em diálogo comigo. E, desta

forma, o diálogo não é uma concessão, o diálogo é inevitável. Em seu livro, esse autor reafirma: “o diálogo não é uma concessão, um convite do eu, mas uma necessidade, uma imposição, em um mundo que já pertence a outros” (PONZIO, 2009, p. 23).

Como o diálogo é inevitável e não é uma concessão, não podemos pensar em criar o diálogo na atividade matemática, pois ele já existe. O que podemos pensar é em criar situações que favoreçam a emergência dos diálogos, a fim de colocá-los a serviço da aprendizagem. Ou seja, podemos potencializá-los, no sentido de favorecer a aprendizagem matemática em contextos de produções mais solidárias.