• Nenhum resultado encontrado

Estava animada com o momento: falar de leitura. Sentia que as palavras fluíam com naturalidade, minha autoconfiança não cabia em mim. “Essa atividade que você propõe para que seja desenvolvida com nossos alunos é impossível!” Parei, senti o peso de uma âncora contraindo meu corpo. A coordenadora continuou: “Isso é aula para se dar nas universidades”. Afundei-me lentamente na cadeira, parecendo que estava diminuindo, sentindo-me confusa. Então ela terminou: “E não para os nossos alunos”. O meu eu, retorcido, partia-se ao meio, incendiando-me, quando ela insistiu: “Eles não conseguem fazer isso”. Uma sensação de im- potência substituiu o dever pela impossibilidade. Eu me tornava demais para mim mesma, e a ilusão de ser inteira abandonou-me.

Para continuar essa história é preciso fechar os olhos. Habito o vazio que se abre e a mesma cena se refaz. E, mais uma vez: “Essa atividade que você propõe para que seja desen- volvida com nossos alunos é impossível!”. Fixei meu olhar, demonstrando atenção, conven- cendo a coordenadora de que suas palavras expressavam uma reflexão profunda e incentivando- a a prosseguir: “Isso é aula para se dar nas universidades”. Sentei-me, procurando conforto, disfarçando o cansaço em segurar as palavras arremessadas em mim: “E não para os nossos alunos”. Calei-me, dirigindo meu olhar para o grupo. “Eles não conseguem fazer isso”.

Partida, estilhaçada, habitava agora em muitas, cada qual caminhando com suas próprias pernas, em caminhos distintos, sem avisos nem indicações. Apenas com o sentimento de que não haveria mais retorno para nenhuma de nós. Conectadas por um vazio, tecíamos os nós que nos mantinham suspensas. Pelo toque, compartilhávamos o segredo. Enquanto experi- mentávamos, farejávamos o impensável, escavando a vida latente:

Se quiserem acreditar, ótimo. Agora contarei como é feita Otávia, ci- dade-teia-de-aranha. Existe um precipício no meio de duas montanhas escarpadas: a cidade fica no vazio, ligada aos dois cumes por fios e cor- rentes e passarelas. [...] Essa é a base da cidade: uma rede que serve de passagem e sustentáculo. Todo o resto, em vez de se elevar, está pen- durado para baixo: escadas de corda, redes, casas em forma de saco, varais, terraços com a forma de navetas, odres de água, bicos de gás, assadeiras, cestos pendurados com barbantes, monta-cargas, chuveiros, trapézios e anéis para jogos, teleféricos, lampadários, vasos com plantas de folhagem pendente. Suspensa sobre o abismo, a vida dos habitantes

de Otávia é menos incerta que a de outras cidades. Sabem que a rede não resistirá mais que isso (CALVINO, 2004, p. 74).

Entre aquelas palavras e o estranhamento, entre mim e o outro, entre mim e as co- ordenadoras, algo acontecia. Eu não sabia existir sem mim. Sentia naquele momento o pensa- mento que vinha de fora, deslocando-me do lugar. Um estado de solidão, ecos repetidos pro- blematizando-me. Um corpo ocupando dimensões, fragmentos de cenas tentando se tornar algo. Impossível. Isso seria desastroso. Retiraria a poética do acontecimento:

Todo acontecimento é uma névoa. Se os infinitivos “morrer”, “amar”, “mover”, “sorrir” etc. são acontecimentos, é porque há neles uma parte que sua realização não basta para realizar, um devir em si mesmo que está sempre, a um só tempo, nos esperando e nos precedendo como uma terceira pessoa do infinitivo, uma quarta pessoa do singular. Sim, o morrer engendra-se em nossos corpos, produz-se em nossos corpos, mas chega de fora, singularmente incorporal, e fundindo-se sobre nós como a batalha que sobrevoa os combatentes e como o pássaro que so- brevoa a batalha (DELEUZE; PARNET, 2004, p. 78).

Lembro-me de que sentei, olhei para o grupo, pus-me a ouvi-lo: “Acho que não são os alunos que não sabem, mas nós mesmas”, “Nossa relação com a leitura também precisa ser modificada. Aprendi a ler de um jeito diferente, memorizando”, “Acho difícil ensinar os pro- fessores dessa forma”, “Como ensinar algo que não sei se saberia fazer?”. Recordo-me de que ficamos um tempo em silêncio. Silêncio era tudo o que eu desejava, era tudo o que podia haver, uma interrupção que fazia voltar a mim mesma o efeito do silêncio: um perguntar-se confuso, perplexo.

Ao me pôr em ato de denúncia, percebi que tirava a possibilidade de experimentar a vida, a minha vida, a vida de qualquer um. Esqueci o descompasso do aprender, como nos conta o mestre Vitalino: “Tirando do juízo, fazia o que via e o que nunca havia visto, [...] diziam que zebra era curta e com o pescoço alto, fazia um bicho rombudo, das pernas grossas... O povo dizia: – É um elefante – pois bem, ficava elefante” (MELLO, 1995, p. 29).

Emaranhada pelos discursos, ensimesmei, fiz da pergunta “uma estética implacável que acaba por transformar-se em uma ontologia do ser, que acaba por transformar em uma metafísica da identidade do outro, que acaba transformando-se, finalmente, em nada” (SKLIAR, 2003, p. 98). E o efeito é o abandono de si. Perde-se o rumo.

Para Skliar (2003, p. 99), a perda do mapa é a perda da cópia da espacialidade ha- bitual em que a mesmidade ocupa o centro e concentra na periferia o que supõe ser marginal, excluído, reduzindo sua existência por meio do controle, do castigo, do disciplinamento, dire- cionando a periferia a esforçar-se para estar no centro, espaço da perfeição.

Tudo o que me habituei a escrever foi o ignorar das coisas íntimas ou, nas palavras de Clarice Lispector (1973, p. 40), “antes do aparecimento do espelho a pessoa não conhecia o próprio rosto senão refletido nas águas de um lago. Depois de certo tempo cada um é responsá- vel pela cara que tem. Vou olhar a minha”.

Minha pergunta pelo “outro” apagou sua presença, calou as perguntas. Embrenhei- me em discursos pedagogizantes para afirmar que, se o aluno não possuía oportunidade de aprender o mundo letrado, a escola devia oferecer-lhe isso; se o aluno não aprendia, era porque o professor não criara um sentido para a sua aprendizagem. A autoconfiança começava a des- moronar. Isso aconteceu porque existe muito mais no como se diz do que no que se diz.

Talvez tenha sido por isso que me sentei. Sentia o cansaço desses discursos, que agora me pareciam pesados demais para reproduzir. Ao considerar que a escola é capaz, por si só, de superar as desigualdades, transformei problemas sociais, econômicos e culturais em sub- jetividades de professores e de coordenadores e assumi o lugar de redentora, trazendo solu- ções/limitações que violentavam ainda mais esse universo, pois eram dirigidas a um não sujeito. Foi essa a sensação que tive quando a coordenadora me provocou com suas palavras. As per- guntas multiplicavam-se: “Com quem estou conversando? Será isso um monólogo? Como faço a partir de agora? Será que o aluno a quem me dirijo é o mesmo ao qual ela se dirige? Será que os alunos do Acre são os mesmos a que nos dirigimos nessa formação? Ou eles estão em outro lugar? Será que essa escrita pode me socorrer?”.

Por isso me silenciei. Olhei para o grupo como se fosse a primeira vez. Tantas in- quietações inauguraram outros trajetos, já que deslocar-se exige certa leveza:

Um rabino, um verdadeiro cabalista, disse uma vez: para instaurar o reino da paz, não é necessário destruir tudo e dar início a um mundo completamente novo; basta deslocar só um pouquinho essa taça ou esse arbusto ou aquela pedra, e do mesmo modo todas as coisas. Mas esse pouquinho é tão difícil de realizar e a sua medida tão difícil de encontrar que, no que diz respeito ao mundo, os homens não o conseguem e é necessário que chegue o Messias. Na parábola de Benjamin, a parábola soa assim: “Entre os classidim se conta uma estória sobre o mundo que vem, que diz: lá tudo será exatamente como é aqui. Como agora é o nosso quarto, assim será no mundo que vem; onde agora dorme o nosso

filho, lá dormirá também no outro mundo. E aquilo que vestimos neste mundo, o vestiremos também lá. Tudo será como é agora, só um pouco diferente” (AGAMBEN, 2013, p. 44).

O que é visível na expressão “só um pouco diferente” (AGAMBEN, 1993, p. 44) diz respeito aos sentidos e aos limites: “Não tem lugar nas coisas, mas na periferia delas, no espaço ao lado, entre cada coisa e si mesma” (AGAMBEN, 2013, p. 52). Lá onde tudo é perfeito se introduz “de outro modo” (AGAMBEN, 2013, p. 52). Por ora, isso intensifica o cansaço.

No livro “Em defesa da escola: uma questão pública”, Masschelein e Simons (2013) partem em defesa da escola e afirmam que nossa responsabilidade consiste no fato de ela poder ser reinventada. No entanto, os autores advertem que as diferentes formas pelas quais a escola vem sendo acusada – entre elas, a escola é uma ilha que não faz nada (e não pode fazer nada), mas aliena os jovens de si mesmos ou do seu entorno social; está a serviço do capital, e todo o resto é mito ou mentiras necessárias perpetuadas, antes e acima de tudo, a serviço do capital econômico; a escola facilita mecanismos sutis que reproduzem a desigualdade social; e ainda a escola é essencialmente conservadora, demonstra falta de eficácia e tem grandes dificuldades com relação à empregabilidade – dividem uma legião de seus seguidores, alguns solicitando seu desaparecimento, e outros, uma transformação radical.

Não sou contrária a essas críticas. Reproduzi muitas delas em meus discursos e ainda hoje as repetiria, porém, como na fábula, só um pouco diferente. Para além dos atos de acusação, deparar-se com a lógica subjacente a essas críticas à escola é deparar-se com a mes- midade, ou, nas palavras dos autores, quando a concebemos como bem econômico, o que se faz é “domar o potencial distinto e radical que é exclusivo do escolar em si mesmo” (MASSCHE- LEIN; SIMONS, 2013). É um ir e vir que é sempre a mesmice. Cria-se a ilusão de movimentos, de novidades; contudo, o que se faz é apenas um trabalho perverso consigo mesmo.

A certeza de que a formação é o centro das transformações permaneceu em mim como certeza inabalável. Com o tempo, vai se enquadrando, criando espacialidades, uma ob- sessão, conta Skliar (2003, p. 102), pela “falta de lugares, os não-lugares, a insistência em um aparente único espaço, a reunião ordenada daquilo que parece estar disperso, a negação de ou- tros espaços que não sejam os mesmos, que não sejam a sistemática expansão do mesmo”. Havia tanta necessidade de reformar, era quase uma obsessão. Nos registros, capturo o que deveríamos ensinar, retirando propositalmente as vírgulas:

Reconhecer-se também como responsável por garantir uma educação de qualidade às crianças dos anos iniciais mobilizar nos coordenadores e em todos os que atuam direta ou indiretamente com os alunos a crença na capacidade de a criança aprender a ser um usuário da língua e de se relacionar conceber que refletir é um procedimento e que também pre- cisa ser exercitado com os coordenadores e professores objetivo de aprendizagem que necessita ser assegurado aos alunos também deve ser desenvolvido com os adultos refletir sobre estratégias que façam com que professores e coordenadores partilhem da autoria de propostas en- tendendo a formação também como um processo de criação desenvol- ver o trabalho de formação dos coordenadores das escolas para que se- jam cada vez mais capazes de organizar seu plano e sua rotina de traba- lho exercer parceria com o professor e organizar o grupo de estudo como um dispositivo para o desenvolvimento profissional dos profes- sores conceber a avaliação formativa como instrumento que dialoga com o ensino e com a aprendizagem considerar que o acompanhamento das salas dos anos iniciais necessita ser formativo e assim sendo criar com os coordenadores estratégias de acompanhamento que garantam de fato o direito de as crianças aprenderem cada vez mais e melhor identi- ficar a importância do diagnóstico de aprendizagem dos alunos com re- lação à alfabetização para que simultaneamente possa subsidiar e ajus- tar suas ações de acompanhamento planejar e desenvolver com os co- ordenadores intervenções adequadas buscando ao considerar as crenças que têm as professoras (sobre alfabetização, sobre como é que se aprende, sobre como é que se ensina) possibilitar a ampliação do reper- tório de conhecimentos essenciais para que desenvolvam um trabalho de qualidade com as crianças das classes de ciclo inicial provocar no grupo de coordenadores a possibilidade de analisar os princípios que fundamentam as propostas de atividades sobre o sistema alfabético e sobre a linguagem que se escreve identificando as atividades que se ca- racterizam como boas situações de aprendizagem em favor da alfabeti- zação das crianças desenvolver com os coordenadores intervenções para que tanto eles quanto os professores compreendam as atividades de leitura como aquelas que oportunizam às crianças mobilizar estraté- gias de leitura entendam como propiciar um encontro adequado entre as crianças e os textos por meio da intencionalidade e dos propósitos diferenciados da leitura reconheçam a importância de as crianças co- nhecerem diferentes gêneros textuais e suas funções comunicativas [fragmento da pauta de formação].

Cansaço. Projeção. Ato deformativo que procura dar forma ao outro, carregando meu peso. Um jeito de receber o outro que é sempre da ordem das condições. Mas não é sufi- ciente dar a ver a lógica subjacente aos discursos que me mantiveram na centralidade, ainda que isso seja importante. Nem tampouco compreender como me engendrei em tais discursos, ainda que tal fato seja interessante. O que importa é continuar perguntando, produzindo outros nós que me permitam reinventar-me.

Penso que a frustração se iniciou já no primeiro dia, quando, reunidos em círculo, cada um, menos eu, contava o que havia realizado em seus municípios. Eram histórias que me lembraram contos de fada: todos tinham um final feliz e o narrador como herói. Enquanto nar- ravam, explicavam que suas ações eram decorrentes do que haviam aprendido na formação anterior. Falas que me tornavam cúmplice de algo que me soava estranho e me constrangia. Ou seria meu desgosto em ouvir histórias de heróis e heroínas encarnados em uma figura messiâ- nica?

O afetamento que experimentei tornou-me vulnerável, como uma preparação que acontecia sem saber. Sentia-me desdobrando numa relação de força, desalojando as certezas; uma brecha se abria para outra maneira de pensar, de ensaiar a formação, uma tentativa de dobrar as forças às quais estava submetida. “É isso a subjetivação: dar curvatura à linha, fazer com que ela retorne sobre si mesma, ou que a força afete a si mesma” (DELEUZE, 1992, p. 141).

Isso são afetamentos conectados com a vida e com o pensamento, relações de for- ças, desdobrando o pensar, suspendendo meu eu ao mesmo tempo em que experimentava o outro sem entender, como no conto “Fita verde no cabelo1”, em que a menina só se dá conta de

seu juízo com a morte da avó.

Eu não sabia do ser ou do estar, simplesmente era; ouvia os discursos e tentava assimilar o todo. No entanto, o que vinha para mim era o inesperado. Contradições perturba- vam-me. Trocava de pele e, nesse rasgar epitelial, o velho trazia o novo, me fazia o próprio lobo de mim mesma. Não era o lobo que me contava, mas a pele esquecida com a qual me encobri:

– Ai, que orelhas grandes você tem!

– É preciso. Sem elas, não se pode decifrar o outro. Sua grandeza cala o silêncio, dissipa a confusão, solidifica o significado do que é letramento, torna-nos seguro de nós. Com elas, pode-se dizer o que cada um é, saber quem sou e quem são os outros. Sem orelhas grandes não é possível aprisionar o que se lê e se escreve no espaço discursivo do letramento. Orelhas grandes preenchem as ausências, corrigem os desvios, ocultam o racismo contra aqueles que experienciam a leitura e a escrita.

– Ai, que olhos grandes você tem!

1 Obra de João Guimarães Rosa que recria a história de Chapeuzinho Vermelho substituindo a obediência pela

– É para não olhar minha cara no espelho. Olhos grandes não se ocupam dos deta- lhes, do que é menor. São predadores, caçam o analfabeto, o marginalizado, os que não exibem em seus corpos a marca da escolarização. Olhos grandes interrompem o assombro diante de outras experiências de leitura e escrita, diminuem os sujeitos não letrados. Olhos grandes im- pedem o acontecimento, a perplexidade diante do projeto educacional de alfabetizar a todos. Olhos grandes, controladores, classificadores, naturalizados que demarcam o lugar de cada um: sabem quantos livros foram decodificados, quantos textos foram reproduzidos. Sabem quantos já desaprenderam de experienciar a leitura e a escrita. Sem olhos grandes não se pode ver o que se quer que seja visto, não é possível concretizar o sonho da pureza do homem: todos domi- nando o sistema de escrita, todos falando a mesma língua.

– Ai, que mãos grandes você tem!

– É preciso segurar o nó em minha garganta, dizer sim aos que me ordenam. Não só isso! É preciso carregar o fardo do ideal: reformar o outro. Exercitar a mira para lançar a flecha ao alvo: saber como se lê e se escreve. Assim poderei ensinar àqueles que foram captu- rados. As mãos armazenam as lições, guardam a história que não deslaço. Estou em minhas mãos, evitando o desprendimento, a ruptura segura pelas linhas das mãos. Não escorro pelas linhas de fuga.

– Ai, que boca enorme você tem!

– Sim! Sim! É para devorar você mesmo.

Ainda sentada na cadeira, afetada por tudo isso que acontecia em mim, voltava ao grupo em silêncio, impossibilitada de propor algo, de me retirar daquele estado.

Talvez não tenha respondido nada ao grupo, às coordenadoras ou a mim mesma porque estava cansada de forjar soluções, de me ouvir naquela roda de conversa na voz das coordenadoras. Afetada pelo esgotamento, fatigada pelos discursos, inspirada pelo ensaio que Deleuze (2010) faz da obra de Beckett, O esgotado. Um ser que é muito mais do que o cansado, pois esgotou todo o possível e assim não pode mais possibilitar. Uma condição na qual não se pode realizar nada, ainda que algo se faça. Há uma renúncia a qualquer ato de representação ou de significação. É uma condição em que tanto o objeto como o sujeito estão esgotados, o que torna possível abolir o real. Um efeito que recai na limitação da linguagem, uma vez que o possível não possui mais nomes. A saída é criar uma metalinguagem. Nela, as relações entre os objetos e as palavras são idênticas e elas não são capazes de propiciar nada; ao contrário, de- volvem ao possível sua própria natureza inesgotável.

Talvez seja por isso que atravessada pelas palavras da coordenadora, o silêncio che- gou amorosamente como se acolhesse o assombro, esgotando-se. É um possível que se inaugura de modo singular:

Os outros são mundos possíveis aos quais as vozes conferem uma rea- lidade sempre variável, conforme as forças que elas têm, e revogável, de acordo com o silêncio que elas fazem. Ora elas são fortes, ora fracas, até que elas se calam, em algum momento (de um silêncio de cansaço). Ora elas se separam e até mesmo se opõem, ora se confundem (DE- LEUZE,1999, p. 237).

É um esgotamento da pedagogização da formação.

Esgotamento como exaustão. Sentei meu corpo, sentindo seu peso arder-me. Há certos acontecimentos que invadem a vida de maneira intempestiva, pelos sen- tidos. Quebram-se pensamentos que sequer foram postos em dúvida, como uma força que aden- tra pela fresta do rotineiro, provocando estranhamentos, trazendo perguntas que se perguntam e cavam dúvidas sem pressa de acontecer. No entanto, olho adiante. Talvez seja por isso que nem todo acontecimento consiste numa experiência. Leva tempo até conseguir nos explodir. Talvez porque só com fogo é possível nos incendiar.

Em “O incêndio de cada um”, Affonso Romano de Sant’Anna (in 1995) conta que há muitos modos de o corpo de uma pessoa embandeirar-se, como se tivesse achado o seu jeito único e melhor de ser, de incendiar-se.

A palavra do sábio, uma vez introduzida no mundo, deve ser subtraída do mundo, deve ser retirada do mundo pelo fogo. O sábio pode escrevê- la, mas não dizê-la. Mas isso seria manter um segredo fácil e presun- çoso, de modo que o poder do sábio ficaria ainda mais fortalecido. O sábio pode não dizê-la e tampouco escrevê-la. Mas assim não faz apa- recer o espaço vazio: o nada ainda não é o vazio. [...] Só a fumaça faz aparecer um vazio significativo. Só a fumaça fala da ausência do livro. Entre o livro e o não livro, a fumaça é a retirada do livro, e o vazio que deixa nessa retirada. [...] Só assim abrirão margens nas páginas, espaços

Documentos relacionados