• Nenhum resultado encontrado

Experiência da fragilidade : deslocamentos entre o ensaiar e o ensaiar-se na escrita e na formação de coordenadores

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Experiência da fragilidade : deslocamentos entre o ensaiar e o ensaiar-se na escrita e na formação de coordenadores"

Copied!
109
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

CARLA CLAUBER DA SILVA

EXPERIÊNCIA DA FRAGILIDADE:

DESLOCAMENTOS ENTRE O ENSAIAR E O

ENSAIAR-SE NA ESCRITA E NA

FORMAÇÃO DE COORDENADORES

CAMPINAS

2015

(2)

Orientador: Prof. Dr. Guilherme do Val Toledo Prado

CAMPINAS 2015

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Doutora em Educação, na área de concentração de Ensino e Práticas Culturais.

O ARQUIVO DIGITAL CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DE-FENDIDA PELA ALUNA CARLA CLAUBER DA SILVA E ORIENTADA PELO PROF. DR. GUILHERME DO VAL TOLEDO PRADO

CARLA CLAUBER DA SILVA

EXPERIÊNCIA DA FRAGILIDADE:

DESLOCAMENTOS ENTRE O ENSAIAR E O

ENSAIAR-SE NA ESCRITA E NA

(3)
(4)

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

EXPERIÊNCIA DA FRAGILIDADE:

DESLOCAMENTOS ENTRE O ENSAIAR E O

ENSAIAR-SE NA ESCRITA E NA

FORMAÇÃO DE COORDENADORES

Autora: Carla Clauber da Silva

COMISSÃO JULGADORA

Orientador: Prof. Dr. Guilherme do Val Toledo Prado Prof. Dr. Carlos Bernardo Skliar

Profa. Dra. Renata Cristina Oliveira Barrichelo Cunha Profa. Dra. Adriana Carvalho Koyama

Profa. Dra. Luciane Maria Schlindwein

A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

2015

CAMPINAS 2015

(5)

AGRADECIMENTOS

Uma história com RR: Escrevo esta dedicatória com um sentimento de profundo carinho para com as pessoas que estiveram presentes durante o percurso deste ensaio/tese. En-quanto escrevo, percebo que houve muitas pessoas, dentre elas: Julia, Jeferson e Nathália, rela-ção que se reinventa na amorosidade entre mãe e filhos; as coordenadoras do Acre que me permitiram viver a experiência da fragilidade; meu orientador que me ajudou a libertar-me para rastrear as sensações trazidas pela experiência.

No entanto, escrever uma dedicatória é como preparar um presente para oferecer a quem se ama. E, quando isso acontece, sua singularidade exige pensar em para quem se escreve. Por isso, não poderei escrever uma dedicatória a cada um, nem mesmo a todos, porque as sen-sações ficariam confusas e fatalmente escreveria a mim mesma.

Assim, dedico essas escritas a uma história de formação que possui RR: Rosaura Soligo e Rosana Dutoit, duas presenças que atravessaram meu percurso como formadora de profissionais da educação e que produziram em mim uma admiração profunda que se transfor-mou em amizade, trazendo-me possibilidades de experimentar novos meios de existir.

O primeiro encontro aconteceu com Rosaura como participante de um grupo de formação de coordenadores sobre alfabetização. Nesse encontro, Rosaura era a ministrante da formação e comentava que os professores possuíam saberes que eram produzidos a partir de sua prática cotidiana – saberes que não são inferiores aos conhecimentos produzidos na acade-mia. Fui capturada por essas palavras que me provocaram olhar de um jeito diferente para o que acontece em sala de aula.

Foi Rosaura quem me apresentou Clarice Lispector, por meio de Felicidade clan-destina, e Guimarães Rosa, em A terceira margem do rio, leituras que se desdobraram na expe-riência da amizade e numa travessia estonteante pelos municípios do Acre, vivenciando dife-rentes maneiras de fazer a educação. Entre elas, o jeito de Chico Mendes, que, para defender os seringais dos coronéis, colocava toda a comunidade em torno da árvore: filhos, mulher, avós, amigos. Vida defendendo vida com a vida. Em trânsito, essa história com RR entrelaçou-se num tempo que é sempre outro tempo, tempo de poucas rimas, mas com risos, rasgos, rosas, raios. Rosaura, colecionadora de palavras roubadas, emprestadas, inventadas, aprecia as pala-vras inquietantes, provocativas, curiosas, afetivas. Dedico a você este ensaio/tese, pelo valor que o Acre tem em nossas vidas, pela impossibilidade de narrar o que nos aconteceu.

(6)

A Rosana, conheci um tempo depois. Formadora do improviso, entre tantas outras, vive a formação em decibéis vibrantes. Desejante do que se faz, volta-se para o inacabado. Improvisa como um jeito de virar o que se pretende do avesso, de suspender o poder, de expe-rimentar outros territórios, de criar enquanto a formação ocorre, de explorar novas palavras, de provocar outras conexões. Com isso, é possível viver o que se passa, o que acontece, o que toca, o que provoca o formador a ser afetado pela formação: o relacionar-se com a instabilidade. Talvez seja por isso que passávamos horas e horas conversando a respeito dos efeitos da for-mação em nós. Planejávamos cada detalhe da forfor-mação sem apego, e Rosana foi autora de muitas narrativas vividas no Acre. Ofereço a você este ensaio/tese, que foi escrito pela via da sensação, percorrendo na pele que habito os efeitos da experiência vivida no Acre.

Rosaura e Rosana são duas imagens poéticas que as palavras não alcançam: cata-doras de sensibilidades. Quando sinto a presença de Rosaura em minha escrita, penso no traba-lho de Lygia Clark, de 1966: Diálogo de mãos. Um movimento forçosamente compartilhado: enquanto uma mão se move, a outra obrigatoriamente também se move. Vive-se a experiência pela pele, no toque de mãos e dedos. A pele é vivida como fronteira e conexão, na qual é per-corrida por meio de movimentos sem regras, que se tocam para produzir novas paisagens.

(7)

Figura 1 – Diálogo de mãos, de 1966, autoria de Lygia Clark

Fonte: Disponível em: <http://veronicalodge.tumblr.com/post/16738553456/lygia-clark-and-helio-oiticica-per-form-dialogo-de mãos>. Acesso em: 22 out. 2015

(8)

Rosana, uma catadora de vazios que faz da formação uma fabulação. Seus planeja-mentos são ferramentas para capturar neblina, como Brígida Baltar. Seu planejamento é o pró-prio corpo, que está no exato momento em que a experiência acontece, transformando o comum em algo raro, singular.

Figura 2 - Coleta da neblina, de 1998, autoria de Brígida Baltar.

Fonte: Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa17557/brigida-baltar>. Acesso em: 22 out. 2015

(9)

RESUMO

A Tese “Experiência da Fragilidade: deslocamentos entre o ensaiar e o ensaiar-se na escrita e na formação de coordenadores” possui alguns desafios. Em especial porque se inscreve no gê-nero ensaio, que apresenta características que lhe são próprias, singulares, que nem sempre atende às exigências de uma tese: problema definido, método objetivo, diálogo constante com autores, conceitos que orientam as análises e respostas aos problemas encontrados. Ancorada em Adorno (2003) e Larrosa (2001), os quais legitimam o gênero ensaio, a pesquisa avança em uma escrita reflexiva que, em seu movimento, cria novos problemas, dentre eles o de entrelaçar pesquisador e pesquisa em um exercício do pensamento, um pesquisar pesquisando-se. O exer-cício de ensaiar-se encontra, no método cartográfico de Deleuze, a possibilidade de ensaiar a “Experiência da Fragilidade”. Essa experiência se desnuda em acontecimentos ocorridos du-rante a formação de 25 coordenadores do Estado do Acre que, juntos, refletiam sobre o processo de leitura dos alunos dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental numa jornada organizada em 40 horas. Acontecimentos que assumem, no ensaio, para a ensaísta/pesquisadora, a possibili-dade de cartografar a fragilipossibili-dade em uma relação de intimipossibili-dade com a formação. É um processo de leitura e escrita que desenha a fragilidade a partir de seus afetamentos: estranhamento, soli-dão, esgotamento, incompletude. Nessa Experiência da Fragilidade não há uma resposta aos problemas de formação, nem um retrato pessimista, mas, sobretudo, a proposta de uma conversa que, antes de tudo, é uma escuta dos que vivem a formação de profissionais de educação. For-mação que singulariza. Escuta. Conversa. Os teóricos que povoam o caminho/ensaio percorrido foram Agamben, Beckett, Skliar, Deleuze, Guatarri, Larrosa, e os autores da literatura são: Cla-rice Lispector, Guimarães Rosa, Manoel de Barros, Margereth Watwood, uma vez que o ensaio se situa na dobra entre Arte, Ciência e Filosofia.

(10)

ABSTRACT

The Thesis "Experience in Fragility: shifts between rehearse and self rehearse in writing and training coordinators" has some challenges. Especially since it falls within the essay genre, which has characteristics of its own, singular, that does not always meet the requirements of a thesis: defined problem, objective method, constant dialogue with authors, concepts that guide the analysis and answers to problems. Anchored in Adorno (2003) and Larrosa (2001), who legitimize the genre essay, the research progresses on a reflective writing that, in its movement, creates new problems, among them interlacing researcher and research in an exercise of thought, a kind of research and self research. The exercise of rehearsal is found in the carto-graphic method of Deleuze, the possibility to test the "Experience of Fragility". This experience happened in events during the formation of 25 coordinators in Acre, that together, reflected on the reading process of students in Elementary School Initial Years on a journey organized in 40 hours. Events that take, in the researcher/ essay writer, the possibility of mapping the weakness in an intimate relationship with the formation. It is a process of reading and writing that draws the weakness from its happenings: estrangement, loneliness, exhaustion, incomplete-ness. In this Experience of Fragility there is an answer to education problems, nor a pessimistic picture, but, above all, the proposal for a conversation that first of all, is a living listening fot those who face the formation of educational professionals. Training that distinguishes. Listen-ing. Conversation. Theorists that took this path were Agamben, Beckett, Skliar, Deleuze, Guat-tari, Larrosa, and the literature of authors were: Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Manoel de Barros, Margareth Watwood, since the essay is in the fold between Art, Science and Philoso-phy.

(11)

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Diálogo de mãos, de 1966, autoria de Lygia Clark ... vii

Figura 2 - Coleta da neblina, de 1998, autoria de Brígida Baltar. ... viii

Figura 4 - Que me veux tu?, 13,3 × 8,3 cm, 1928, de autoria de Claude Cahun ... 92

Figura 5 - Project, 2007. Impressão digital 9 + 2 PA 59,5 × 45 cm ... 94

(12)

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 13

1.1 CARTOGRAFIA DO OUTRO EM MIM ... 17

2 ESTRANHAMENTO: UM FIO QUE SE (DES)FAZ ... 23

3 DA SOLIDÃO: UM SOPRO DO OUTRO... 34

4 O ESGOTAMENTO: O DESENLACE DE UMA HISTÓRIA ... 46

5 ENCARTE ... 55

6 FRAGILIDADE E FORMAÇÃO: UMA ESCRITA EM CINZA ... 81

7 EFEITOS... 97

(13)

1 INTRODUÇÃO

Sinto que já cheguei quase à liberdade. A ponto de não precisar mais escrever. Se eu pudesse, deixava meu lugar nesta página em branco: cheio do maior silêncio. E que cada um que olhasse o espaço em branco, o encheria com seus próprios.

Ofereço um ensaio1. Experiência da Fragilidade. Não haverá aqui nenhum mapa de

orientação, já que isso pressupõe indicar um caminho, tarefa que deve ser cumprida na solidão de cada um. Preocupo-me. Sim, preocupo-me por saber que não devo me ocupar nem como este ensaio pode afetar alguém, nem mesmo o quanto ele me afeta por não poder me ocupar. Sinto apenas que essa impotência atravessa minha escrita2.

1 O texto que segue se orienta em duas perspectivas: defender o ensaio como prática de pesquisa de pós-graduação

e mostrar por que suas características, que nem sempre atendem às exigências de uma tese, necessitam ser respeit-adas, pois o ensaio é mais que uma forma de produção de registro. É também um método para o ensaísta que se ensaia no ensaio da pesquisa. Quando se pensa na escrita de uma tese, considera-se fundamental, antes de mais nada, contextualizar a pesquisa. No entanto, Adorno (2003; p. 16.17) adverte que no ensaio não há um princípio primeiro: “O ensaio reflete o que é amado e odiado, em vez de conceber o espírito como uma criação a partir do nada, segundo o modelo de uma irrestrita moral do trabalho. Felicidade e jogo lhe são essenciais. Ele não começa com Adão e Eva, mas com aquilo sobre o que deseja falar; diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, onde nada mais resta a dizer. Ocupa, desse modo, um lugar entre os despropósitos. Seus conceitos não são construídos a partir de um princípio primeiro, nem convergem para um fim último. Suas interpretações não são filologicamente rígidas e ponderadas; são por princípio superinterpretações [...] Quem interpreta, em vez de simplesmente registrar e classificar, é estigmatizado como alguém que desorienta a inteligência para um deva-neio impotente e implica onde não há nada para explicar”. Por isso, o início da Tese é o acontecimento que me afetou, provocando minha reflexão sobre a formação, sobre meu lugar e minha responsabilidade nessa formação, sobre mim mesma. Segundo Larrosa (2001): “O ensaio converte o método em problema; por isso, é metodologi-camente inventivo. O Discurso do método, de Descartes, é um ensaio. Ocorre, porém, que logo que se converte em metodologia, se fossiliza. Precisamente porque o método já está dado e já não é um problema. A peculiaridade do ensaio não é sua falta de método, mas a que mantém o método como problema sem nunca tê-lo como suposto. Uma vez fossilizado, o método é uma figura linear, retilínea. O ensaio, no entanto, é uma figura de caminho sinuoso, um caminho que se adapta aos acidentes do terreno. O caminho linear, retilíneo, é o caminho daquele que sabe previamente aonde vai e traça, entre ele e seu objeto, a linha mais curta, mesmo que para realizá-la tenha de passar por cima de montanhas e rios. O método tem a forma de uma estrada ou via férrea que ignora a terra. Ao contrário, o ensaísta prefere o caminho sinuoso, o que se adapta aos acidentes do terreno. Às vezes, o ensaio é também uma figura de desvio, de rodeio, de divagação ou de extravagância. Por isso, seu traçado se adapta ao humor do caminhante, à sua curiosidade, ao seu deixar-se levar pelo que lhe vem ao encontro. O ensaio é, também, sem dúvida, uma figura do caminho da exploração, do caminho que se abre ao tempo em que se caminha. Como nos versos de Antônio Machado, "Caminhante, não há caminho senão estrelas no mar. Caminhante, não há cami-nho, o caminho se faz ao caminhar". Digamos que o ensaísta não sabe bem o que busca, o que quer, aonde vai. Descobre tudo isso à medida que anda. Por isso, o ensaísta é aquele que ensaia, para quem o caminho e o método são propriamente ensaio”. Nesse movimento, a experiência da fragilidade avançou em uma escrita reflexiva, cri-ando problemas, dentre eles o de entrelaçar pesquisador e pesquisa em um exercício do pensamento. Especialmente o de não me sentir autorizada a demarcar meu território como formadora, de anunciar verdades sobre leitura e escrita, de não defender uma posição em detrimento de outra, mas sim o de me expor, optando em cartografar a experiência da fragilidade a partir de um processo de leitura e de escrita.

2Para Larrosa (2001; p.11), o ensaísta escreve no presente e para o presente; por isso, “não escreve de forma

atemporal, nem mesmo lê e escreve para todos e para ninguém, mas, sim, para um tempo e para um contexto cultural concreto e determinado”. No entanto, o autor faz uma outra pergunta: “Para quem o acadêmico escreve?”.

(14)

É que as palavras que escrevo desdobram-se3. Sinto a presença da vida que sente quando o frio chega4. A vida transbordando, inundando, como o rio, o mundo. E agora é que tomo conta de que essa escrita é bem maior que o prólogo que escrevo. Quando escrevo, habito o menor5, experimento detalhes ínfimos em meu próprio abandono. Não me precipitarei em querer ensinar, já que sou eu mesma um movimento ensaiando-se na folha em branco6.

Ocupar-me com o frio seria o mesmo que esquecer o mundo. Seria forjar um diá-logo7. Impor minha língua à vida que atravessa o frio, enxertaria verdades pouco interessantes,

E devolve a pergunta, lançando uma reflexão, tanto para quem escreve na academia quanto a respeito de como se lê na academia: “Creio em duas possibilidades: em primeiro lugar, está o que escreve para a humanidade, definida como atemporal; em segundo, o que escreve para a própria comunidade acadêmica, definida em termos de atuali-dade, do presente, mas onde o caráter perecível da escrita tem um outro sentido que o do ensaio. O ensaio aceita seu caráter de "palavra no tempo", porém escrever para a comunidade acadêmica atual tem mais o sentido da obsolescência da mercadoria, o da caducidade particular de tudo que se dá como mercadoria. No mundo acadêmico, já se sabe que tudo o que se escreve é caduco, porém é caduco como mercadoria, como "novidade". Não é efêmero porque está localizado numa temporalidade específica e porque se funda nessa temporalidade. Falando da minha experiência, e exagerando um pouco, poderia dizer, talvez, que o acadêmico escreve para o comitê de avaliação, para a banca da tese ou para o avaliador do paper. A questão é tão séria que se escreve para que ninguém leia e, o que é mais grave, a partir de critérios que se pressupõe sejam do avaliador. Uma pergunta poderia ser: como lê o avaliador? O avaliador do paper inicia, em geral, pelas conclusões, atravessa de trás para frente as notas de rodapé, para ver se as referências são atualizadas e têm a ver com o tema, e, se continuar, se já não decidiu rejeitar o texto, continua com as hipóteses que o fundamentam, ignorando o conteúdo, na maioria das vezes”.

3 O ensaio precisa mais de palavras do que situar-se em um tempo cronológico; não vive sem elas. Sem elas não

se pode fabricar seus próprios intercessores, o que, para Deleuze (1990), seria algo terrível: “Se não formamos uma série, mesmo que completamente imaginária, estamos perdidos. Eu preciso de meus intercessores para me exprimir, e eles jamais se exprimiriam sem mim: sempre se trabalha com vários, mesmo quando isso não se vê” (Deleuze, 1990). Abre-se um tempo outro, na qual o que é menor cria uma atmosfera de surpresa, de conversas que não aspiram a uma resposta, uma verdade única, mas a um direito que cada um tem de se mostrar ao mundo a seu modo e de mostrar o modo como o mundo se lhe apresenta, afetando-o.

4 Adorno (2003; p. 29-30), no texto O ensaio como forma, inserido no volume Notas de Literatura, afirma que “A

exposição dos conteúdos é o que prevalece, uma vez que não se pode separar o método do objeto, e exige (...) a interação recíproca de seus conceitos no processo da experiência intelectual. Nessa experiência, os conceitos não formam um continuum de operações, o pensamento não avança em um sentido único; em vez disso, os vários momentos se entrelaçam como num tapete. Da densidade dessa tessitura depende a fecundidade dos pensamentos”.

5 O ensaio está no menor, no ínfimo e, para Deleuze e Guatarri (2003), não é algo diminuído, mas potência: “O

menor é que é grande (...) Que exista a possibilidade de fazer da sua própria língua um uso menor (...) estar na sua própria língua como um estrangeiro”.

6 Larrosa (2001) descreve o ensaísta como “um leitor que escreve e um escritor que lê”, que “problematiza a escrita

cada vez que escreve e problematiza a leitura cada vez que lê. Ou melhor, é alguém para quem a leitura e a escrita são, entre outras coisas, lugares de experiência; melhor ainda, é alguém que está aprendendo a escrever cada vez que escreve e aprendendo a ler cada vez que lê, alguém que ensaia a própria escrita cada vez que escreve e que ensaia as próprias modalidades de leitura cada vez que lê”. No entanto, há um certo silenciamento da escrita e da leitura na academia. Para o autor, o território acadêmico supõe que a leitura e a escrita já sejam aprendizagens conquistadas e retoma Adorno para reiterar a ausência de escritores na academia: “Quando Adorno diz que "a elogiosa qualificação de escritor serve, ainda hoje, para manter excluído do mundo acadêmico quem recebe tal qualificativo" está dizendo também que, nesse espaço, o acadêmico não é um escritor”.

7Na escrita deste Prólogo que acompanhará a tese: Experiência da Fragilidade: deslocamentos entre o ensaiar e o

ensaiar-se na escrita e na formação de coordenadores, aposta-se em uma formação conversante, já que [...] “o valor de uma conversa não está no fato de que ao final se chegue ou não a um acordo...; pelo contrário, uma conversa está cheia de diferenças e a arte da conversa consiste em sustentar a tensão entre as diferenças, ...mantendo-as e não as dissolvendo... e mantendo também as dúvidas, as perplexidades, as interrogações... E isso é o que a faz interessante...; por isso, em uma conversa, não existe nunca a última palavra...; por isso, uma conversa pode manter as dúvidas até o final, porém cada vez mais precisas, mais elaboradas, mais inteligentes...; por isso, uma conversa

(15)

assimiladas. E isso eu conheço. Essa era minha profissão: retirar dos livros a paixão, recolher deles preciosidades, nomear e traduzir as palavras estranhas, qualificando a leitura, contami-nando-a com um mundo já conhecido.

Isso acontece porque a leitura é, para cada um, incontrolável. Um risco do qual não há proteção, nem para essa escrita, nem tão pouco para mim, ainda que sofra com o efeito de que tal leitura8 possa provocar. Uma dor que sente alívio e tristeza. Alívio, quando vejo no livro amarelado que ele foi tocado por muitas mãos. Conforto-me em imaginar que não estou só; outros viveram9. E, uma leve tristeza, por saber que a escrita e a leitura são afetadas pelos mesmos males. Sinto medo de que as palavras que escrevo se afastem de mim. Tenho medo de lê-las enquanto escrevo, pois desconfio do meu olhar10. Fujo da minha própria expressão porque não quero tropeçar nas mesmas pedras11.

Quero ficar na intensidade, nos movimentos, reconciliar-me com o mundo12. O efeito desse tropeço é um retardo desnecessário. Explicando quem sou, afastaria as perguntas

pode manter as diferenças até o final, porém cada vez mais afinadas, mais sensíveis, mais conscientes de si mes-mas...; por isso, uma conversa não termina, simplesmente se interrompe... e muda para outra coisa...” Larrosa (2003; p.216).

8Larrosa (2001), ao escrever sobre o ensinar e o aprender, explica que o professor, ao selecionar um texto, o faz

como se oferecesse um presente aos alunos, esperando que ele seja aceito “uma vez que só se presenteia a quem se ama, o professor gostaria que seu amor fosse também amado por aqueles para os quais ele o remete. E uma vez que uma carta é como uma parte de nós mesmos que remetemos aos que amamos, esperamos resposta. O professor gostaria que essa parte de si mesmo que dá a ler também despertasse o amor dos que a receberão e suscitasse respostas”. (LARROSA; 2001; p.140) A escrita do ensaio, no qual se cartografa a fragilidade, é oferecida ao leitor como um presente. Oferece-lhe a possibilidade de refletir sobre a educação como um ensaio, de conversar com o que afeta cada um. É uma escuta sensível que busca na arte a possibilidade de se reinventar.

9Para Larrosa (2003) o ensaio atravessa a dicotomia entre arte e ciência, dando a ver ao leitor suas fronteiras, o

que pode provocar desconforto: “E as fronteiras, como se sabe, são gigantescos mecanismos de exclusão. O pior que pode acontecer a quem tenha pretensões de escrever filosofia é que alguém lhe diga "Isso que você escreve não é filosofia". Essa reprovação foi ouvida por Nietzsche, por Foucault, por Benjamin: "Isso que você faz está muito bem, mas é qualquer coisa, menos filosofia".

10Ainda para o autor, faz-se necessário problematizar a academia do ponto de vista de sua política de linguagem a

partir do ensaio, uma vez que este é hibrido e suas características são contrárias às regras acadêmicas, que privi-legiam a objetividade, excluindo o ensaio como forma de registro de pesquisa e de pensamento. O autor retoma Maria Zambrano, filósofa, escritora e pesquisadora que faz uma consideração histórica ao problematizar os gêneros literários e sua relação com a vida, afirmando que o triunfo da filosofia sistemática e de seu fazer e o triunfo da razão técnico-científica e de sua forma derrotaram vários gêneros, dentre eles o ensaio, que por ser híbrido, impuro e ambíguo é considerado menor quando comparado com a forma pela qual a filosofia se legitima. Uma forma e um fazer que apartam a vida da escrita, reformando-a e ajustando-a aos modos da razão. Por isso, LARROSA (2001) reivindica, na companhia de Maria Zambrano, os gêneros menores por estes manterem uma relação com a vida e por considerar que as fronteiras entre filosofia e literatura estão se dissolvendo. O esgotamento de a razão ser considerada a única forma possível de produzir pesquisas e o enfado no qual a academia vive de ouvir sempre a mesmice são efeitos do banimento dos gêneros considerados menores pela própria academia.

11 De diferentes modos, Larrosa (2001) e Adorno (2003) reiteram o valor do ensaio nos territórios acadêmicos

como produção teórica, como exercícios do pensamento, apoiando-se em sua história, em sua tradição, em sua potência (2004).

12 Para Larrosa (2001; p.188) a educação é a forma de receber os que nascem, e responder, não é explicar, mas

“abrir-se à interpelação de uma chamada e aceitar a responsabilidade. Receber é criar um lugar, abrir um espaço em que aquele que vem possa habitar, pôr-se à disposição daquele que vem, sem pretender reduzi-lo à lógica que impera em nossa casa.

(16)

das quais sou feita. Sufocaria a experiência da fragilidade que vive em liberdade, sem preocu-pação com a identidade. Não posso. É que, quando escrevo, algo acontece13. Habito a existên-cia, e o que escrevo, modifica-me. Escrita insegura quando me afeta, intensa quando a pressinto, tímida quando me assombro, provisória quando me movimento, potente quando me reinvento, melancólica quando morro, infantil quando nasço, esgotada quando não consigo.

Essa escrita exige desprendimento. Não é uma escolha; é, antes, condição. Reside em um tempo fora do tempo, em uma língua que não é a minha língua. É um escrever escu-tando. Aprende-se a conversar. Sem contratos, sem arrogâncias, sem ter de, sem derrota; só igualdade. Escrever e ler entrelaçam-se no movimento das perguntas, na inquietude. Uma pas-sagem que se faz pelo cambalear do escritor enquanto desenha contornos, linhas, já que a so-noridade das palavras não se fixa, vive à deriva. Fotografo-as com um olhar no instante, no intervalo entre a escrita e a leitura.

Então entrego à leitura. Dou ao mundo, ao leitor anônimo, esperando que tenha em suas mãos uma outra chave. E, caso sinta vontade de ler mais, corra à biblioteca, à seção de Literatura. Lá, com seu cansaço, demore-se. Se inspirar-se a inventar, escreva. É um segredo, mas tudo o que escrevi, o fiz sem saber.

A depender do lugar em que esteja, talvez sinta medo; será bom se puder contar com um amigo, um alguém, talvez outro livro, um passeio, ou quem sabe uma boa conversa com desconhecidos. E, se interessar-se pelo conteúdo dessa escrita, aviso que lhe será exigido não sua compreensão, mas seu afeto. E, se insistir no contrário, saiba que jamais poderá lê-la. Isso me remete a um relato que ouvi de um professor quando conversávamos sobre a mesmice: “Isto sempre me lembra um cinema de animação ambientado em Praga, depois da invasão de 1968, em que a professora pede às crianças da turma que desenhem uma galinha. Cada uma delas fez a galinha mais realista, mais próxima do real, mas um menino fez uma galinha abs-trata, uma mistura de Picasso, Dali e Miró, que prontamente foi criticada pela zelosa professora. No entanto, a galinha abstrata começou a cacarejar e saltou do caderno do guri para o piso da sala de aula, fazendo com que a referida mestra e quase toda a turma fugisse desesperadamente daquele ser inesperado e inusitado. E, depois de passear pelas ruas de Praga, assustando invo-luntariamente a população, e de ser ameaçada por policiais e armas pesadas das forças armadas, a pobre galinha não viu melhor alternativa do que voltar para a escola e pular para dentro do caderno, de onde, supõe-se, jamais deveria ter saído”.

13 Clarice Lispector (1999; p. 133) escreve: “Eu, reduzida a uma palavra? Porém, qual palavra me representa? Uma

coisa sim que eu sei é que eu não sou meu nome. Meu nome pertence aos que me chamam. Porém, meu nome intimo é zero. É um eterno começo que interrompe sem parar minha onsciência de começo”.

(17)

1.1 CARTOGRAFIA DO OUTRO EM MIM

Que direito tem meu presente de falar de meu passado? Meu presente tem algum poder sobre meu passado? Que “graça” me teria iluminado? Somente a do tempo que passa, ou de uma boa causa encontrada em meu caminho? (BARTHES, 1977, p. 130).

Enquanto escrevo leio teses para aprender como se escreve. Paro durante as leituras, admirando a escrita que me afeta pelo conteúdo que me põe em movimento distanciando-me da tarefa, tenho vontade de partir com as leituras. Quando olho para o meu texto e vejo que nada escrevi, fico irritada tanto com a folha em branco, como a tese que acabara de ler, pois parece que é uma tese que se fez em plena harmonia entre aquele que escreve e o que se escreve, como um conto de fadas, no qual os personagens se valem de objetos e palavras mágicas para escaparem do perigo. Uma imagem que contraria a luta que travo quando me ponho em movi-mento com a escrita, no qual só se escapa quando se perde.

Ao percorrer os sentidos da palavra “introduzir”, deparo-me com a necessidade de contar aos leitores a finalidade deste ensaio/pesquisa. Esclareço que a proposta é problematizar um acontecimento que se desdobrou na experiência da fragilidade. Ao narrá-lo, a escrita entre-gou-se ao corpo, ao que é menor14 aos biografemas, lugar dos pormenores, de alguns gostos, de algumas inflexões. Diria também de nuanças, pequenos detalhes onde vivem os afectos e per-cepctos15. Lugar no qual se experimenta a fragilidade movimentando a escrita. Enquanto relato o (des)encontro com a leitura durante a formação com as coordenadoras do estado do Acre, desdobro-me, ensaiando a tese: “Experiência da Fragilidade: deslocamentos entre o ensaiar e o ensaiar-se na escrita e na formação de coordenadores”. Atendendo aos afetos farejados e tomada pela intensidade do instante, “muita coisa não posso lhe contar. Não vou ser autobiográfica. Quero ser bio.” (LISPECTOR, 1973):

14 Menor não significa inferior ou pequeno, mas antes, como Deleuze e Guatarri (1977) a utilizam para descrever

a literatura de Frans Kafka quando descrevem que “menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix.Kafka por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltd. Tradução de Júlio Castañón Guimarães, 1977; p. 25.

15 Para Deleuze, a obra de arte é um composto de perceptos e afectos. Diferentemente da filosofia, que cria

con-ceitos, e da ciência, que cria funções, a arte cria sensações. De modo que, segundo o autor, sensações são um composto de afectos e perceptos, e ambos não devem ser confundidos com percepções nem com afetos. Os afectos são “devires não humanos”, e os perceptos, “as paisagens não humanas da natureza” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 220).

(18)

Se quiserem aplicar a mim os critérios bibliografia-biografia, vejo que escrevi meu primeiro livro bem cedo, e depois mais nada durante oito anos. [...] É como um buraco na minha vida, um buraco de oito anos. É isto que me parece interessante nas vidas, os buracos que elas compor-tam, as lacunas [...]. É talvez nesses buracos que se faz o movimento. [...] Talvez não se mexendo demais, não falando demais: evitar os falsos movimentos, residir onde não há mais memória (DELEUZE, 1991).

Por meio de uma viagem pela superfície da terra como um animal selvagem fare-jando efeitos e sensações, contrapondo-se a uma biografia, já que não há diferença entre não há diferença entre “recordar sueños y recordar el pasado” (BORGES, 2007) e não temos como saber se o que se faz encontra ou traz algo real ou fictício. Barthes (2007, p. 169-170), em seu livro O império dos signos, afirma:

Não tomei absolutamente nenhuma nota, nem nada. Vários anos depois, quando fiz esse livrinho, precisei reconstituir mentalmente. Ainda bem que eu tinha algumas agendas de encontros, mais nada. Reconstituí tudo e, por isso mesmo, [...] tirei de mim o máximo que podia no plano das lembranças, da anamnese.

Para Sarlo (2008, p. 156), a ficção “não desvela uma realidade mais verdadeira, nem decifra códigos”; no entanto, propõe um “regime autônomo de relações na trama do relato” e conta-nos sobre o mundo “não como representação, mas por contradição e divergência”, mo-vimentos que intersectam ficção e realidade, dando a ver o conflito de ambas: “Descobrir que a lógica postulada para a realidade contradiz a lógica do texto ou que a lógica do texto é mais persuasiva e consistente que a lógica do real” (SARLO, 2008). São possibilidades de existir encontradas nas linhas de fuga16 e que instituem um novo estilo: “São estilos de vida, sempre implicados, que nos constituem de um jeito ou de outro [...]. Há nisso uma ética, há também um estilo de vida, de nenhum modo algo pessoal, mas a invenção de uma existência” (DE-LEUZE, GUATTARI, 1992), que não se prende à representação, não busca conceituar, distin-guir, comparar, ordenar; contudo, por enquanto, segue perguntando.

16 Deleuze compreende a linha de fuga como um processo de desterritorialização, afirmando que “fazer fugir, não

obrigatoriamente os outros, mas fazer fugir algo, fazer fugir um sistema como se arrebenta um tubo... Fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma cartografia." (DELEUZE, Gilles. Diállogos. São Paulo: Escuta, 1998, p. 47)

(19)

A essa fabulação, pode-se conectar a ideia de anamnese de Barthes (2003b), uma ação de “mistura de gozo e de esforço – que leva o sujeito a reencontrar, sem ampliar nem o fazer vibrar, uma tenuidade de lembrança” (BARTHES, 2003b), na qual “o biografema nada mais é do que uma anamnese factícia: aquela que eu atribuo ao autor que amo” (BARTHES, 2003b, p. 126).

Escrita que me desafia, já que a “experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, o que acontece, ou o que toca” (LARROSA, 2002b). A fragilidade não está em mim e não há mapa para encontrá-la. Sua decifração não está na expli-cação, mas no próprio movimento dessa escrita, captando sua força. O que se pretende então é a cartografia da fragilidade, “princípio do rizoma que atesta, no pensamento, sua força perfor-mática, sua pragperfor-mática, um princípio inteiramente voltado para uma experiência ancorada no real” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 21).

A cartografia da fragilidade percorre seus afectos e perceptos: encontros entre os biografemas e o movimento da escrita, expondo assim suas linhas e seus contornos nas imagens que se engendram no pensamento. Pela escrita e não na escrita, podem-se cavar linhas de fuga, dando a possibilidade de experimentar a fragilidade não pelo que é, mas pela variação de afectos que se é capaz de viver. A experiência da fragilidade vivida no espaço da educação existe en-quanto possibilidade de aprender a ouvi-la em suas intermitências de vida.

Os registros são como hypomnemata, exercício de dupla face que gruda em mim, me afeta pelo lado inverso. Movimento de exteriorização como um mestre encenador ou “quem se corresponde com o outro, servindo-lhe de diretor, faz continuamente exercícios de certo modo pessoais, uma ginástica que se destina ao outro, mas também a si” (FOUCAULT, 2004, p. 434):

Saí cedo. Sabia que a viagem seria de esperas. Era inverno e ansiava pelo calor do Acre, e aquele céu azul era quase uma saudade. Mas, antes de chegar, era preciso continuar aquecida. Nunca esquecia de levar a manta que me protegia daquele frio do avião, frio que espantava meu sono, que seria por demais precioso, já que era uma viagem feita de esperas. A distância era sentida pelo calor que pouco a pouco aque-cia de forma natural meu corpo, sinal de que me distanaque-ciava do frio e do céu cinzento de Joinville.

Quando cheguei, uma noite estrelada esperava-me. Mal sabia que em pouco tempo seria agarrada por sua intensidade. Por ora, preocupava-me sopreocupava-mente com a hora marcada: um grupo de coordenadores de cada município que compunha o estado do Acre. Nesse encontro o tema era ler para aprender a ler melhor. Aprender a ler com o grupo que não

(20)

era novo, pois já havíamos trabalhado juntos no ano anterior, mas não posso dizer que éramos um grupo de conhecidos, pois a cada período em que estávamos juntos sempre havia coordenadores novos. Entre-tanto, os dilemas da profissão e as condições vividas pelo processo de ensino em nosso país tornavam-nos, rapidamente, velhos conhecidos, impedindo a presença da novidade. Mesmo assim, perguntas inquietan-tes emanavam daqui e dali, dando a impressão de que nos víamos pela primeira vez.

O tema da formação já havia sido definido anteriormente entre os co-ordenadores que atuavam na Secretaria do Estado do Acre e na Em-presa de Consultoria Abaporu, da qual eu era contratada.

No segundo dia de formação, eu fazia uma exposição sobre o vídeo de uma aula de leitura com alunos do 2º ano do Ensino Fundamental. Di-zia que a experiência da leitura com os alunos se dá no espaço de uma brincadeira de adivinhar e que, quando nos envolvemos nessa brinca-deira com as crianças, também nos divertimos. Nesse momento fui atra-vessada pelas palavras de uma formadora, palavras que ainda ressoam em mim: “Essa atividade que você propõe para que seja desenvolvida com nossos alunos é impossível! Isso é aula para se dar nas universida-des, e não para nossos alunos. Eles não conseguem fazer isso!”. Não sei por quanto tempo essas palavras reverberaram em mim; sei que, depois de cinco dias, voltei para Joinville. Reencontrei o céu cinzento, o frio atravessando minhas roupas e atingindo meu corpo. Vi pela pri-meira vez dois pares de olhos sorrindo para mim, os mesmos que deixei quando parti. Algo acontecera.

Esta escrita é efeito de uma desconfiança contínua de mim mesma, já que me prega peças. Cinco dias no Acre? Ou em órbita? Por onde andei? Será o mesmo lugar para onde fui? Não. Caminhei pela superfície, pelo céu estrelado que me aguardava, quando fui roubada de mim mesma.

Assombrada pelo ESTRANHAMENTO: UM FIO QUE SE (DES)FAZ, estilha-çando a solidez das verdades inventadas, encontrei-me fragmentada. Abriu-se um vazio entre mim e as coordenadoras quando aquelas palavras me atravessaram, produzindo uma sonoridade desconhecida. Tudo o que eu sabia sobre alunos e leitura ficaram em estado de suspensão, e, como fiapos de não saberes, cavei nas brechas novos caminhos, vivendo em alumbramento. Tinha-se agora de ler sem saber. Isso não acontecia de forma solitária, mas na soli-dão, já que sua força retira o “eu” de cena, suspendendo-o. Desaprendi ao experimentar a SO-LIDÃO: UM SOPRO DO OUTRO, que provocou uma curiosidade avançando como uma guerra contra a guerra, esgotando todo o possível, restituindo-lhe, pela impossibilidade, sua condição inesgotável. O ESGOTAMENTO: O DESENLACE DE UMA HISTÓRIA é um dizer que se mostra enquanto se ensaia na própria escrita, como uma criança que aprende a andar.

(21)

Gestos delicados que se produzem no que é menor, reinventando-se. Dispensando as explica-ções, produzi um encarte com os registros fotográficos capturados dos portfólios das coordena-doras do estado do Acre. São imagens que provocaram saudades, abandono, risos, mas também amor pela experiência vivida, efeitos que me instigaram a escrever quase que com uma vontade de me esconder: FRAGILIDADES. Uma escrita que ensaia FRAGILIDADE E FORMAÇÃO: UMA ESCRITA EM CINZA, desdobrando as problematizações como se percorresse um trajeto com destino impossível. Escrita que tenta resistir à ordem, ao peso da pedagogia de ter sempre de solucionar, propor alternativas, criticar incisivamente sem perceber os efeitos que se pode produzir no cotidiano pedagógico. Escrita que foge, escapa, como se fosse minha única prote-ção, pois percebo que a formação é uma tenda fina e frágil, feita de papel e na qual não é possível estar sem viver seus EFEITOS.

Esclareço então que não organizei um quadro teórico, nomeando os autores com os quais dialogo, pois compreendo que a investigação narrativa é um acontecimento e que não se pode antecipar quem estará presente – outros poderão ser chamados durante a trajetória, e sua chegada, embora preparada, não significa sua permanência. A princípio, posso dizer que é ape-nas Deleuze e todos os seus outros que são como guizos de palhaço ou, dito de outro modo, a “secreta astúcia de um caminho oblíquo, necessário para seguir a arte das divagações, que não é um gasto inútil, mas uma obscura preparação” (LARROSA, 2001, p. 77), sem lugar, provisó-rio e estranho, para que não se torne “modelo de identificação, mas astúcia para diferir de si próprio, para separar-se de si mesmo no processo tortuoso de chegar a ser o que se é” (LAR-ROSA, 2001, p. 77).

Compreendo a necessidade de assumir o inacabamento da pesquisa, sua provisori-edade, porque o exercício do pensamento é antes de tudo uma experiência com a liberdade: “Ter um saco onde coloco tudo o que encontro, com a condição que me coloquem num saco. Achar, encontrar, roubar, ao invés de regular, reconhecer e julgar. Pois reconhecer é o contrário do encontro” (DELEUZE, 1988, p. 16).

Escrevo linhas viajantes Com guizos de palhaço. Traço um plano de imanência

A lugar algum chegar. Movimentos sem paragens,

Empresto-me a vida, Enceno contingências, Sem sujeitos nem objetos. Pesquiso acontecimentos,

(22)

É uma escrita que intensifica a curiosidade, pois escrevo para indagar, experimen-tando perplexidades. É liberdade que dá a possibilidade de qualquer coisa acontecer, deslizar, uma vez que a escrita tem a ver com cartografar, e a pesquisa que acontece pela leitura e pela escrita só vale a pena quando se se desconhece o fim.

Na linha que se desdobra há uma desconcertante harmonia: o que o real oculta, a ficção denuncia. Criação que se experimenta na liberdade de existir. Pesquisar não é o enclau-suramento do pensamento pela escrita, mas um exercício do pensamento, uma situação real de liberdade para quem experimenta, um jogo fictício vivido por quem escolhe se pôr no movi-mento do pensamovi-mento, deslocando-se.

(23)

2 ESTRANHAMENTO: UM FIO QUE SE (DES)FAZ

Quando o segundo sol chegar / Para realinhar as órbitas dos planetas / Derrubando com assombro exemplar / O que os astrônomos diriam se tratar / De um outro cometa / [...] Eu só queria te contar / Que eu fui lá fora e vi dois sóis num dia / E a vida que ardia sem explicação (REIS, 2002).

Preparei a formação como alguém que compra um pacote turístico em que estão incluídos todos os serviços: passeios, alimentação, hospedagem e até companhia, caso seja pre-ciso. Quando foi confirmada a formação, eu e Adriana Pierini, minha companheira, já começa-mos a planejá-la metodicamente. Fizecomeça-mos um esboço com uma preocupação: o tempo. Preen-chê-lo era estritamente necessário. Seguir um script, traçar um percurso, antecipando os impre-vistos, era crucial para nós:

O que vamos levar? Precisamos preparar os textos de leitura para de-leite. Pode deixar, tenho muitos livros! E os momentos de escrita, como vão funcionar? Precisamos garantir momentos para os coordenadores poderem ler e compartilhar os próprios registros. Você leva a máquina fotográfica. Ah! Tenho várias folhas coloridas. Vamos levar para pode-rem escrever as reflexões? E a avaliação? Vai dar tempo? E o conteúdo? Como vamos trabalhar todas as expectativas? Precisamos calcular o tempo de cada atividade. E se sobrar tempo? Vamos preparar, caso isso aconteça, outras atividades. Como poderemos encaminhar essa discus-são? Quais serão as respostas? E se? E se? E se?

De repente a conversa – toda online – ficava desesperadora, e corríamos para o telefone a fim de acomodar um pouco tantas expectativas, abafar o medo, apresentando-nos de forma eufórica por meio das risadas.

Vamos dar conta, maninha? Vamos, sim! Fazemos assim: preparo tais e tais atividades e você fica com essas outras; você faz os slides da lei-tura; eu encaminho a análise dos procedimentos; você prepara os mate-riais para serem reproduzidos. Isso! Vai dar tudo certo. Tchau.

São discursos que pouco a pouco despersonalizam o ser. Transformados, nem se percebe que são controlados por palavras inventadas na inércia dos hábitos. Seus sentidos estão

(24)

entupidos de palavras que lhes afirmam a obrigatoriedade de um só eu, uma visibilidade que impede a presença da poética, reforçando um pensamento cartesiano. Palavras que capturam a diferença. Um pesar ou, nas palavras de Skliar (2003, p. 15): “Preferimos mudar a educação – e mudá-la sempre – antes de perguntar-nos pela pergunta; preferimos ocupar-nos mais do ideal, como normal, que do grotesco, como humano. Preferimos fazer metástase educativa a cada momento”.

Proteger o eu pelo isolamento, arremessando-o para o mundo exterior por meio de palavras que o afastam do alcance de alguma conexão com sua multiplicidade. No entanto, o acontecimento chega. Um querer que alcança “o ponto em que a guerra é travada contra a guerra, o ferimento, traçado vivo como a cicatriz de todas as feridas, a morte que retorna querida contra todas as mortes” (DELEUZE, 2003a, p. 152). E com esse querer vem a estranheza des-naturalizar a realidade idealizada. Só pode ser contada como singularidades, como fragmentos.

Não sabia mais como continuar aquela prosa com as coordenadoras, menos ainda agora, pondo-me a escrever. Escrever sem querer saber. Sentir a palavra desprendendo-se de sua representação. Ter nas mãos um papel, uma caneta e a imensidão tomando-me. Encher-me do vazio, sem pensar. Assumir uma responsabilidade sem saber por que nem para quê. Afinal, onde tudo isso vai dar? Não importa, é o que Beckett (1989), em seu livro, escreve; só se sabe que é preciso continuar:

Então vou continuar, é preciso dizer as palavras, enquanto houver, é preciso dizê-las, até que elas me encontrem, até que elas me digam, es-tranha pena, estranho pecado, é preciso continuar, talvez já tenho sido feito, talvez já tenham me dito, talvez já têm me levado até o limiar da minha história, diante da porta que se abre para a minha história, isso me surpreenderia, se ela se abrir, vai ser eu, vai ser o silêncio, ali onde estou, não sei, não saberei nunca, no silêncio não se sabe, é preciso con-tinuar, não posso concon-tinuar, vou continuar (BECKETT, 1989, p. 184-185).

Lembro que guardávamos o planejamento como quem guarda um mapa que nos levaria à descoberta de um tesouro: havia uma cópia no notebook, uma no pendrive, uma im-pressa, uma na caixa de mensagens do endereço eletrônico. Durante a viagem, ainda estudáva-mos o roteiro, verificando cada trajeto do itinerário e inspecionando os materiais: Power Point, livros, CDs, textos e atividades. Também preparávamos outros materiais, caso houvesse algum

(25)

imprevisto. Um medo que era experimentado quando sentia a tensão que poderia acontecer diante do imprevisto.

No entanto, o acontecimento chega trazendo consigo a estranheza. Um sabotador que elimina os significados, rompe com a objetividade das palavras, escurece a visibilidade. A estranheza está para a poesia, e não para a explicação. Ela afeta a potência do agir e do pensar, criando outros modos. Talvez isso aconteça por ser ela como a afecção17: tem-se uma ideia. Isso, todavia, não reduz essa estranheza, como nos exemplifica Deleuze (1978): apesar do fazer cindir a cera e de a argila endurecer, nada significa – são apenas ideias de affectio. Veem-se apenas a afecção da cera e a da argila e pode ter-se somente uma ideia delas: “Eu percebo efeitos. […] São ideias de mistura separadas das causas da mistura” (DELEUZE, 1978, p. 1).

Passageira e frágil, a estranheza chega provocando sensações, faz o corpo latejar, produzindo uma escuta confusa, sensorial, que perturba o pensamento com a força de um pro-blema, tomando-o para si. É quase impossível permanecer indiferente.

A estranheza rompe com as fronteiras estabelecidas entre o eu e do outro. É como se vida e morte se movimentassem no acontecimento, instaurando uma batalha. Morre-se e vive-se, sem, no entanto, suplantar-se; a morte não exerce poder sobre a vida: “São os organis-mos que morrem, não a vida” (DELEUZE, 1992, p. 183). Um desgarrar de velhos pensamentos, uma perda do sentimento de pertença. Um silêncio vivido num primeiro momento como um abandono refazendo-se ao longo desta escrita enquanto a imagem de alguém cansado que busca o sabor do suspiro se embebeda com o cheiro das cinzas como se quisesse ser engolido infini-tamente pelo sido. Chora, nem percebe esvaziar-se do resto. No ruído do lamento, libera as últimas chagas ainda tentando, desesperado, agarrar-se naquele seu último fôlego. Vela sua intimidade com um manto, banha-se no sal querendo nascer, morrendo ainda mais.

O acontecimento18 chega interrompendo a autobiografia, expondo o corpo, a sua nudez. Ali onde se é tocado e atravessado, “ali onde um espinho tocou a carne e onde uma

17 “No livro principal de Spinoza, que se chama Ética e está escrito em latim, encontramos duas palavras: ‘affectio’

e ‘affectus’. Alguns tradutores, muito estranhamente, traduzem-nas da mesma maneira. É uma catástrofe. Eles traduzem os dois termos, affectio e affectus, por afecção. Eu digo que é uma catástrofe porque quando um filósofo emprega duas palavras é que, por princípio, ele tem uma razão. Além disso, o francês fornece-nos facilmente as duas palavras que correspondem rigorosamente a affectio e a affectus, que são affection [afecção] para affectio e

affect [afeto] para affectus. Certos tradutores trocam affectio por afecção e affectus por sentimento. É melhor do

que traduzir os dois verbetes pela mesma palavra, mas eu não vejo necessidade de recorrer à palavra sentimento, já que o francês dispõe da palavra affect [afeto]. Assim, quando eu emprego a palavra afeto, ela se remete a affectus de Spinoza, e quando eu disser a palavra afecção, ela se remete a affectio” (DELEUZE, 1978).

18 O acontecimento, diz-nos Deleuze (2003a, p. 55): “ É um conjunto de singularidades, de pontos singulares que

caracterizam uma curva matemática, um estado de coisas físico, uma pessoa psicológica e moral. São pontos de retrocesso, de inflexão etc.; desfiladeiros, nós, núcleos, centros; pontos de fusão, de condensação, de ebulição etc.; pontos de choro e de alegria, de doença e de saúde, de esperança e de angústia, pontos sensíveis, como se diz. Tais singularidades não se confundem, entretanto, nem com a personalidade daquele que exprime em um discurso, nem

(26)

questão insiste em forma-de-ferida, ali é o lugar onde o ‘eu’ deve mergulhar e deixar-se des-manchar” (PESSANHA, 2009, p. 67), quebrar-se por dentro, opondo-se ao ordinário.

Ocupei-me com conjugar as diferenças. Um ir e vir sempre na mesmice. Cria-se uma ilusão de movimentos, de novidades, fazendo-se apenas um trabalho perverso consigo próprio, por não se adentrar em outra temporalidade. A certeza de ser a formação o centro das transfor-mações permaneceu inabalável, assim como a vontade de decifrar o outro, de aproximar-me para impor-lhe minhas verdades.

Talvez por isso o meu caminho (des)aprendendo sobre como se ensina, como se aprende seja longo. Voltei-me a querer entender os efeitos das formações a respeito do outro, não de mim mesma. Perdi os discursos e fiquei somente com as palavras, sem saber o que fazer. Preferi falar deles e não com eles; escrevi acerca deles e para eles. Nessa pergunta do outro, segui o mapa da cópia, mantendo-me ensimesmada.

Isso acontece pelo fato de, como dizem os antigos, ter perdido o fio da meada, incorpo-rando discursos que enquadram e formatam o pensamento, criam espacialidade, se delimitam. Uma obsessão, conta-nos Skliar (2003, p. 102), pela “falta de lugares, os não-lugares, a insis-tência em um aparente único espaço, a reunião ordenada daquilo que parece estar disperso, a negação de outros espaços que não sejam os mesmos, que não sejam a sistemática expansão do mesmo”. O autor adverte que é preciso “não esquecer a pergunta, refazer a pergunta, interrogar a pergunta, malferir a pergunta. Significa também não se acostumar com a nostalgia da mesmi-dade, não se deixar arrastar pela agonia do já não ser, nem arrastar o outro nessa agonia tão torpe e impiedosa” (SKLIAR, 2003, p.102).

São perguntas que não evocam nenhum modelo, não aspiram à verdade, mas mantêm sua dimensão estética.

Todavia, (des)aprender está mais próximo dos gestos. É um chamamento de si. Há uma ruptura entre a palavra e a língua – “o gesto é, na sua essência, sempre gesto de não se entender na linguagem [...] que indica, antes de tudo, algo que se coloca na boca para impedir a palavra” (AGAMBEN, 2008, p. 13-14). Um diálogo não dito, em que se joga, sentindo o efeito angusti-ante do vazio, em que se assume a responsabilidade de fazer algo sem nada saber.

com a individualidade de um estado de coisas designado por uma proposição, nem com a generalidade nem com a universalidade de um conceito significado pela figura ou a curva. A singularidade faz parte de uma outra di-mensão, diferente das dimensões da designação, da manifestação ou da significação. A singularidade é essencial-mente pré-individual, não pessoal, aconceitual. Ela é completaessencial-mente indiferente ao individual e ao coletivo, ao pessoal e ao impessoal, ao particular e ao geral – e às suas oposições”

(27)

Meu destino foi cortado. O formador, apartado da formação, sem me pertencer, percorria meu próprio caminho, sentindo-me testemunha da própria vida. Estar com os coorde-nadores era como se estivesse em um grande sertão, como nos conta Riobaldo: “Sertão – se diz –, o senhor querendo procurar, nunca não encontra” (ROSA, 1994, p. 542).

As horas e horas passadas por mim e por minha companheira, Adriana, elaborando, planejando cada detalhe, antecipando todo um suposto, treinando as possíveis respostas para dar a cada um. A cada pergunta, a vontade de poder dominar o “se”: “Se alguém falasse isso...”, “se alguém perguntasse aquilo...”, “se percebêssemos algo...”. Eram tantos “ses” fazendo-se vibrar: “O sertão é grande ocultado demais” (ROSA, 1994, p. 724). E o “se”, uma tentativa de mergulhar no vazio, de sentir ao mesmo tempo a nossa fragilidade: “Tudo o que já foi é o começo do que vai vir” (ROSA, 1994, p. 440). Por isso é “que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam” (ROSA, 1994, p. 25). É algo que se sabe de antemão, mesmo assim nunca está em nossas mãos.

Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada. [...] A gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do que em que primeiro se pensou (ROSA, 1994, p. 43).

Uma vida de aceitação manifestada pelo espírito camelo19 sobrecarregado de coisas pesadíssimas. O camelo, no entanto, ao trotar para o deserto, espaço vazio, apaga suas marcas enquanto trota, dissolve sua identidade. O caminhar é sua errância, sua traição. O caminho faz-se caminhando; faz do defaz-serto somente um suporte. O trotar desterritorializa, instaurando a solidão – o abandono de um território acerca da educação, do letramento, da formação.

Ítalo Calvino (1990), em seu livro “Seis propostas para o próximo milênio”, traz a leveza como um valor quando relata o efeito contido na obrigatoriedade de todo escritor ter de representar sua época: o peso dessa naturalização, como vemos a seguir.

19 Para Deleuze, o burro ou o camelo são animais do deserto que carregam fardos. Para o autor eles possuem dois

defeitos: o seu “não” é um falso não, um “não” do ressentimento. E, ainda mais, o seu “sim” [...] é um falso sim. Julga que afirmar significa carregar, assumir. O burro é, em primeiro lugar, um animal cristão: carrega o peso dos valores ditos “superiores à vida”. Depois da morte de Deus, carrega-se a si mesmo, carrega o peso dos valores “humanos”, pretende assumir “o real como ele é”: por conseguinte, ele é o novo Deus dos “homens superiores”. (DELEUZE, 1990b, p. 30).

(28)

Logo me dei conta de que entre os fatos da vida, que deviam ser minha matéria-prima, e um estilo que eu desejava, ágil, impetuoso, cortante, havia uma diferença que eu tinha cada vez mais dificuldade em superar. Talvez que só então estivesse descobrindo o pesadume, a inércia, a opa-cidade do mundo – qualidades que se aderem logo à escrita, quando não encontramos um meio de fugir a elas (CALVINO, 1990, p. 16).

Isso não significa recusar a realidade dos monstros, isso seria uma leviandade. É que o acontecimento é algo que se faz apesar do sujeito que o experimenta, impondo-lhe aven-turar-se consigo mesmo, sentindo as singularidades que se libertam sem controle. A experiência da fragilidade é vivida na clandestinidade. Um encontro inesperado com o outro: “Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros, e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu” (LISPECTOR, 1979, p. 20).

Na condição de andarilha, experimentei nas linhas formas de ser. Deslocamentos que me despregaram das marcas da individualidade, como acontece quando encontramos em nós o estranho, o que se vê pela primeira vez aquilo que já existia. Não foi a primeira vez que um participante discordou ou problematizou uma afirmação, mas foi a primeira vez que sim-plesmente ouvi e me recusei a lançar mão de um discurso pronto para justificar ou rebater um posicionamento contrário. Naquele dia, interceptada pelas palavras da coordenadora, vivi o atravessamento das forças pelo fracasso:

Ora, acontece que, queira ou não queira, eu existo nesta hora e neste lugar. Que fazer então com a minha vida? Por que não erguer meu pe-nacho, lançar um desafio meio desesperado a isso a que convenciona-mos chamar destino? A vida não tem sentido [...], mas vaconvenciona-mos fazer de conta que tem. E daí? Aí eu transformo a minha necessidade em fonte de libertação e passo a ser, eu mesmo, a minha existência, a minha ver-dade e a minha liberver-dade (CHAVES, 1981, p. 86).

A liberdade possibilita que algo aconteça, deslize, intensificando a curiosidade por indagar, experimentando perplexidades. Na linha desdobrada há uma desconcertante solidão entrelaçada com o porvir, como “Na terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa, sem querer

(29)

chegar lá nem ali: “A invenção de [...] permanecer naqueles espaços do rio de meio a meio”, nunca mais tocando “em chão nem capim” (ROSA, 1978, p. 28).

A estranheza é feita de fiapos, de não saberes impertinentes. Assim como os vaga-lumes não podem ser vistos na claridade dos grandes refletores, do mesmo modo a estranheza se evade diante dos convencimentos fabricados na linguagem para demarcar o lugar de cada um. Os não saberes contêm a potência do desconhecido, de luzes pulsantes, passageiras e dis-cretas movimentando-se na escuridão da noite, como lampejos do desejo.

Não saberes são visualidades. Eles desprezam o holofote das certezas contidas nos discursos acerca do letramento, especialmente aqueles responsáveis pela solidificação dessas certezas em uma única forma de vivê-las. Discursos valendo-se de uma luz cegante, de uma pedagogia moralizante:

Anunciamos os letramentos para os outros, mas nos refugiamos no po-der da nossa língua. Falamos do letramento para os outros, mas a expe-riência nos contradiz. E assim, letramento não é uma expeexpe-riência, mas uma trajetória de sentido único e de exigências para os outros. Falamos de letramento, mas não a fazemos para nós mesmos; não nos deixamos atravessar pela(s) outra(s) língua(s): atravessamos o outro com a nossa língua. Falamos do letramento, mas negamos a experiência vivida do outro com o seu letramento (SKLIAR, 2013, p. 8).

A estranheza é como luzes discretas passando diante de nós como uma miragem fugidia, discreta, frágil, lançando dúvida, suspensão, hesitação. É um dizer que se mostra como um gesto; desfaz-se enquanto tece o agora por viver o instante, permanece desinteressado, va-gabundeia pela noite à procura do nada – nada mais –, simplesmente o nada. A estranheza resiste ao mundo do terror, à pedagogização, à explicação para diminuir o outro, aos discursos que padronizam o processo do ensino e da aprendizagem. Ela desnaturaliza as engrenagens discursivas que escolarizam e normatizam o letramento. A estranheza desobedece à lingua-gem20 com sua luz pulsante, passageira e frágil. Ela não se dá a conhecer. Sobrevive, por meio

de um olhar atento, como vaga-lumes: “É preciso vê-los dançar vivos no meio da noite, ainda que essa noite seja varrida por alguns ferozes projetores. [...] É preciso cerca de cinco mil

20 Skliar (2014) afirma que a leitura e a escrita procedem de um certo tipo de desobediência da linguagem, uma

vez que se a linguagem não desobedecesse e se não fosse desobedecida não haveria filosofia, nem arte, nem amor, nem nada.

(30)

lumes para produzir uma luz equivalente à de uma única vela” (DIDI-HUBERMAN, 2001, p. 52).

A estranheza só é possível ser olhada na menor visualidade. “Pôr em foco visões de olhos fechados” (CALVINO, 1990, p. 108), deslocar-se, já que ela é anacrônica, assim como o faz o fotógrafo de Manoel de Barros (1997):

Difícil fotografar o silêncio. Entretanto tentei. Eu conto:

Madrugada, a minha aldeia estava morta. Não se via ou ouvia um baru-lho, ninguém passava entre as casas. Eu estava saindo de uma festa. Eram quase quatro da manhã. Lá o silêncio pela rua carregando um bê-bado. Preparei minha máquina.

O silêncio era um carregador? Estava carregando o bêbado. Fotografei esse carregador.

Tive outras visões naquela madrugada. Preparei minha máquina de novo. Tinha um perfume de jasmim no beiral do sobrado. Fotografei o perfume. Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra. Fotografei a existência dela.

Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo. Fotografei o perdão. Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa. Fotografei o so-bre.

Foi difícil fotografar o sobre. Por fim eu enxerguei a nuvem de calça. Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com Maia-kovski – seu criador. Fotografei a nuvem de calça e o poeta. Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa.

Mais justa para cobrir sua noiva. A foto saiu legal.

A estranheza é intermitente; do menor21, não governa nem é governável. Emerge diante do fracasso da familiarização, da filiação. Potencializa a batalha, sendo captada pela vontade que ela própria mobiliza em direção ao que não é familiar. Seu segredo não é decifrável.

Blanchot (2015) descreve o efeito da estranheza ouvindo Brecht e suas tentativas de retirar do teatro o espetaculoso, de romper com a lógica de achar natural fazer o espectador acreditar: no palco não há atores, há personagens; a encenação representa um acontecimento único, inexorável no qual o espectador deve identificar-se a tal ponto com as personagens que toma o acontecimento para si. Uma obediência catatônica deve produzir no espectador a crença

21 Kafka: por uma literatura menor (1977) é um texto no qual Deleuze e Guattari fazem uma inversão do conceito

(31)

da existência de um homem imutável, numa ordem eterna, em potências desmedidas, deixando-se de deixando-ser o próprio deixando-ser para tornar-deixando-se sombra ou herói daquelas personagens, agora ele mesmo.

Para impedir essa continuidade entre autor e espectador, Brecht põe um intervalo entre os diferentes elementos presentes no teatro: “Intervalo entre o autor e a ‘fábula’, entre a representação e o acontecimento, entre o ator e o personagem e, sobretudo, o maior intervalo entre o ator e o público, entre as duas metades do teatro” (BLANCHOT, 2014, p. 4). Intervalo denominado pedagogicamente como “V-Effekt, Verfremdungseffekt, o efeito de estranheza, ou ainda de desorientação” (BLANCHOT, 2014, p. 4).

Pela estranheza é possível manter o afastamento das coisas, sentindo-as como es-tranhas, “torná-las para nós sensíveis e sempre desconhecidas, a partir e por meio desse afasta-mento que acaba sendo o seu próprio espaço” (BLANCHOT, 2014). O que Brecht quer de fato é romper com as engrenagens do teatro tradicional por elas favorecerem a perda mágica de si mesmo por meio da técnica da simpatia.

Por isso, Brecht ignora o uso das máscaras, porque elas perturbam a simpatia, re-forçam a sugestão hipnótica, agem pela impassibilidade, além de influenciarem o não influen-ciável e para escapar dessa armadilha, Brecht considera haver uma boa e uma má estranheza:

A primeira é essa distância que a imagem coloca entre o objeto e nós, liberando-nos dele em sua presença, tornando-o disponível em sua au-sência, permitindo nomeá-lo, significá-lo, modificá-lo, grande poder ra-zoável, grande motor do progresso humano. Mas a segunda estranheza, à qual todas as artes são gratas, é o reverso da outra – aliás, sua origem –, quando a imagem não é mais o que permite manter o objeto ausente, mas o que nos mantém pela própria ausência ali onde a imagem, sempre à distância, sempre absolutamente próxima e absolutamente inacessí-vel, se subtrai a nós, abre-se sobre um espaço neutro onde não podemos mais agir e nos abre, a nós também, sobre uma espécie de neutralidade onde deixamos de ser nós mesmos e oscilamos entre Eu, Ele e ninguém (apud BLANCHOT, 2014, p. 5-6).

Para Blanchot (2014), a brincadeira de Brecht com o imaginário no teatro também é feita no mundo social, desorientando-o, lutando contra o fascínio do costume exercido sobre as pessoas, distanciando o espetáculo do espectador, exercendo uma vigília para este não se tornar ausência de ser. Antes insiste, interpelando-o, falando-lhe diretamente “pela simplicidade enigmática do canto e pela força ambígua da poesia” (BLANCHOT, 2014, p. 6), rompendo com o silêncio das palavras habituais; elas nada falam, entregando-nos a outra escuta.

(32)

Esse intervalo, essa distância descrita por Blanchot (2014) ao dialogar sobre a ação de Brecht, possibilita pensar o intervalo entre o falado e o ouvido, o ensinado e o aprendido, o professor e o aluno, o formador e o formando e também entre os discursos fortemente empre-gados na educação que são máscaras que revestem o letramento, distanciando-o da vida. Más-caras que aprisionam, normatizam, institucionalizam e naturalizam o que nada mais é que uma invenção.

A estranheza contém a potência da desterritorialização, da criação. Trata-se de uma manifestação que subverte a ordem naturalizadora do cotidiano e que cria o desassossego. No entanto, assim como os vaga-lumes não desaparecem, apenas se vão, da mesma maneira acon-teceu comigo. Já não estranhava as dúvidas das coordenadoras, não escutava o letramento em seus lábios, não via a novidade em suas mãos, não sentia seus alunos em nossos encontros.

Como no conto “A moça tecelã22”, de Marina Colasanti (in 1985), todo o meu

pró-prio feito era o meu tudo sabido por mim: “E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou como seria bom estar sozinha de novo”. Não teve nenhuma dúvida. “Segurou a lançadeira ao contrário, e, jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer o seu tecido”. Estranha-mente, “desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha”. E lá se encontrou, quando “se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela”. E, experimentando a estranheza como alguém que ouve a chegada do sol, “a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte”.

Pela estranheza, o pensamento faz-se inaugural, suspende a naturalização, rompe com o mundo da representação. Tive de engolir cada palavra da coordenadora, o coração ba-tendo, a respiração ofegante, e com isso assombrar o letramento, abalar o assimilado ao perce-ber que o planejado não evitara o imprevisto. Quebrar o ensino, dando-lhe a ver outras faces. Estilhaçar o aluno, restituindo-lhe seu mistério. Perceber que, por mais que tudo se veja, não se oculta o escondido; por mais que tudo se diga, não se cala o silêncio. Porque a estranheza está no mais e mais desapercebido.

Guardava em mim tudo o que não servia como um tesouro: uma necessidade de venerar as verdades inventadas por aqueles que anunciam o letramento para todos como se

22 A moça tecelã é conto de Marina Colassanti que narra a história de uma moça que passa o dia “tecendo” seus

sonhos para os tapetes. Ilustrado a partir de fotografias de peças bordadas pelas irmãs Dumont. In: COLASSANTI, Marina. A moça tecelã. São Paulo: Global, 2004.

(33)

construísse com base nelas a minha própria imagem, petrificando-as pelos discursos. Palavras devolvidas a mim que se tornaram a salvação da formadora impossível.

A estranheza suspendeu a explicação e devolveu-me o laço comum: deixar-me. Heidegger (in INWOOD, 1999, p. 35) descreve o verbo como formado por diversos compostos: auslassen, excluir, dar vazão, soltar, deixar ir, (sich) einlassen (auf/mit); deixar entrar, admitir; envolver-se em/com algo/alguém; verlassen (abandonar). Ela também pode ser usada como modo auxiliar, em contextos como: mandar fazer algo, deixar alguém saber, ela não pode ser persuadida, a janela não pode ser aberta, vamos indo, ou deixar ver algo como algo, deixar algo ser.

A vida será outra? Páginas rasgadas, Jogadas na lixeira,

Rascunhadas. E por que não?

Páginas aves, Páginas nuvens, Páginas borradas. E outra vez... Páginas outras, Brincantes, Inventadas. Ou mais uma vez?

Silenciadas, Amarradas, Amarguradas, Assujeitadas. Sinceramente? Não sei. O que importa Isso a mim ou a ti,

Ou ao outro?! Minha companhia

É a estranheza, O assombro.

Referências

Documentos relacionados

(grifos nossos). b) Em observância ao princípio da impessoalidade, a Administração não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, vez que é

devidamente assinadas, não sendo aceito, em hipótese alguma, inscrições após o Congresso Técnico; b) os atestados médicos dos alunos participantes; c) uma lista geral

Resumo: A fim de ultrapassarmos os conhecimentos até então restritos à articulação de orações e com o objetivo de conhecer a estrutura retórica das construções de por exemplo,

Para a análise de dados optou-se por utilizar a escala de Likert nos questionários para medir o grau de inovação das empresas, sendo que: a pontuação 1,0 é

Realizar a manipulação, o armazenamento e o processamento dessa massa enorme de dados utilizando os bancos de dados relacionais se mostrou ineficiente, pois o

The case studies show different levels of problems regarding the conditions of the job profile of trainers in adult education, the academic curriculum for preparing an adult

2 - OBJETIVOS O objetivo geral deste trabalho é avaliar o tratamento biológico anaeróbio de substrato sintético contendo feno!, sob condições mesofilicas, em um Reator

7.&#34; Uma outra doença que como já disse, pode confundir-se também com a siringomielia, é a esclerose lateral amiotró- flea; mas n'esta doença, além de ela ter uma evolução