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O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E AS NOVAS PERSPECTIVAS

Aos poucos o sistema processual brasileiro foi se tornando mais flexível, principalmente com o advento do Estado Democrático de Direito. São inegáveis as mudanças de perspectivas em relação às normas, aos princípios e aos valores no ordenamento jurídico pátrio. Ampliou-se a proteção jurídica, adotando-se uma interpretação menos formalista da lei, de forma a contemplar as suas finalidades sociais, no objetivo de se obter a solução mais justa possível.

A flexibilidade do processo civil brasileiro conferiu maiores poderes ao magistrado para a aplicação de suas normas. Os dispositivos legais deixaram de ser compreendidos isoladamente para se conformarem em conjunto com outros, principalmente com os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal. Desse modo, o magistrado passou a ter um papel mais atuante no processo, encerrando a estereotipada visão de mero aplicador da lei. Quanto a esse ponto, Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco afirmam que:

Todavia, diante da colocação publicista do processo, não é mais possível manter o juiz como mero espectador da batalha judicial. Afirmada a autonomia do direito processual e enquadrado como ramo do direito público, e verificada a sua finalidade preponderantemente sociopolítica, a função jurisdicional evidencia-se como um poder-dever do Estado, em torno do qual se reúnem os interesses dos particulares e os do próprio Estado. Assim, a partir do último quartel do século XIX, os poderes do juiz foram paulatinamente aumentados: passando de espectador inerte à posição ativa, coube-lhe não só impulsionar o andamento da causa, mas também determinar provas, conhecer ex officio de circunstâncias que até então dependiam da alegação das partes, dialogar com elas, reprimir-lhes eventuais condutas irregulares etc.118

O Estado Democrático de Direito provocou também a constitucionalização do processo e, os princípios da proporcionalidade, razoabilidade e dignidade da pessoa humana passaram a ter maior relevância diante da predominância dos rigorosos formalismos processuais. Por conseguinte, os processualistas começaram a se preocupar com novas questões, quais sejam, o acesso à justiça, o processo justo e a efetividade da prestação da tutela jurisdicional.

Sob esse viés, o Código de Processo Civil de 2015 consagra esses valores éticos e morais oriundos da influência das premissas preconizadas pelo Estado Democrático de Direito e positivadas pela Magna Carta. Como resultado, o Capítulo I do CPC estabelece normas que refletem tais preceitos constitucionais, assegurando no primeiro artigo119, a preponderância da Constituição Federal de 1988 na disciplina e interpretação de suas normas processuais.

Portanto, o vigente Código de Processo Civil procurou conciliar os seus dispositivos à atual conjuntura do direito contemporâneo. As normas processuais passaram a garantir uma justiça mais aberta e atenta aos direitos fundamentais, impondo a utilização dos critérios de razoabilidade e proporcionalidade e, sobrelevando os princípios da dignidade da pessoa humana e do acesso à justiça, com a finalidade precípua de melhor garantir a prestação jurisdicional. Enfim, houve uma redemocratização do processo.

Sobre esse tema, Humberto Theodoro Júnior discorre:

Por fim, chegou o processo ao século XXI inspirado nos novos desígnios do Estado Democrático de Direito,aperfeiçoado no pós-segunda guerra mundial, cujos traços mais significativos se situam na constitucionalização de toda a ordem jurídica, e mais profundamente da atividade estatal voltada para a tutela jurisdicional. Nessa altura, o devido processo legal ultrapassa a técnica de compor os litígios mediante observância apenas das regras procedimentais, para assumir pesados compromissos éticos com resultados justos. O direito, sob influência das garantias fundamentais traçadas pela Constituição, incorpora valores éticos, cuja atuação se faz sentir não apenas na

118 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pellegrini. DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria

geral do processo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 73.

119 Art. 1o. O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas

fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código.

observância de regras procedimentais, mas também sobre o resultado substancial do provimento com que a jurisdição põe fim ao litígio. Daí falar-se, no século atual, em garantia de um processo justo, de preferência a um devido processo legal apenas. Mesmo no plano de aplicação das regras do direito material, o juiz não pode limitar- se a uma exegese fria das leis vigentes. Tem de interpretá-las e aplicá-las, no processo, de modo a conferir-lhes o sentido justo, segundo o influxo dos princípios e regras maiores retratados na Constituição.120 (grifos do autor)

Isto posto, o formalismo excessivo passou a ser compreendido como um grande entrave à efetividade da prestação da tutela jurisdicional e, consequentemente, a instrumentalidade do processo tornou-se bem mais relevante, uma vez que se preocupa mais com a realização de direitos do que com meras exigências formais (sendo estas as que não implicam em prejuízo ao processo). A instrumentalidade flexibiliza a atuação do juiz, tornando-o mais influente e disposto a promover a resolução dos conflitos sociais.

A defesa de um tratamento jurídico igualitário é ainda um dos grandes ideais propostos pelo Estado Democrático de Direito, que almejava atingir a amplitude da justiça, ou melhor, uma justiça para todos, principalmente para aqueles socialmente mais vulneráveis. A hipossuficiência social e econômica é característica dos sujeitos que mais são prejudicados em relação ao acesso à justiça.

À vista disso, durante esse período foi levantado o lema aristotélico de “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades”, com o propósito de melhor garantir a justiça, sobretudo, para os que mais necessitam dela. Tal entendimento não ofende o princípio da imparcialidade do magistrado, apenas visou alargar a proteção jurídica para parcela da sociedade carente de oportunidades sociais e econômicas.

Os princípios da igualdade e do acesso à justiça não podem estar dissociados, pois um é fundamento do outro; pensá-los de forma isolada é cogitar um processo injusto e sem igualdade de condições para as partes. Por isso, um bom magistrado deve estar atento a essas questões, no sentido de facilitar o acesso à justiça mediante um processo no qual se preocupa em aniquilar as desigualdades que possivelmente venham a existir, promovendo assim, a igualdade material das partes. Nas palavras de Daniel Mitidiero, Ingo Wolfgang Sarlet e Luiz Guilherme Marinoni:

[...] O processo só pode ser considerado justo se as partes dispõem das mesmas

oportunidades e dos mesmos meios para dele participar. Vale dizer: se dispõem das mesmas armas. Trata-se de exigência que obviamente se projeta sobre o legislador e

sobre o juiz: há dever de estruturação e condução do processo de acordo com o direito

120 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: teoria geral do direito processual civil,

à igualdade e à paridade de armas. Como facilmente se percebe, a igualdade, e a paridade de armas nela implicada, constitui pressuposto para efetiva participação das partes no processo e, portanto, é requisito básico para a plena realização do direito ao

contraditório.121 (grifos dos autores)

Observa-se ainda, que, em geral, nas hipóteses de mitigação ao princípio da congruência é nítida a intenção do magistrado em promover a igualdade pelo processo nos casos de vulnerabilidade social, econômica e jurídica da parte, pois, na grande maioria das vezes, por conta dessas condições, o indivíduo não tem um acesso adequado e satisfatório ao judiciário, seja pela desinformação que o acomete (em razão de suas carências educacionais) ou mesmo pela falta de recursos para contratar um advogado técnico e bem capacitado para proteger os seus direitos.122

Contudo, é de se questionar se, em nome da igualdade e de um acesso à justiça digno, o juiz não pode conceder bem diverso ou algo a mais do que foi requerido, ao constatar pelos autos que determinado sujeito teria direito a uma dessas concessões, mesmo que este não tenha formulado expressamente a sua pretensão nesse sentido, respeitando-se, entretanto, o princípio do contraditório. Nessa lógica, os aludidos autores consideram que:

A tutela jurisdicional tem de ser efetiva. Trata-se de imposição que respeita aos próprios fundamentos do Estado Constitucional, já que é facílimo perceber que a força normativa do direito fica obviamente combalida quando esse carece de atuabilidade. Não por acaso a efetividade compõe o princípio da segurança jurídica – um ordenamento jurídico só é seguro se há confiança na realização do direito que se

conhece.123 (grifos dos autores)

Por isso, defende-se a mitigação do princípio da congruência em prol da busca de uma tutela jurisdicional igualitária, justa, adequada e satisfatória para todos, uma vez que permite ao magistrado encontrar soluções capazes de promover a igualdade e a efetividade da justiça, principalmente para reconhecer os direitos daqueles que mais necessitam e, que, na maioria das vezes, não lhes são devidamente garantidos.

121 MITIDIERO, Daniel; SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Direito

Constitucional. 2ª.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 724-725.

122 OLIVEIRA, Vallisney de Souza. Nulidade da sentença e o princípio da congruência. São Paulo: Saraiva, 2004,

p. 96.

123 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil:

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