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2 REVISÃO DE LITERATURA

2.2 Legislação urbanística brasileira: algumas considerações

2.2.1 O Estatuto da Cidade

Basicamente os municípios brasileiros têm seu território ocupado em desacordo com a legislação urbanística. Não existe uma consciência coletiva ambientalista que se preocupe com as ocupações desordenadas que geram a deterioração do meio ambiente. Assim, loteamentos clandestinos ou em área de proteção aos mananciais, favelas, condomínios em áreas rurais e invasões de terras são uma constante no cenário surreal da ordem legal urbana. Notadamente, é muito grande a defasagem entre o modelo adotado pela legislação urbanística e a vida da cidade real. A tônica do uso do solo e das construções nas cidades é a irregularidade.

Refletir hoje sobre a prática do Planejamento urbano no Brasil e mais especificamente sobre a elaboração de Planos Diretores de acordo com o Estatuto da Cidade é, em primeiro lugar, constatar que existem muito mais dúvidas do que elementos fortes para balizarem a atuação de técnicos, administradores municipais e lideranças comunitárias; elementos importantes emergem, sem a correspondente existência de um elenco de experiências que possa balizar este novo tipo de planejamento. As dúvidas estão em: como tornar esse planejamento participativo? Como definir a cidade ideal? É possível esta definição? Como tirar do papel os conceitos e diretrizes traçadas para uma cidade?

A aprovação da Lei 10.257 (BRASIL – ESTATUTO DA CIDADE, 2001) vem regulamentar disposições criadas na Constituição de 1988 que inseriu, pela primeira vez em nossa história, um capítulo sobre reforma urbana no texto constitucional.

De acordo com Fernandes (2002), a nova lei, com certeza, veio para dar suporte jurídico ainda mais consistente às estratégias e aos processos de planejamento urbano. E sobre tudo à ação daqueles governos municipais que se têm empenhado no enfrentamento das graves questões urbanas, sociais e ambientais que têm diretamente afetado a vida da enorme parcela – 82% da população total – de brasileiros que vivem em cidade. De fato, se a Constituição de 1988 já tinha afirmado o papel fundamental dos municípios na formulação de diretrizes de planejamento urbano e na condução do processo de gestão das cidades, o Estatuto da Cidade não só consolidou esse espaço da competência jurídica e da ação política municipal, como também o ampliou sobremaneira.

O art. 2º da lei dispõe que

a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: I - garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações.

Assim, pela dimensão de suas disposições norteadoras, o Estatuto da Cidade adquiriu o status de ser o novo marco institucional na trajetória da tão apregoada reforma urbana, porque se preocupa com ''o pleno desenvolvimento das funções sociais das cidades'' e ''garante o direito a cidades sustentáveis''. Em vários artigos e parágrafos esse direito é especificado, se propondo a ordenar e controlar o uso do solo de forma a evitar a deterioração das áreas urbanizadas, a poluição e a degradação ambiental. Segundo Rolnick (2003, p. 192):

Pela primeira vez em nossa história, temos uma regulação federal para a política urbana que se pratica no país, definindo uma concepção de intervenção no território que se afasta da ficção tecnocrática dos velhos Planos Diretores de Desenvolvimento Integrado, que tudo prometiam (e nenhum instrumento possuíam para induzir a implementação do modelo idealizado proposto!). De acordo com as diretrizes expressas no Estatuto, os Planos Diretores devem contar necessariamente com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos econômicos e sociais, não apenas durante o processo de elaboração e votação, mas, sobretudo, na implementação e gestão das decisões do Plano. Assim, mais do que um documento técnico, normalmente hermético ou genérico, distante dos conflitos reais que caracterizam a cidade, o Plano é um espaço de debate dos cidadãos e de definição de opções, conscientes e negociadas, por uma estratégia de intervenção no território. Não se trata aqui da tradicional fase de ‘consultas’ que os planos diretores costumam fazer – a seus interlocutores preferenciais, ‘clientes’ dos planos e leis de zoneamento, que dominam sua linguagem e simbolização. O desafio lançado pelo Estatuto incorpora o que existe de mais

vivo e vibrante no desenvolvimento de nossa democracia – a participação direta (e universal) dos cidadãos nos processos decisórios. Audiências públicas, plebiscitos, referendos, além da obrigatoriedade de implementação de orçamentos participativos são assim mencionados como instrumentos que os municípios devem utilizar para ouvir, diretamente, os cidadãos em momentos de tomada de decisão sobre sua intervenção sobre o território.

O “Estatuto da Cidade” então pode ser considerado um instrumento que veio consolidar a função social da cidade e da propriedade no processo de construção das mesmas. Este instrumento fortalece a necessidade de um planejamento sistemático e integrado, construído a partir de um modelo mais participativo de gestão urbana.

O planejamento urbano resultante da implantação do Estatuto da Cidade não pode ser confundido com o urbanismo que até então se praticava mudando apenas de um tecnocratismo de direita para um tecnocratismo de esquerda, como sugere Marcelo Lopes de Souza (2003).

O planejamento urbano proposto pelo Estatuto da Cidade pressupõe o reconhecimento de conflitos próprios das cidades capitalistas. Quando a metodologia de elaboração de Planos Diretores, apresentado pelo Ministério das Cidades (BRASIL, 2005), propõe uma etapa denominada “estabelecimento de pactos” (público x privado), assume que os diferentes grupos que compõem o espaço urbano têm objetivos não apenas diferentes, mas visivelmente conflitantes.

Estabelecer um pacto social de forma a construir uma cidade mais inclusiva, significa abdicar de certas solicitações; como muitas dessas solicitações foram por muito tempo satisfeitas de forma quase que irrestrita por certos grupos hegemônicos, a constituição de fóruns participativos, socialmente equilibrados, é condição sine qua non para esta nova realidade. O Estatuto da Cidade é condição necessária, mas não suficiente para a construção deste novo tipo de planejamento; o poder público municipal tem papel preponderante na condução do processo: não é suficiente convencê-lo sobre a importância da participação; é preciso convertê-lo ao processo participativo.

2.2.1.1 Os instrumentos do Estatuto da Cidade

O Estatuto da Cidade não só regulamentou os instrumentos urbanísticos pela Constituição de 1988, como também criou outros. São instrumentos que podem e devem ser utilizados pelos municípios de forma combinada, de maneira a promover não apenas a regulação normativa dos processos de uso, desenvolvimento e ocupação do solo urbano, mas especialmente para induzir ativamente os rumos de tais processos, podendo dessa forma interferir diretamente com o padrão e a dinâmica dos mercados imobiliários.

De fato, a combinação entre os instrumentos regulatórios tradicionais do planejamento urbano [...] com os novos instrumentos indutores regulamentados pelo Estatuto da Cidade [...] abriu todo um novo e amplo leque de possibilidades para a ação dos municípios na construção de uma nova ordem urbana economicamente mais eficiente e politicamente mais justa e sensível às questões sociais e ambientais das cidades (FERNANDES, 2002, p. 31).