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3. POLÍTICA URBANA VIGENTE: AVANÇOS E DESAFIOS

3.2 O Estatuto da Cidade

O Estatuto da Cidade, que regulamentou e expandiu os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, demorou mais de dez anos para ser aprovado e introduziu “normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como, do equilíbrio ambiental”. (Art. 1°, parágrafo único, Estatuto da Cidade).

O Estatuto da Cidade estabelece, em seu artigo 2o, diretrizes para ordenar o pleno desenvolvimento da função social da cidade e da propriedade urbana. Para efeito analítico, estas diretrizes serão agrupadas em três princípios aqui considerados, estruturais para a Política Urbana: Justiça Social, Planejamento Urbano e Ambiental, Gestão Urbana Democrática.

Justiça Social para efeito deste trabalho é aquela que busca promover igualdade nas condições materiais e imateriais da vida urbana para o conjunto da sociedade. É verdade que,

num sistema capitalista que divide a sociedade entre os que detêm e os que não detêm os meios de produção e, exatamente por isso, é desigual na essência, melhor seria dizer que a igualdade que se busca é a igualdade possível, ou seja, uma igualdade relativa, considerando- se o contexto em que a própria justiça se insere. Com este princípio, no Estatuto da Cidade identificam-se diretrizes que tratam da necessidade de corrigir a imensa dívida social com a população pobre por meio da regularização fundiária e da urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda. Enquadram-se também as diretrizes que tratam da garantia do direito a cidades sustentáveis para presentes e futuras gerações, entendido como direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao trabalho, ao lazer e à oferta equilibrada de equipamentos, transporte e serviços públicos. Incluem-se ainda as diretrizes que tratam da justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização, da necessidade de evitar a retenção especulativa de imóvel urbano, bem como da recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos.

O princípio do Planejamento Urbano e Ambiental é aqui entendido como um conjunto de competências capazes de orientar o desenvolvimento urbano, visando alcançar maior equilíbrio e respeito social, cultural, ambiental e econômico, assim como equidade, pelo conjunto da sociedade, nas formas de apropriação do espaço socialmente construído. Neste tema agrupam-se no Estatuto da Cidade diretrizes que tratam do uso e da ocupação equilibrada e sustentável do território do município, da necessidade de proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico, assim como da importância de observar a complementaridade das atividades urbanas e rurais tendo em vista o desenvolvimento socioeconômico do Município e do território sob sua área de influência.

O princípio da Gestão Urbana Democrática se fundamenta no princípio constitucional de que “todo poder emana do povo”. Assim, reafirma-se a democracia determinando-se ampla participação popular no planejamento e na gestão das cidades, abrindo espaço para a politização do processo decisório e para a garantia de defesa dos interesses sociais e direitos coletivos, valorizando a solidariedade e a transparência nos processos que interferem nos interesses da coletividade. O Estatuto da Cidade neste tema abre ênfase à democracia participativa na formulação, execução e acompanhamento da ação pública no campo do desenvolvimento urbano. Incluem-se as diretrizes que tratam da desafiadora tarefa de cooperação entre os governos, a iniciativa privada e dos demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social. O Estatuto concede especial

tratamento à gestão democrática das cidades, instituindo a obrigatoriedade dos debates públicos na elaboração do Plano Diretor, incorrendo em improbidade administrativa o agente público que assim não proceder. Da mesma forma, institui a prática de debates, audiências e consultas públicas sobre as propostas do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual, como condição obrigatória para sua aprovação pela Câmara Municipal.

De acordo com o Estatuto da Cidade, o Plano Diretor Municipal é o principal instrumento da política de desenvolvimento urbano:

Art. 39. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às

exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor,

assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2o desta Lei.

Art. 40. O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da

política de desenvolvimento e expansão urbana.

§ 1o. O plano diretor é parte integrante do processo de planejamento municipal, devendo o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual incorporar as diretrizes e as prioridades nele contidas.

§ 2º. O plano Diretor deverá englobar o território do município como um todo § 3º. A lei que instituir o Plano Diretor deverá ser revista, pelo menos, a cada 10 anos.

§ 4º. No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização de sua implementação, os poderes legislativo e executivo municipais garantirão:

I – a promoção de audiências públicas, debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade;

II – publicidade quanto aos documentos e informações produzidos

III – o acesso de qualquer interessado aos documentos e informações produzidos. (BRASIL, 2002/2001, grifo nosso).

Extensa bibliografia questiona a eficácia dos Planos Diretores16 e já se constatou o aumento da informalidade na ocupação urbana no período caracterizado pela vigência dos

16 Ver, entre outros: VILLAÇA, Flávio. As ilusões do Plano Diretor. Disponível em:

http://www.revistas.usp.br/posfau/article/viewFile/43479/47101, edição do autor, agosto 2005. Acesso em 09 de Março de 2015; MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativa para a crise urbana. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001; _____________ As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias. Planejamento Urbano no Brasil. In: ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia, A Cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.; FERNANDES, Edésio. Reforma Urbana e Reforma Jurídica no Brasil: duas questões para reflexão. In: COSTA, Geraldo Magela; MENDONÇA, Jupira (Org.). Planejamento Urbano

planos tecnocráticos que orientavam o crescimento e ordenamento da cidade formal mas não incluíam os pobres no planejamento das cidades.

É verdade que a proposta de Plano Diretor a que o Estatuto da Cidade se refere abandona o campo da tecnocracia para se constituir como instrumento político de inclusão socioespacial para o desenvolvimento urbano sustentável, por meio da efetiva e qualificada participação social no processo de sua elaboração. Afirma Fernandes (2008, p.128) que o Plano Diretor é “elemento constitutivo do próprio direito de propriedade”, pois é o Plano que define o que é o direito de propriedade na ordem jurídica brasileira. No entanto, a concretização desta tarefa na esfera municipal traz ainda muitos desafios, conforme veremos mais detalhadamente neste trabalho.

Além de conceituar a função social da propriedade e da cidade e tratar de outros princípios da política urbana, o Estatuto também define instrumentos que poderão dar materialidade a essa política; institui processos e mecanismos para a gestão urbana, consórcios, parcerias público-privadas; e, por fim, estabelece normas para a regularização de assentamentos precários.

O Estatuto reforça o protagonismo do município na condução da política urbana, seguindo tendência descentralizadora e municipalista que se firmou no país em oposição ao centralismo autoritário da política urbana do governo militar. É nas cidades que as bases para aplicação da função social da propriedade e da cidade serão estabelecidas, assim como é também nas cidades que serão identificados os territórios passíveis das sanções previstas no Estatuto. É ainda nesse campo que as disputas sociais e as correlações de força nos processos participativos deverão ocorrer e onde as parcerias público-privadas poderão ser desenhadas e implementadas.

O protagonismo do município no campo da política urbana e o papel da União constituem ponto central para avaliação dos eventuais avanços ou retrocessos da Política Urbana vigente e serão examinados ao longo deste trabalho. Maricato (2010, p. 6) lembra que as cidades brasileiras têm características muito diferenciadas e a aplicação de uma regra geral definida pelo nível federal, apresentará resultados variáveis dependentes da correlação de forças local. É necessário aprofundar o debate neste ponto. A aplicação do Estatuto pelas diferentes categorias de municípios brasileiros, considerando a diversidade de suas características populacionais, institucionais, sociais, culturais, econômicas e políticas, expõe muitas outras fragilidades do modelo de federalismo e da cultura clientelista consolidadas no

Brasil, interferindo na efetividade da política urbana proposta pelos marcos legais vigentes. Tais fragilidades reforçam a necessidade da presença efetiva da União na construção da política nacional, na elaboração de normais gerais, no processo de indução, nas ações de capacitação e apoio aos municípios.

A Constituição Federal de 1988 atribuiu a competência legislativa sobre o direito urbanístico de forma concorrente entre a União, os Estados e o Distrito Federal (art. 24, I).

Atribuiu à União a competência para “elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social” (art. 21, IX), bem como para “instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento e transporte urbano” (art. 21, XX).

Aos Municípios coube a responsabilidade de “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano” (art. 30, II) e para suplementar a legislação federal e estadual no que couber (art. 30, VIII), ou seja, no âmbito da execução da política urbana.

O Estatuto da Cidade, ao regulamentar a Constituição Federal de 1988, delegou à União:

Art. 3° Compete à União, entre outras atribuições de interesse da política urbana: I – legislar sobre normas gerais de direito urbanístico;

II – legislar sobre normas para a cooperação entre a União, os Estados, o

Distrito Federal e os Municípios em relação à política urbana, tendo em vista o

equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional;

III – promover, por iniciativa própria e em conjunto com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, programas de construção de moradias e a melhoria das

condições habitacionais e de saneamento básico;

IV – instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos;

V – elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território

e de desenvolvimento econômico e social. (BRASIL, 2002/2001, grifo nosso).

É, portanto, indiscutível a competência expressamente delegada à União para o estabelecimento de normas gerais da Política Urbana, bem como, para a elaboração de planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento socioeconômico. Tal delegação deve ser interpretada como o reconhecimento da necessidade de estratégias nacionais que orientem e subsidiem a elaboração de planos municipais, e, indiretamente, a definição da função social da propriedade, posto que a atribuição expressa para sua elaboração ficou a cargo dos Municípios.

O papel da União neste campo é essencial. Não se trata de assumir o protagonismo ou impor parâmetros aos municípios para definição da função social da propriedade. Essa, de fato, é uma tarefa que, corretamente, deve ser produto de um pacto resultante da correlação de forças existente em cada sociedade urbana, nos seus respectivos territórios.

Para a União, cabe assumir a responsabilidade de induzir, efetivamente, a aplicação dos mecanismos previstos no Estatuto da Cidade. Trata-se de normatizar conceitos, trazendo para o campo federal embates que, por sua natureza, sabidamente não avançam nas arenas locais. Trata-se também de assumir os pressupostos da Política Urbana consolidados no Estatuto da Cidade como condicionantes de suas demais políticas, programas e repasses de recursos financeiros, tratando-os como pré-requisito intrínseco e definidor do cumprimento das obrigações legais dos municípios, assim como ocorre, por exemplo, com os requisitos da Política Ambiental que também travou longa luta para prevalecer sobre interesses econômicos e individuais no Brasil. A partir daí, e nesta ordem, é necessário reconhecer a diversidade regional, institucional, cultural dos municípios, estabelecendo políticas para apoiá-los nesta tarefa.

A política de preservação e proteção ao meio ambiente também instituída pela Constituição Federal de 1988 está totalmente assimilada na cultura brasileira. Mesmo que permaneçam reiteradas tentativas de retrocessos e infrações cometidas por diversos segmentos sociais e, ainda que haja limites à aplicação dos seus instrumentos17, não há discussão de mérito, ao contrário, há aceitação social generalizada quanto à relevância de suas imposições. Nada mais fez a lei ambiental do que impor restrições ao direito de propriedade em função do interesse coletivo. Dentro de um arcabouço institucional adequado e do reconhecimento de tais restrições pelo Poder Judiciário, o Brasil assimilou completamente esta limitação ao direito de propriedade. É evidente que a questão ambiental esteve e está inserida em um contexto político, social e cultural diferenciado, constituindo-se quase em um dogma que mobilizou a população mundial, foi incorporada pelas agências de cooperação multilaterais, pelos órgãos financiadores de políticas públicas, construindo todo o arcabouço necessário para sua institucionalização em escala mundial. Não há o mesmo apelo, o mesmo contexto para fortalecer as restrições impostas pela Política Urbana. Diferentemente dos aspectos ambientais, as pessoas não se sentem implicadas no processo perverso de urbanização, e como

17 A legislação que rege o licenciamento ambiental prevê a implantação de medidas mitigadoras de impacto

ambiental decorrentes da implantação dos empreendimentos, e na sua impossibilidade, a adoção de medidas compensatórias, mas não prevê a alternativa de proibir a sua implantação. Claro que indiretamente as medidas mitigadoras e compensatórias estabelecidas podem acabar inviabilizando economicamente o empreendimento, mas, não se trata de via objetiva de direito e acaba sendo objeto de judicialização.

consequência, não percebem a ligação direta que existe entre o modelo excludente e depredador de urbanização com a piora da qualidade de vida nas cidades, mesmo sendo grande parte da sociedade, de uma forma ou de outra, atingida pelo aumento da violência, das enchentes e escorregamentos, dos engarrafamentos e da poluição.

Há ainda outro aspecto importante que precisa ser considerado na construção da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano e na definição do papel da União. Segundo as definições do Estatuto da Cidade, a obrigação de elaborar o plano diretor, cujo conteúdo é a base para as definições sobre a função social não alcançam todos os municípios brasileiros, na medida em que o Estatuto, em seu artigo 41, determina a obrigatoriedade de sua elaboração apenas para determinados municípios.

Art. 41. O plano diretor é obrigatório para cidades: I - com mais de vinte mil habitantes

II – integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas

III – onde o poder público municipal pretenda utilizar os instrumentos previstos no § 4º do art. 182 da Constituição Federal

IV – integrantes de áreas de especial interesse turístico

V - inseridas em áreas de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional. (BRASIL, 2002/2001).

A obrigatoriedade de elaborar o Plano Diretor atinge cerca de 30% dos 5.561 municípios brasileiros. Muito embora esses municípios concentrem cerca de 75% da população urbana do país, os outros quase 4 mil municípios, entes federados com a mesma hierarquia, estão, de certa forma excluídos das premissas, dos marcos normativos e do processo de construção da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano preconizada para o país.

Veremos, ao longo deste trabalho, como foram tratadas essas questões pela União em suas políticas oficiais.

3.3 Ação Governamental frente aos princípios da Política Urbana pós Constituição da