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6.1.2– O ESTIGMA DE SER “DIFERENTE” E A PERMISSIVIDADE ALIMENTAR

Colocando outro ponto em evidência dentro do contexto de significado do ato de comer, pôde-se constatar que a forma de tratamento interativo entre pais e filhos também é repetida tanto no aspecto coletivo quanto social.

Ainda na família Flores, Regina identificou que trata Osvaldo (9 anos) como o seu pai a tratava: um bebê. A questão quanto à forma de tratamento para com Osvaldo faz com que Regina se reporte à forma de relacionamento entre ela e, principalmente, o seu pai para explicar o porquê que ela ainda trata e vê Osvaldo como um bebê.

“Eu não sei se tem relação, mas acho que é porque ele é pequeno, ele é fofinho, porque ele é caçula... Porque eu também fui bebezão por muito tempo, todo mundo paparicava, porque eu era temporona, tinha muita gente pra cuidar... eu fui dar banho no Osvaldo e ele me pediu colo aí eu: “ai Osvaldo, tu não é mais bebê, eu não consigo mais te pegar no colo”, aí ele:

“dá um colinho”. Ainda fui tentar pegar ele como neném e não dá mais porque ele não é mais neném... Acho que é assim, ele é o último filho e acho que no último filho tu acaba sempre estendendo mais um pouco a infância, independente de ser deficiente ou não, tu sempre estende mais porque ele é o último. Acho que tem a ver com meu pai. De certa maneira, era muito

protetor. Sempre passou a mão na cabeça, nunca foi rígido, autoritário, sempre foi maleável”.

Este comportamento também é repetido por Bárbara. Ela também trata o irmão como uma criança menor do que ele é. “Como uma criança menor”.

Durante a realização da minha prática assistencial, Regina contou que muitas vezes utiliza alimentos para acalmar Osvaldo. Sua mãe (avó de Osvaldo) também o faz com muita freqüência. Geralmente ao buscá-lo na escola, a avó sempre leva um dos seus alimentos preferidos: pão de queijo. “Ah, se deixar ela vai todo dia, né? Daí

eu digo: MÃE! Mas ela diz: “ele vem mais quieto”. Porque antes eles [seus pais] não

conseguiam trazer, mas “ah, tem pão de queijo no carro”. Então, quando é a mãe que vai buscar, daí eu já evito de dar janta porque já sei que ele vem comendo”...

Na família Buscapé, também há a proteção para com Ester (8 anos). Suelen disse que faz uma compensação alimentar, liberando o que Ester quer comer, pelo fato dela ter Síndrome de Down. Seu marido também o faz, de forma mais intensa que ela. Porém, em seu discurso, Suelen deixa transparecer um pouquinho de sentimento de “pena”, que muitas vezes esconde o verdadeiro: a culpa. “Às vezes a gente dá um [sorvete] no final de semana, vai compra um picolé lá no Genésio, ou então faço aqui

às vezes... Às vezes eu já fico meio assim, pra não comprar porque fica difícil, né?”

Nesta fala de Suelen, percebe-se a contradição entre o querer liberar a comida e o sentimento de culpa por não liberá-la.

Na família Atrapalhada, também foi encontrado o fato de que o alimento é empregado como forma de agrado, conquista. Moisés (16 anos) contou que sua mãe faz surpresas para ele: nhoque, lasanha, panqueca. “Ela [Carmem] é boazinha,

querida...”. Este comportamento gera grande alegria e satisfação, percebida por ambas as partes: mãe e filho. “Ele [Moisés] é um amor, não é?” (Carmem).

O contexto familiar pode muitas vezes utilizar o alimento de forma errônea, para compensar o estigma social construído, como o de pessoa “portadora” de Síndrome de Down. Segundo Goffman (1988), um estigma é dado a uma pessoa de forma inadequada, com base no que se julga correto, normal. Para ele, “estigma é um atributo que joga um descrédito profundo em alguém ou algo, na relação estabelecida entre um atributo e um estereótipo” (GOFFMAN, 1988, p.113). Esta atitude gera um desconforto entre a pessoa que rotula e a que sofre a pressão, o peso do rótulo. Um desconforto que pode ser traduzido, em muitos casos, como culpa pela diferença e, desta culpa, surgir a compensação por pena da má sorte do outro. Muitas vezes, a compensação se traduz em falta de limites, entre eles, o do ato de comer.

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Regina, Carmem e Suelen reconhecem que o liberar a comida não é interessante e correto para com seus filhos com Síndrome de Down, apesar de parecer sentirem-se culpadas por não o fazer. “É só de vez em quando, uma vez ou outra, né? De mês a

mês, de 15 em 15 dias... Não é assim... Só uma vez ou outra e quando tem alguma coisa aqui em casa, aí a gente faz uma lasanha ” (CARMEM).

Durante adinâmica Dinâmica Conhecendo o Metabolismo das pessoas com e sem SD, Suelen reconheceu que as pessoas com Síndrome de Down não devem ter sua alimentação liberada, nem seus caprichos alimentares satisfeitos, pois isto pode gerar ou reforçar o sobrepeso ou a obesidade. “Eu acho que essa já [menina com SD] tem

mais tendência para engordar”. Assim sendo, a pergunta é: porque o fazem se sabem que esta liberação alimentar traz conseqüências negativas para a saúde de seu (sua) filho (a)?

Esta permissividade alimentar esconde um sentimento de culpa por parte dos pais, por terem sido, geneticamente, os causadores da alteração cromossômica. Para compensarem a sua “falta”, um dos meios encontrados é o da permissividade do fazer, do comer, do ser o que quiserem. E no contexto alimentar não é diferente, mesmo que esta permissividade influencie diretamente a saúde de seu (sua) filho (a), levando-o (a) a uma descompensação metabólica, como no caso do sobrepeso e da obesidade.

Será que esta falta de limites ou esta permissividade relacionada ao ato de comer não esconde um desejo inconsciente, por parte dos pais, de fugirem da realidade? Durante toda uma vida, homem e mulher se preparam para gerar filhos dos quais querem se orgulhar. Seres humanos capazes de se perpetuarem através da procriação. Há o desejo inconsciente de exibi-los, mostrá-los ao mundo, como se neles estivesse a prova do quanto são bem sucedidos na vida. Do quanto, por isso, devem ser respeitados (WERNECK, 1995).

Aliado a esta ideologia, existe a veiculação publicitária que vende, a cada momento, a imagem consumista de jovens belos, fortes, saudáveis e muito felizes. Como se a aparência física fosse sinônimo do sucesso. Desta forma, aquele sonho dos pais desmorona abruptamente e o casal se vê numa situação que dói muito: o bebê idealizado, imaginado é uma criança estigmatizada, que a princípio não gera nos pais nenhuma razão para se orgulharem (WERNECK, 1995). Nesse trajeto, onde o que se

busca é educar um filho feliz e apto para a vida em sociedade, o ato de comer pode assumir uma outra função: a de proteção.

Além desta criança que nasceu não satisfazer os desejos dos pais, eles se deparam com outra situação social no trilhar do seu quotidiano: a exclusão de seus filhos. Ter um (uma) filho (a) com Síndrome de Down significa ter que passar por todos os preconceitos e pré-julgamentos que a sociedade possa ter. Desta forma, o ato de comer também pode significar uma forma de compensar esta situação de exclusão social. Para Santos (2003, p.6)

O ultrapassar dos limites ocorre por conta das carências e medos presentes nas conjunturas da vida diária dos indivíduos – crianças e familiares. A obesidade não se instala ao acaso, está sempre relacionada ao excesso de comida. Por outro lado, as crianças que buscam na comida a fonte de satisfação e o combustível necessário para enfrentar as frustrações do dia-a- dia contam com uma certa dose de aprovação (não consciente) das famílias para tal prática.

Mas por que viver com base nas diferenças? A diferença não é um ponto de vista? Não seria mais fácil ter uma coerência ou uma congruência entre os diferentes sistemas de representações coletivas?

Afinal de contas, as pessoas vivem em co-presença, segundo Goffman (1988). Se elas estão em família, existe uma fachada social que permite a aproximação de outras pessoas, ao mesmo tempo em que uma exclusão de seus segredos, de sua parte mais íntima. Elas agem de acordo com as regras sociais de conduta, mas o que se passa nos seus bastidores, como enfatiza Goffman (1988) não chega à superfície de uma discussão. Será que se mantendo em silêncio, as famílias não querem perder a imagem que foi socialmente construída por terem uma criança com Síndrome de Down? E a criança, como fica? Ela tem uma imagem de si e uma outra, a que a sociedade faz dela e lhe atribui.

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