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6.2.2 – O TEMPO CÍCLICO E O RITMO FAMILIAR

De acordo com Ghiorzi (2002), o tempo cíclico carrega consigo uma ambivalência: a das luzes (a força que impulsiona a pessoa para viver, o que compreende seu crescimento e o seu declínio) e a das sombras (a força que acaba com a vida física do ser humano: a morte). O tempo cíclico cria uma realidade que é repetida através dos arquétipos e dos rituais, dentre eles está o ato de comer.

De acordo com Maffesoli (2003), a repetição de um ciclo se faz sempre sob a forma “espiralesca”, porque se cai sempre um pouco perto do ponto de partida no processo de retornar (GHIORZI, 2002). Um fato é vivido singularmente, mas sua singularidade se enraíza num substrato arcaico não temporal. Tudo o que é vivido com intensidade emocional é registrado na memória, faz vir à consciência o que já está lá.

Escuta-se a vida quando se vive o tempo cronológico, biográfico e sociológico. Para Ghiorzi (2002), o tempo de se escutar, estando aberto para o mundo, para os outros, para suas experiências, para suas histórias de vida é também um tempo não acabado, não produtivo. É o tempo de se lembrar. Um tempo, sobretudo, qualitativo

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que exprime crenças, valores, normas, costumes e maneiras de uma pessoa ou de um grupo social para se adaptarem às condições temporais da existência, suas estratégias e manobras para contornarem as condições impostas por um meio dinâmico. Condição esta de se ter um (a) filho (a) com Síndrome de Down e de como o ato de comer, impregnado de convicções e crenças familiares sobre o significado de sua prática, se insere, de como ele é conduzido, trabalhado no quotidiano familiar.

As famílias jogam frequentemente com o caos sob a forma de transgressões das regras que foram criadas para dar uma forma à vida coletiva e social.

E é exatamente o que se observa na família Flores. A falta de diálogo entre os familiares faz com que se gere a falta de limites, falta de regras claras para todos os membros familiares. Esta falta de limites é uma forma de transgressão da vida quotidiana em família. Conseqüentemente, o caos familiar é instalado. Todos os membros estão insatisfeitos: pais e filhos. Desta forma, acham-se caminhos para a fuga da realidade, onde o ato de comer é encaixado, utilizando a comida e a televisão como medidas paliativas para o caos.

O tempo cíclico pode ser evidenciado na maneira como Regina e Bárbara tratam Osvaldo. Também a compensação/liberação alimentar para com Osvaldo é repetida por Regina e por sua mãe (avó de Osvaldo). Este retorno cíclico, utilizando-se a comida como subterfúgio, está impregnado à maneira de educar Osvaldo.

Para Spada (2005, p.23) a mãe

[...] muitas vezes por não poder suportar ou se dar conta de seu próprio mundo emocional, transfere para a criança expectativas pessoais e frustrações, sobrecarregando-a emocionalmente e/ou com alimentação. Por sua vez, o filho também aceita colocar-se nesse lugar, que certamente lhe traz alguma “compensação”, instalando-se um círculo vicioso e prejudicial para a dupla.

Outra situação cíclica na família Flores é o pouco consumo/aceitação das frutas e saladas por todos os membros. Tanto Regina quanto Sérgio não fazem muita questão de comê-las. Desta forma, seus filhos também repetem este comportamento.

Esta concepção cíclica do tempo, mostra que o que existe é um tempo móvel: nem totalmente linear, nem totalmente cíclico, mas que vaivém de dentro da pessoa , de sua essência para o mundo ao seu redor. Existe uma necessidade vital de regeneração. Necessidade antropológica baseada na convicção de que a vida sempre recomeça (MAFFESOLI, 2003). Isto significa dizer que a pessoa vive o tempo cronológico, biográfico e sociológico, escutando a si mesma, abrindo-se aos outros e ao mundo, podendo se adaptar às condições temporais da existência impostas pelo dinamismo do viver. O tempo individual e o tempo familiar podem ser diferentes e, normalmente, as preferências individuais são ignoradas, para se cumprir as convenções familiares e as convenções sociais.

Simbolicamente, este tempo se mostrou para a família Boaventura como repetição de hábitos transmitidos de geração em geração como uma realidade referencial, onde a rotina teve um papel importante. Por imitação, Festival de Dança adaptou sua preferência alimentar à transmitida por seus pais. A oportunidade de experimentar novas situações depende agora, da compreensão dos pais em modificar o que está ritualmente sendo repetido, permitindo acréscimos, sem medos do novo.

Na família Unida, o comportamento de ansiedade de Carol, que é descontado na comida, representa dar o seu corpo em sacrifício, para acumular tristezas e doenças e, assim, ser vista como uma vítima. Este comportamento já está sendo repetido por Everton. É preciso romper com esta repetição e o trabalho deve ser começado por Carol, mostrando-lhe o seu comportamento e indicando-lhe outras formas para a resolução da ansiedade, para que reconstrua o significado que está dando a si mesma e interferindo na educação de Everton. É preciso que ela recupere sua harmonia interna, pois ela tem interferência no seu entorno.

Na família Buscapé o gosto por massas é visto em Suelen, Amanda e Ester. Todas elas apreciam as massas em geral. A liberação da comida por parte dos pais de Ester é repetido por sua irmã Amanda para com ela. A chantagem é feita por Suelen e repetida por sua filha Amanda para com Ester. O tempo cíclico se mostra como um símbolo de educação com regras de ritualização para que a família consiga obediência de Ester, caracterizado por uma rotina com dificuldades de argumentos para tal. Esta família construiu o seu processo educacional a partir da sua cultura, do registro dos

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acontecimentos que marcaram sua vida, sua história.

E enfim, na família Atrapalhada, o ciclo de se alimentar em abundância marca a importância dada para a família com a quantidade dos alimentos e a sua influência no estado geral de saúde de cada um de seus membros. Moisés já incorporou este ritmo familiar e, de acordo com a história familiar marcada por doenças com relação direta ao metabolismo, precisa reconstruir o seu significado de comer.

Ainda é preciso ressaltar que, dentro do tempo espiralesco, o ritmo favorece o equilíbrio entre “o querer viver” da pessoa (interno) e a pressão do mundo (externo). Segundo Maffesoli (1995, p. 33), o ritmo é “uma forma harmoniosa, que se inscreve num processo (dinâmico) de pequenas seqüências (estáticas) que se ajustam umas às outras”.

Cada pessoa que compõe a família possui seu ritmo individual, acompanhado de um sentimento de duração de tempo, que dá intensidade a um certo momento que se caracteriza como um instante eterno (BERGSON, apud GHIORZI, 2002). Cada família tem o seu próprio ritmo e suas representações que, em um determinado momento, se colocam em relação com o pensamento de outras famílias e constituirão, de maneira harmoniosa, as divisões do tempo social.

O ritmo é a manifestação de uma vontade de adaptação do mundo interior de cada pessoa que se exterioriza e chega a uma harmonia social. Conhecer este ritmo familiar facilitou a compreensão do significado atribuído ao ato de comer.

Na família Boaventura, o ritmo alimentar familiar foi alterado devido ao câncer de seu pai e seu irmão. Bela contou que não tinha tempo para caprichar na alimentação, pois a correria era grande. “Claro que quando eu tô muito corrida já não

é assim tão caprichada [alimentação], porque, quando tais correndo num hospital,

corre pro outro... Então tu já faz rapidinha ... [alimentação]. [Caprichada] No sentido

de fazer a salada tranqüila, de fazer uma salada de frutas, ter um suco... [rapidinha]

de fazer um macarrãozinho rápido com carne”.

Além disto, de um ano para cá, devido à mudança na rotina familiar, Festival de Dança fica o dia inteiro na escola, sua filha na universidade e devido ao ritmo de trabalho do casal, a alimentação da família foi modificada: eles só almoçam juntos nos finais de semana. Durante a semana, sua filha almoça na universidade, Festival de

Dança na escola e Lessa e Bela comem ou em casa ou em restaurante. Além disso, Bela falou que uma adaptação encontrada pela família para re-estabelecer seu antigo ritmo familiar foi o dela preparar pratos de que seus filhos e marido gostam para a reunião familiar voltar a acontecer durante os finais de semana.

Na família Atrapalhada, o ritmo alimentar familiar foi alterado quando Antônio adquiriu sua barbearia, pois neste momento ele retornou a comer em casa com a família e deixando de almoçar os “lanches” de que ele tanto gosta. Desta forma, ele se readaptou a rotina doméstica. Entretanto, Antônio admitiu em nossas conversas que ultimamente estava comendo sanduíche na hora do almoço ao invés do tradicional arroz com feijão e carne. Esta foi a maneira encontrada por Antônio para se readaptar ao seu ritmo alimentar estabelecido pela rotina do trabalho.

Na família Unida, o ritmo alimentar familiar é alterado toda vez que o marido de Carol retorna para casa de suas viagens. Ela disse que prepara nestes dias a comida que seu esposo gosta e a família reunida faz as refeições. Neste momento o ato de comer da família se completa: há o coroamento entre o compartilhar a refeição e o estar junto, reunido.

O ritmo alimentar na família Flores é alterado quando nas férias a família toda se reúne com os outros familiares, alugam uma casa de praia e todos reunidos almoçam.

Na família Buscapé, o ritmo alimentar familiar é alterado quando Suelen, Amanda e Ester almoçam na associação do clube de futebol da cidade. Amanda faz parte da diretoria do clube e, muitas vezes, almoça lá. Neste momento, a alegria, o encontro com os amigos, o prazer, a descontração, o cuidado de si é incorporado ao ato de comer dessas três mulheres, pois ele não se traduz somente em comer para sobreviver. Ele agrega outros “nutrientes” que alimentam a vida do dia a dia.

Quando as pessoas valorizam o tempo de si e o tempo do outro, o que está permeando esta atitude é o sensível presente no quotidiano minúsculo e que se traduz por um misto de sentimentos, paixão, imagens e diferenças, segundo Maffesoli (1995). Viver este quotidiano, ainda sob a óptica de Maffesoli (1995), com a qual concordo, é valorizar as categorias de análise como o jogo duplo; o uso de máscaras; a trama social com seus dramas, caos, festas e o trágico.

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Neste estudo, o jogo das máscaras auxiliou na identificação dos elementos constituintes do símbolo significante do ato de comer das famílias pesquisadas.