• Nenhum resultado encontrado

O Ethos do trabalhador na Mercedes

No documento Theo Darlington Mano de Oliveira (páginas 98-103)

CAPÍTULO IV – PROCEDIMENTOS E O CAMPO

4.2 ANÁLISE DAS ENTREVISTAS

4.2.1 O Ethos do trabalhador na Mercedes

Começamos por essa questão, que aparece claramente em praticamente todas as entrevistas. Trabalhar na Mercedes não é uma coisa qualquer. Pelo contrário, é um sonho, representa uma vitória, uma conquista que abre inúmeras perspectivas, como realização financeira, estabilidade no emprego, representação sindical forte, conquistas de status e sucesso profissional e uma constelação de benefícios sociais conquistados ao longo do tempo – entre eles, os planos de saúde geridos pela própria empresa, possibilidade de qualificação profissional interna e externa à fábrica, seguros, banco de horas, clube esportivo, alimentação de qualidade etc.

Mas, acima de tudo, o valor imaterial da marca Mercedes e seu símbolo místico, a estrela de três pontas que empresta prestígio não apenas a que compra seus veículos, mas também a que os produz, fica claro para a Vilma, que nos diz:

Eu cheguei aqui porque é a Mercedes. Eu conheço a Mercedes desde quando eu era pequenininha, não é? Porque eu morava aqui próximo, então eu passava aqui para ir até a minha casa. E eu sempre quis trabalhar aqui... e busquei, me preparei na Arno e na Festo para estar aqui. Porque aqui era a empresa que eu sonhava. Passava aqui bem em frente, eu falava assim: “Meu Deus, um dia eu quero trabalhar aí”. Isso quando eu tinha nove, dez anos. E hoje me ver aqui, para mim, é maravilhoso.

E, quando perguntada em qual empresa trabalharia se saísse da Mercedes, a resposta foi:

Nenhuma. É que nem estou te falando, não sairia daqui para fazer qualquer outra coisa. Eu trabalho na linha de montagem, trabalho montando motor, eu não trabalho no mercado, eu trabalho montando motor. Eu faço o trabalho, eu trabalho como um homem aqui dentro. E, assim, estou feliz e satisfeita, sabe. Eu tenho um bom salário, e faço jus para o meu salário.

No depoimento da Vera Lúcia, uma profissional altamente qualificada que trabalha na empresa há 28 anos, a cultura e os valores da Mercedes também estão presentes.

Então, eu fazia mestrado, eu trabalhava no CTA em São José dos Campos, na parte de energia nuclear mesmo. Trabalhava na parte do desenvolvimento do acelerador linear, em 81-82. Eu fazia o meu mestrado na USP, aí abriu uma vaga e eu vim e fiz entrevista. Tiveram várias outras pessoas que foram entrevistadas e graças a Deus eu dei a sorte de ser escolhida.

(...) A Mercedes dá um apoio muito grande, na minha visão. Ela te dá as ferramentas para você poder desenvolver o seu trabalho com uma qualidade muito boa. Sabe assim? A gente realmente tem um laboratório muito bem montado, a qualidade dos equipamentos que a gente tem é muito boa, as pessoas que trabalham aqui são pessoas muito boas.... Então, eu adoro trabalhar aqui. Lógico, tem as coisas boas e coisas ruins. Lógico, sempre tem um osso para você roer, mas quando você compara o que é bom e o que é ruim, sempre o que é bom está em grande vantagem.

Para o Marcelo, a Mercedes é uma realidade de toda sua vida:

Eu estou aqui na empresa há 28 anos. Completei 28 anos no mês passado, e sou operador de dinamômetro de experiência aqui na área de desenvolvimento, uma área indireta da empresa. Eu sou filho de funcionário, meu pai trabalhou aqui por 30 anos. Quando eu nasci, ele já trabalhava aqui e eu, por conta disso, almejava trabalhar aqui na empresa. Então, em 86 eu prestei o SENAI que existe aqui dentro da própria unidade, aí eu passei e fiz o curso no SENAI por dois anos. Eu vim estagiar nessa área mesmo, na área que eu trabalho até hoje, ou seja, em 88. Aí fiquei um ano como estagiário, fui efetivo e continuo aqui na mesma função, dentro do mesmo departamento. É o meu primeiro emprego. Como eu falei, eu só conheço essa área. Nunca trabalhei em nenhum outro lugar na vida.

Ao longo das entrevistas, fomos percebendo que existe uma espécie de identidade muito forte, um verdadeiro Ethos, entre os trabalhadores e a empresa. O sentimento de orgulho, de realização, de felicidade e de integração é comum também em trabalhadores que estão há pouco tempo na empresa. Humberto é um prensista de 33 anos de idade, que trabalhou em outras grandes empresas e está há três anos na MBB30, depois de ter trabalhado por 10 anos em uma

outra gigante do ramo de autopeças, a COFAP.

Aqui, eu cheguei, e acho que foi por fé em Deus. Porque quando falaram que estavam pegando na Mercedes, eu comecei a ir todo dia na agência levando um currículo, todo dia de manhã. Até que a mulher me disse “Você está aqui TODO DIA”, e eu falei “Eu tenho que vir, eu tenho que insistir”. Aí no outro dia chamaram. Eu fiquei quase dez dias, direto, levando um currículo na porta da agência. Aí chamaram, aí nós fomos fazendo teste. Aí eu fui passando em etapa por etapa.

Ainda no período de experiência, Humberto enfrentou um lay-off e conseguiu depois ser efetivado. Isso não abalou sua vontade de continuar na empresa, pelo contrário, reforçou sua vontade de estar ali, como ele diz:

Só não gostei muito isso aí do lay-off da primeira vez, não é, que eu acabei saindo em lay-off na primeira vez quando eu estava de contrato por tempo determinado. Foi a única parte que mais me abalou, que eu fiquei com medo de abalar a estrutura dentro de casa. Que eu fiquei com medo, falei “Nossa, se eu sair de lá a casa cai, e eu não estou preparado ainda”. Porque amanhã tem muita coisa ainda para pagar. Eu falei “Não estou preparado”, estava com carro financiado e ainda não estou preparado para sair.

A volta da licença remunerada e a efetivação três meses depois, ao final do contrato de experiência, foi o fim de um pesadelo e a retomada de um caso de amor construído e reforçado a partir da percepção de uma condição mínima de dignidade, que não existe em outras empresas:

Quando me chamou para voltar aqui, eu dei graças a Deus, falei “Agora eu estou um pouco aliviado”. Aí quando nós fomos efetivados, eu falei “Agora sim”. Aí foi quando nós fomos efetivados dia 30 de abril. Aí eu falei para a mulher “Agora sim, agora vamos mexer na casa”. Hoje, de zero a dez, eu daria dez. Não tenho muito o que reclamar, não. Porque você tem convênio, você tem transporte, você tem refeição, você acaba tendo tudo. Tem firma aí fora que você vai e você tem que levar marmita, pegar condução, e ainda tem gente que reclama. É por isso que eu falo, o pessoal que vem de fora dá valor.

Um choque entre realidades do cotidiano para quem vem de outras empresas nos permite entender o quanto o trabalho industrial ainda é exercido em condições muito precárias no Brasil. Mesmo quando nos referimos à principal região industrial do País, e falamos de empresas multinacionais do ramo automobilístico, as condições de trabalho ainda são degradantes. Além disso, percebemos que dentro de uma mesma base sindical, no caso, do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, os avanços e as conquistas dos trabalhadores estão longe de se estenderem uniformemente, ainda que se leve em conta apenas as empresas do setor automotivo.

Essa realidade aparece de forma clara nas palavras do Humberto:

Muita gente reclama. Eu, como vim de fora, vejo muita gente reclamando aí, gente que começou aqui. Mas se você vem de fora, aqui você está no paraíso. Porque lá fora você pega serviço ruim, você não toma café, você não tem tempo nem para tomar água. Para ir no banheiro é uma briga. Aqui já não, é diferente. Você consegue tomar seu café, você vai no banheiro.... Meu, você vai lá fora é totalmente diferente. Você sofre.

Mas não queremos aqui passar uma ideia de que a MBB seja um modelo de boas condições de trabalho ou o paraíso que aparece na fala dos operários. Quando relativizamos essas qualidades mencionadas nas entrevistas, percebemos que se devem muito mais a uma realidade muito ruim na maioria das indústrias do que a uma condição de excelência na MBB.

No nosso convívio durante os 23 anos em que coordenamos o Departamento de Saúde do Trabalhador do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, tivemos conhecimento de inúmeros casos de doenças profissionais, acidentes de trabalho muito graves causando mutilações e mortes, que não cabe a nós aqui quantificar.

Vale lembrar que, por força de acordo coletivo entre as empresas metalúrgicas e o Sindicato, os trabalhadores incapacitados para exercer sua função e que têm necessidade de serem realocados em funções compatíveis gozam de garantia no emprego até a aposentadoria. Nesse sentido, Vera Lúcia abordou ligeiramente o assunto em seu depoimento:

Não que eu ache que tem que mandar todo mundo embora. Mas eu acho que deveria ser feito... (alguma coisa), ter um outro tipo de ferramenta que a Mercedes pudesse, determinadas pessoas, mandar embora. A Mercedes tem 2.000 pessoas compatíveis e parece que não dá para fazer nada. Tem que deixar aí, sabe, sendo que tem muita gente boa querendo trabalhar. Eu não acho justo.

Mas temos convicção que esse verdadeiro encantamento que uma empresa gigantesca como a Mercedes exerce sobre os empregados não ocorre por acaso. É, acima de tudo, fruto de um valor imaterial construído por meio das suas práticas gerenciais e da sua cultura organizacional que se reflete na estrela de três pontas, sua marca, e determina o Ethos dos trabalhadores. É justamente esse Ethos, o conjunto de costumes, hábitos e comportamentos, que cria uma identidade coletiva e que modela uma subjetividade que ao mesmo tempo atrai, absorve, modifica e sujeita os operários, em um movimento que se reproduz continuamente, que atende aos interesses da empresa e que agrega valor aos seus produtos.

No entanto, essa subjetividade de que falamos funciona também como uma droga, que rouba a percepção da realidade, cria um mundo idealizado e seguro, e a consequente dependência dessa fantasia, que muitas vezes só termina na demissão. É comum, muito mais do que imaginamos, a ocorrência da síndrome de abstinência que a ausência dessa fantasiosa segurança provoca entre demitidos, licenciados e aposentados.

Nos momentos de crises, de quedas nas vendas, de mudanças e inovações tecnológicas e organizacionais, o risco da perda dessa suposta segurança se torna iminente. É o risco da abstinência da fantasia, da droga, que causa o mal-estar que, como vimos anteriormente, só se resolve pela alienação. Mas o confronto da alienação com a frustração narcísica – e, nesse caso,

nos referimos à frustração dos planos futuros, das realizações idealizadas ou já em andamento e a frustração pela possibilidade de perda das conquistas –leva ao medo, que é que um dos precursores da depressão.

Parece-nos que existe, portanto, uma ligação direta entre o Ethos e a produção do medo.

No documento Theo Darlington Mano de Oliveira (páginas 98-103)