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CAPÍTULO 6: A TEORIA ETÓTICA

V. O ethos no âmbito da filosofia política

6.11. O ethos para Hannah Arendt

Considerando que nesta tese nos propomos a analisar uma biografia de um político, Getúlio Vargas, convocamos as ideias de Hannah Arendt, que, no nosso entender nos iluminam com pontos de vista interessantes sobre a questão do ethos, embora a autora não use essa terminologia nem faça referência explícita à retórica.

Hannah Arendt, em suas interessantes considerações sobre política, expressas em seu livro Human Condition, de 1959, entende que é somente através de suas ações e seus discursos que os indivíduos revelam suas identidades, divulgam para o mundo sua singularidade específica.

De acordo com essa autora, as ações e discursos dos indivíduos revelam quem eles realmente são, sua singularidade, o que é diferente de o que eles são, ou seja, suas origens, seus talentos e habilidades pessoais, bem como suas deficiências e lacunas, pois esses são traços partilhados por todo ser humano.

Entretanto, segundo Arendt, só retrospectivamente, ou seja, somente através de histórias que vão surgir sobre suas ações e discursos, sua identidade será totalmente manifesta. A função do escritor é, portanto, crucial não só para a

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preservação dos feitos e ditos dos atores, mas também para a divulgação completa da identidade do ator.

Segundo a autora, se não tivesse existido um Platão para nos contar quem foi Sócrates, como eram suas conversas com os cidadãos atenienses, sem um Tucídides para nos contar, em seu discurso fúnebre a Péricles, quem de fato ele foi, não saberíamos o que fez com que Sócrates e Péricles fossem personalidades tão destacadas, e a razão de suas singularidades.

Na verdade, para Arendt, o sentido da própria ação e do discurso é dependente da articulação retrospectiva dada a ela por historiadores e narradores. A contação de histórias, ou a tessitura de uma narrativa sobre as ações e os pronunciamentos dos indivíduos, é em parte constitutiva do seu significado, porque permite sua articulação retrospectiva, importante tanto para os próprios atores como para os espectadores.

No que diz respeito aos atores, absorvidos pelos seus objetivos imediatos e preocupações, eles não têm conhecimento de todas as implicações de suas ações, muitas vezes não estão em condições de avaliar o verdadeiro significado de seus feitos, nem estão plenamente conscientes das suas próprias motivações e intenções. Apenas depois de a ação ter sido executada de uma determinada maneira e de essa ação ter se desdobrado em outras ações, seu significado pode ser totalmente manifestado e incorporado em uma narrativa, por poetas ou historiadores.

O fato de essas narrativas serem posteriores, de haver um distanciamento histórico entre a ocorrência da ação e sua narração, é uma das razões que permitem que esta forneça mais insights sobre as motivações e os objetivos dos atores.

As narrativas, portanto, podem fornecer dados sobre a veracidade e sobre o grau de importância das ações dos indivíduos. Ademais, elas têm a função de preservar a memória das ações através do tempo, e ao fazê-lo, elas permitem que essas ações se tornem fontes de inspiração para o futuro, ou seja, modelos a ser imitados, se possível, superados ou mesmo evitados. As ações, segundo Arendt, se caracterizam por serem extremamente frágeis, sujeitas à erosão do tempo e ao esquecimento; ações e palavras não sobrevivem a sua efetivação, a menos que elas sejam lembradas. Somente a lembrança e a releitura das histórias podem salvar as vidas e obras dos atores do esquecimento e da desqualificação.

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A função do escritor é, portanto, crucial não só para a preservação dos feitos e ditos dos atores, mas também para a divulgação completa de sua identidade. As narrativas de um contador de histórias, afirma Arendt, contam-nos mais sobre o 'herói' no centro de cada história, do que qualquer outra coisa, pois o produto de mãos humanas nunca nos fala sobre o mestre que o produziu" (ARENDT, 1959, p. 184).

E é precisamente por esta razão, diz Arendt, que os gregos valorizavam tanto a poesia e a história: elas resgataram os feitos gloriosos e os menos gloriosos do passado em benefício das gerações futuras (ARENDT, 1959, p. 192). Foi função do poeta e do historiador político preservar a memória de ações passadas e torná-las uma fonte de instrução para o futuro. Homero, por exemplo, através de suas narrativas, superou a fragilidade e a perecibilidade da ação humana, fazendo-a durar mais que as vidas de seus realizadores e mais que a permanência limitada de seus contemporâneos.

No entanto, para serem preservadas, tais narrativas precisam por sua vez de uma audiência, ou seja, uma comunidade de ouvintes que se tornem os transmissores das obras imortalizadas. Segundo Sheldon Wolin, "a audiência é uma metáfora para a comunidade política, cuja natureza é ser uma comunidade de lembrança" (WOLIN, 1960, p. 97). Em outras palavras, atrás do ator está o contador de histórias, mas atrás do contador de histórias está uma comunidade de memória.

Uma das principais funções da pólis grega foi a de preservar as palavras e os atos dos seus cidadãos do esquecimento e dos estragos do tempo e, assim, deixar um testamento para as gerações futuras. A pólis grega, além de tornar possível a partilha de palavras e ações estava destinada a corrigir a fragilidade dos assuntos humanos. Fê- lo através do estabelecimento de um quadro onde ação e discurso poderiam ser gravados e transformados em histórias, onde cada cidadão poderia ser uma testemunha e, assim, um narrador potencial. O que a pólis estabeleceu, então, foi um espaço onde a lembrança organizada poderia ter lugar, e onde, em consequência, a mortalidade dos atores e a fragilidade das ações humanas podiam ser parcialmente superadas.

Embora Arendt não mencione a palavra ethos, parece-nos bastante evidente que esse conceito está presente em seu pensamento, revisitado e apresentado de

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maneira peculiar, vinculando o resgate do ethos a narrativas posteriores, o que nos remete a Aristóteles quando disse que o objetivo do estabelecimento do ethos é realizado em grande parte através do uso de eventos narrativos que demonstram experiências anteriores do falante e permitem que o público use essas experiências para estabelecer as credenciais do orador. (ARISTÓTELES, Retórica, 3.16).

Entendendo que a biografia constitui um tipo de narrativa, cuja principal função é revelar o verdadeiro ethos do indivíduo, a posição de Arendt pode contribuir para pensarmos a biografia de GV escrita por sua filha Alzira Vargas.

Da mesma forma que, para Arendt, o próprio indivíduo não é capaz de revelar seu verdadeiro ethos, quem ele realmente é, Alzira Vargas, como filha de Getúlio Vargas, envolvida emocionalmente e politicamente com o pai, certamente não poderá ter a isenção necessária para escrever sua biografia, para narrar quem ele realmente foi. Considerando, ainda, que Getúlio Vargas meu Pai, é um misto de biografia de GV e autobiografia de Alzira, é de se esperar que ambas não cumprirão devidamente os objetivos atribuídos por Arendt à narrativa.

Frente a esse apanhado conceitual, gostaríamos de evidenciar que assim como Charaudeau, adotamos uma posição conciliadora em relação ao ethos, acreditamos que ele seja fruto de um cruzamento de olhares: o olhar do outro sobre aquele que fala, olhar daquele que fala sobre a maneira como ele pensa que o outro o vê .

Ou seja, o ethos é, para nós, o resultado de uma complexa rede interdiscursiva, de informações que surgem, sejam elas fabricadas ou não, no ato exato de enunciação [tempo presente do discurso] com informações anteriores acerca do orador, ou ser- narrado como no caso de biografias, difundidos e presentes na coletividade. Vale lembrar que esse Outro é heterogêneo e plural e não interpretará o ethos do orador da mesma maneira, pois partem de lugares e vivências diferentes.

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