• Nenhum resultado encontrado

4. A PESQUISA NARRATIVA (AUTO) BIOGRÁFICA: DESAFIOS TEÓRICOS E

4.4 O exercício de narrar: sobre o conceito de “experiência” em Walter Benjamin

Prossigo nessas próximas linhas em companhia de Walter Benjamin91 (1985) e

Gagnebin (2013) fazendo uma leitura mais atenta das obras benjaminianas: “Experiência e

91 Walter Benjamin é um filósofo do século XX considerado contemporâneo que propõe em seus escritos uma

aproximação entre o que é verdadeiro e o que é belo, indissociáveis na experiência que torna possível o conhecimento ontológico, conhecimento que faz parte da metafísica que trata da natureza, realidade e existência dos entes. A ontologia trata do ser enquanto ser, isto é, do ser concebido como tendo uma natureza comum que é inerente a todos e a cada um dos seres.

Pobreza" e "O Narrador" no esforço de compreender como o conceito de experiência do filósofo, pode contribuir para reflexão sobre o exercício de narrar como uma prática potente de formação-reflexão-ação na formação em serviço dos professores de educação infantil.

Conheci a obra de Benjamin durante o período do meu mestrado em Educação na UERJ92 nos anos noventa, onde seu conceito de experiência já me chamava atenção na reflexão sobre as políticas públicas e formação de professores na educação infantil - tema da minha dissertação. No ano passado, através de uma disciplina93 no doutorado me reaproximei dos conceitos benjaminianos de literatura, infância, história, arte, cultura e experiência.

Walter Benjamin é um filósofo considerado contemporâneo que propõe em seus escritos uma aproximação entre o que é verdadeiro e o que é belo, indissociáveis na experiência que torna possível o conhecimento ontológico, conhecimento que faz parte da metafísica que trata da natureza, realidade e existência dos entes. A ontologia trata do ser enquanto ser, isto é, do ser concebido como tendo uma natureza comum que é inerente a todos e a cada um dos seres.

A busca da verdade não admite uma primazia, uma superioridade da “razão” sobre o “sensível”, do “universal” sobre o “singular”, do “conceito” sobre a “ideia” e do “ser” sobre a “história”, mas, ao contrário, se constitui a partir de uma dialética, de um encontro entre os opostos que emergem da experiência do singular presente na história (BAPTISTA E LIMA, 2013, p.49).

Benjamin busca a compreensão da importância do conceito de experiência para a reflexão sobre a existência histórica do sujeito em cinco ensaios: “Experiência” (1913); “Sobre o programa da filosofia do porvir” (1918); “Experiência e pobreza” (1933); “O narrador” (1936) e “Sobre alguns temas baudelarianos” (1940).

Em seu segundo ensaio sobre experiência: Sobre o programa da filosofia do porvir (1918), Baptista e Lima (2013) sinalizam que Benjamin, neste período está aberto ao pensamento kantiano. Ao estudar Kant, o ensaísta alemão compreende como um filósofo que entendeu a diversidade da realidade como uma experiência de ordem baixa: Kant não teria considerado outra experiência senão aquela que é efêmera e se integra ao conhecimento. Por este motivo, Benjamin acreditou que Kant esteve no horizonte de uma experiência do seu tempo, característica do Iluminismo, um tempo que não carecia de metafísica e onde a

92 Disciplina: Walter Benjamin ministrada pela professora Rachel Villardi - Programa de Pós-Graduação em

Educação UERJ no Semestre -1997.1.

93 Disciplina: Tópicos Especiais em Filosofia, Estética e Sociedade: Walter Benjamin - temporalidade, história e

experiência, ministrada pelo professor Eduardo Rebuá - Programa de Pós-Graduação em Educação UFF no Semestre - 2018.1.

"experiência nua, primitiva e auto-evidente era a única experiência possível". (Benjamin, 2000, p. 100).

Gagnebin (1986) em citação a algumas passagens dos textos de Benjamin dos anos 30 sinaliza que o filósofo retoma a questão da "Experiência", agora dentro de uma nova problemática: de um lado, demonstra o enfraquecimento da "Erfahrung"- (experiência) no mundo capitalista moderno em detrimento de um outro conceito, a "Erlebnis", (experiência vivida), característica do indivíduo solitário; esboça, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a necessidade de sua reconstrução para garantir uma memória e uma palavra comuns, malgrado à desagregação e o esfacelamento do social.

Assim, o que nos interessa aqui, no momento, é a relação que Benjamin estabelece entre o fracasso da “Erfahrung” (experiência) e o fim da arte de contar, ou, dito de maneira inversa (mas não explicitada em Benjamin) como destaca Gagnebin (1986), a ideia de que uma reconstrução da "Erfahrung" (experiência) deveria ser acompanhada de uma nova forma de narratividade. A uma experiência e uma narratividade espontâneas, que surgem de uma organização social comunitária centrada no artesanato, oporiam assim, a formas "sintéticas" de experiência e de narratividade, como diz Benjamin: “frutos de um trabalho de construção empreendido, de fato, por aqueles que reconheceram a impossibilidade da experiência tradicional na sociedade moderna e que se recusam a se contentar com a privaticidade da experiência vivida individual” - ("Erlebnis").

Este aspecto "construtivista", essencial nas "teses" ("A historiografia marxista tem em sua base um princípio construtivo." tese 17), deve ser destacado, para evitar que a teoria benjaminiana sobre a experiência seja reduzida à sua dimensão nostálgica e romântica, dimensão essa presente, sem dúvida, no grande ensaio sobre "O Narrador", mas não exclusiva. (GAGNEBIN, 1986, p. 7-19).

A autora acima sinaliza que, se consideramos os textos dessa época, e, especificamente, dois textos frequentemente paralelos como: "Experiência e Pobreza" e "O Narrador", nota-se que o diagnóstico de Benjamin sobre a perda da experiência não se altera, embora sua

apreciação varie. Idêntico diagnóstico: a arte de contar torna-

se cada vez mais rara porque ela parte, fundamentalmente, da transmissão de uma experiência no sentido pleno, cujas condições de realização já não existem na sociedade capitalista moderna. Quais são essas condições?

Benjamin distingue, entre elas, três principais: a experiência transmitida pelo relato deve ser comum ao narrador e ao ouvinte. Pressupõe, portanto, uma comunidade de vida e de discurso que o rápido desenvolvimento do capitalismo, da técnica, sobretudo, construiu. A distância entre os grupos humanos, entre as gerações, transformou-se hoje em abismo pelo fato que as condições de vida mudam em um ritmo demasiado rápido para a capacidade humana de assimilação. Enquanto

no passado o ancião que se aproximava da morte era o depositário privilegiado de uma experiência transmitida aos mais jovens, hoje ele não passa de um velho cujo discurso é inútil. (GAGNEBIN, 1986, p. 7-19).

Entende-se assim, que o caráter de comunidade entre vida e palavra apoia-se ele próprio na organização pré-capitalista do trabalho, em especial na atividade artesanal. O artesanato permite, devido a seus ritmos lentos e orgânicos, em oposição à rapidez do processo de trabalho industrial, e devido a seu caráter totalizante, em oposição ao caráter fragmentário do trabalho em cadeia, por exemplo, uma sedimentação progressiva das diversas experiências e uma palavra unificadora. O ritmo do trabalho artesanal se inscreve em um tempo mais global, tempo onde ainda se tinha, justamente, tempo para contar. (Gagnebin, 1986).

Em seus estudos no “Narrador”, Gagnebin (1985) destaca que para Benjamin, os movimentos precisos do artesão, que respeita a matéria que transforma, têm uma relação profunda com a atividade narradora: já que esta é também, de certo modo, uma maneira de dar forma à imensa matéria narrável, participando assim da ligação secular entre a mão e a voz, entre o gesto e a palavra.

A comunidade da experiência funda a dimensão prática da narrativa tradicional. Aquele que conta transmite um saber, uma sapiência, que seus ouvintes podem receber com proveito. Sapiência prática, que muitas vezes toma a forma de uma moral, de uma advertência, de um conselho, coisas que, hoje, não sabemos o que fazer, de tão isolados que estamos, cada um em seu mundo particular e privados. Ora, diz Benjamin, o conselho não consiste em intervir do exterior na vida de outrem, como interpretamos muitas vezes, mas em “fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada”. (GAGNEBIN, 1985, p. 7-19).

Se consideramos os textos em análise, nota-se que o diagnóstico de Benjamin sobre a perda da experiência não se altera, embora sua apreciação varie. Idêntico diagnóstico: a arte de contar torna - se cada vez mais rara porque ela parte, fundamentalmente, da transmissão de uma experiência no sentido pleno, cujas condições de realização já não existem na sociedade capitalista moderna. Quais são essas condições? Benjamin distingue, entre elas, três principais: a experiência transmitida pelo relato deve ser comum ao narrador e ao ouvinte:

Pressupõe, portanto, uma comunidade de vida e de discurso que o rápido desenvolvimento do capitalismo, da técnica, sobretudo, construiu. A distância entre os grupos humanos, entre as gerações, transformou-se hoje em abismo pelo fato que as condições de vida mudam em um ritmo demasiado rápido para a capacidade humana de assimilação. Enquanto no passado o ancião que se aproximava da morte era o depositário privilegiado de uma experiência transmitida aos mais jovens, hoje ele não passa de um velho cujo discurso é inútil (GAGNEBIN, 2013, p. 7-19).

Eu me arriscaria a dizer que esse ancião no passado, que se aproxima da morte em Benjamin, poderia ser comparado ao professor no presente, cujo a voz vem sendo desconsiderada, e suas experiências traduzidas em práticas e fazeres isolados de uma experiência maior de formação-criação-inovação. Me recordo, que durante toda minha trajetória de aluna no curso

Normal à professora de educação infantil e em seguida no ensino superior, venho constatando a ausência da fala do professor. Uma voz que representa sua história, sua experiência, projetos e percursos de ordem pessoal e profissional. Ausência de uma fala que anuncia a chegada do sujeito social, cultural, cognitivo, o sujeito da experiência, da oralidade, do seu registro, de suas marcas de vida-formação, que estão presentes em suas vidas antes mesmo de serem professores.

Os estudos de Henriques (2017) nas obras de Bolívar (2014) vêm sinalizando que a pesquisa narrativa (auto) biográfica com base nas narrativas e histórias de vida dos professores traz a possibilidade de representação de um conjunto de dimensões da “experiência” que a investigação formal não considera e deixa de fora, além de trazer a importante questão do próprio processo de pesquisa poder constituir-se em uma “experiência”, para os sujeitos pesquisados e inclusive para o pesquisador.

Na medida em que o pesquisador também se implica e se coloca como um sujeito da pesquisa ele se torna mais um elo em uma comunidade de narrativas suscitadas neste processo. Assim, a partir de um olhar fenomenológico, esta abordagem pretende considerar vários aspectos das histórias de vida e formação desses sujeitos a partir de suas próprias referências ao mesmo tempo singulares e sociais, permitindo a escuta de vozes silenciadas, a descoberta das sombras de cotidianos perdidos e de acontecimentos ignorados. (HENRIQUES, 2017, p. 18)

Nessa perspectiva, a pesquisadora acima, esclarece ainda que no contexto da educação, o próprio sentido de formação tem uma história na narrativa singular do sujeito, que se tecem a muitas outras histórias e vozes com as quais mantém uma corrente dinâmica e contínua que atravessa dimensões de espaço e tempo e cria comunidades discursivas.

Neste tipo de pesquisa é importante compreender que o pesquisador também faz parte desse fluxo narrativo, e reconhecer que ele tem percursos e experiências comuns em relação aos sujeitos de sua pesquisa, e que muitas vezes, pode constituir-se de sua pesquisa e que muitas vezes o próprio relato de sua experiência pode constituir-se um convite para que outras histórias sejam narradas e continuadas. (HENRIQUES, 2018, p. 6).

Nóvoa (1995) e Henriques (2017) sinalizam ainda que a pesquisa narrativa (auto)biográfica, e suas narrativas e histórias de vida, possibilitam a inclusão, a devolução da voz de sujeitos que foram historicamente silenciados, fazendo com que eles produzam relatos que digam de si próprios e a si próprios, possibilitando ao professor no ato de narrar, reflexão e produção de outro tipo de conhecimento, mais próximo das realidades educativas e do seu cotidiano de trabalho.

Assim, para conhecer as trajetórias de formação e histórias de vida privilegiando a concepção dos sujeitos, tem-se trabalhado com a perspectiva epistemológica e metodológica da narrativa nas suas abordagens de histórias de vida e formação. É importante destacar, que de acordo com Nóvoa (2010) o aporte (auto) biográfico vincula-se a uma nova epistemologia da

formação na medida em que apresenta uma natureza formadora, através de uma experiência que potencializa reflexões sobre as próprias concepções e práticas dos sujeitos.