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1.1 A CRISE AMBIENTAL E A SOCIEDADE DE RISCO

1.1.2 A Teoria da Sociedade de Risco

1.1.2.4 O exercício simbólico da ciência

De acordo com o que foi visto anteriormente, o monopólio da ciência sobre o conhecimento dos riscos ainda não se desfez. O modelo científico totalitário que propaga a crença na existência de uma única forma de conhecimento encontra-se indiscutivelmente em crise, mas ainda consegue sustentar-se como fonte de verdade com valor universal. Como assinala Espinosa (apud FERREIRA, 2008, p. 55), os riscos da segunda modernidade são em

geral dependentes de uma leitura especializada, ou seja, para que sejam percebidos e compreendidos, é necessário que haja interferência direta do conhecimento científico. Nesse sentido, percebe-se que a ciência ainda desempenha um papel fundamental na sociedade de risco. Contudo, atualmente é difícil acreditar que a ciência, influenciada por valores materialistas, pode produzir conhecimento de forma imparcial.

Conforme mencionado anteriormente, a ciência perdeu sua neutralidade através da adoção de estratégias materialistas. De acordo com Lacey (apud FERREIRA, 2008, p. 55), entretanto, neutralidade e imparcialidade são domínios distintos. Dessa forma, considera o autor, pesquisas desenvolvidas exclusivamente através de estratégias materialistas produzem, dentro de um campo de valores definido, hipóteses que são aceitas de acordo com a imparcialidade. Tal assertiva pode ser válida quando se faz referência especificamente à ciência aplicada, no entanto, o mesmo não ocorre necessariamente quando o conhecimento serve à informação pública. Daí nasce o conceito de “exercício simbólico da ciência”, concebido como o ato de produzir cientificamente um conhecimento falso ou parcial com o propósito de atender a interesses específicos, sem que a natureza da ciência praticada seja revelada.

Beck (apud FERREIRA, 2008, p. 55) menciona, de uma forma genérica, mas plenamente aplicável à ciência, que as estratégias institucionais de difusão do risco envolvem um mecanismo de descontaminação simbólica11. Nesse contexto, o elemento periculosidade é primeiramente dissimulado para que o risco possa então ser comunicado ao público. Em sentido figurado, assinala o autor, pode-se afirmar que se está diante de um tratamento cosmético do risco, o qual lhe permite um trânsito mais suave no espaço não-empírico da construção teórica. Mythen (apud FERREIRA, 2008, p. 56) acrescenta ainda que a desintoxicação simbólica é frequentemente operacionalizada através de alegações como a existência de evidências científicas e o completo controle do futuro. Por outro lado, sabe-se que as consequências da construção de verdades simbólicas são nocivas ao público e prejudiciais ao meio ambiente.

11 Beck (1998a, p. 77) menciona, como exemplo, que a fixação de limites de tolerância cumpre precisamente a função de uma descontaminação simbólica. E segue o autor: “são, por assim dizer, tranquilizantes simbólicos contra as notícias que vão se acumulando sobre toxinas. [...] De fato, tem o efeito de movimentar um pouco mais além os limites para os experimentos com humanos. Não há possibilidade alternativa, apenas quando a substância é posta em circulação, se pode descobrir quais são os seus efeitos”. E é exatamente nesse ponto que a sociedade transforma-se em laboratório.

Para ilustrar, podem ser citados os ardilosos mecanismos que a indústria do petróleo e do carvão emprega para gerar dúvidas sobre os problemas ambientais que a queima de combustíveis fósseis pode causar e, como consequência, convencer os consumidores de que é prematuro concluir que exista um vínculo entre essa queima e o aquecimento global, por exemplo.

Gelbspan (apud FERREIRA, 2008, p. 57) cita que no ano de 2001 a produtora e distribuidora de petróleo ExxonMobil tomou-se a maior financiadora de pesquisas científicas que se opunham à realidade do aquecimento global, superando, inclusive, os investimentos da indústria do carvão, apontada frequentemente como uma das principais responsáveis pelo fenômeno das mudanças climáticas. No ano de 2003, assinala o autor, a empresa pagava mais de um milhão de dólares por ano para organizações que desenvolvessem pesquisas contestando o aumento da concentração de gases de efeito estufa na atmosfera, assim como suas possíveis consequências para o planeta. Dentre elas, encontrava-se o Conselho Norte- Americano de Intercâmbio Legislativo (ALEC)12, uma associação não-partidária constituída por legisladores e advogados do setor privado que, entre outras funções, se dedica à elaboração de políticas públicas modelo para todo o país13.

Ante o exposto, constata-se que a ciência também pode produzir desinformação, ou seja, conhecimentos simbólicos isentos de neutralidade e, principalmente, de imparcialidade. Essa parecer ser, na verdade, uma tendência diante do fortalecimento dos laços que gradativamente se estabelecem entre ciência, tecnologia e indústria ou, de forma mais ampla, em qualquer contexto em que a ciência reste vinculada a interesses específicos de determinados segmentos, a exemplo do setor petrolífero. Nesse sentido, Ho (apud FERREIRA, 2008, p. 57) menciona que os riscos associados ao emprego das novas tecnologias genéticas derivam em primeira instância da aliança sem precedentes que se formou entre a ciência e o comércio. De acordo com a referida autora, esse é um fato que

12 Acrônimo de American Legislative Exchange Council.

13 Gelbspan (apud FERREIRA, 2008, p. 57) traz ainda um outro exemplo interessante: na década de 1990 houve uma grande ofensiva pública nos Estados Unidos direcionada ao aquecimento global. Diversas campanhas foram financiadas pela indústria do carvão e apoiadas por cientistas de renome, tal como Fred Singer e Robert Balling. A estratégia de uma das campanhas foi a aparição pública de alguns desses cientistas em diferentes partes do país. Nos documentos internos preparados para orientar as declarações a serem prestadas, lia-se: “repor o aquecimento global como fato pelo aquecimento global como teoria; focar em homens idosos de baixa escolaridade e mulheres jovens de baixa renda que residam em distritos cuja energia é suprida pela indústria do carvão”.

limita inevitavelmente as pesquisas e seus resultados, para não mencionar a possibilidade de que talvez venha a comprometer a integridade dos pesquisadores como cientistas independentes. Assim sendo, pode-se afirmar que o exercício simbólico da ciência representa um dos mecanismos de normalização simbólica referidos por Beck (apud FERREIRA, 2008, p. 57). É precisamente nesse ponto que se constitui a essência do conceito de irresponsabilidade organizada.