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A invenção das primeiras ferramentas fez o homem sair do jugo das leis da evolução e entrar na cultura. Ao talhar a pedra, o homem substituiu os seus caninos, frágeis perante as presas e todas as adversidades, pelo gume do machado e pela ponta do sílex os nossos caninos. A evolução humana consistiu sempre em eliminar o acaso, que dava poucas oportunidades à nossa espécie e colocava-nos ao mesmo nível das outras espécies, e criar condições técnicas e culturais para a superioridade do homem no planeta.384

Através da selecção natural, as espécies surgem quando nascem órgãos ou funções corporais que lhes permitem adaptar às novas exigências do seu meio ambiente. No entanto, com o surgimento e desenvolvimento da técnica, o homem não precisa da esperar por uma lenta mudança corporal. O seu corpo cada vez menos obedece às leis da

380

SERRES, Michel (2011), Habiter, p. 167: “Car naquirent alors de tout autres habitants du monde, moi compris, plus l'humanité dans son enemble, devenus soudain les matelots et l'équipage d'un vaisseau tout aussi lancé dans l'espace que le satellite d'où une poignée d'aventuriers hardis la regardait.”

381

SERRES, Michel (2001), Hominescence, p. 106: “Notre existence ocupe désormais une autre maison, que nos connaissances élargirent lentement de la basse-cour à la planète, et où, par un nouveau tour, nous élaborons d’autres connaissances”.

382

SERRES, Michel (2011), La Guerre mondiale, p. 153.

383

SERRES, Michel (2003), L’Incandescent, p. 362: “Alors changea l’habitat. Du jour où, par les yeux des cosmonautes, nous vîmes notre vaisseau, l’ensemble des vivants habita communément l’embarquement. L’espèce humaine prit conscience d’elle-même en même temps que de sa aniche et de ses occupants. Nous habitons chez eux qui habitent chez nous, à destinée commune.”

384 SERRES, Michel (2001), Hominescence, p. 61: “En taillant la pierre, nous substituions le fil du couteau

et l’aigu du sílex à nos faibles canines face aux crocs des tigres et aux mammouths. En quittant l’évolution, nous tentions, déjà, d’éliminer le hasard. L’évolution suppose, en effet, ce hasard qui nous donnait autant et aussi peu de chances qu’à une autre espèce, mais que la creation d’un environnement technique, culturel et humain tend à gommer.”

evolução natural e cada vez mais as mudanças operam-se no universo dos artefactos.385 Há uma “delegação da evolução”386

no mundo técnico dos artefactos. Daí a designação de exodarwinismo: acção original dos órgãos em relação aos objectos que exteriorizam os meios de adaptação ou a externalização do processo pelo qual os nossos objectos fabricados saem do nosso organismo ou das suas diversas funções, ou de forma sucinta, aparelhar ao nosso corpo.387 Aparelhar é inventar um aparelho, uma técnica ou instrumento, que nos permita libertar das leis biológicas, ao mesmo tempo, que nos faculta a integração no mundo natural: “para dominar a arte de navegar, meu corpo tornou-se no meu próprio navio”.388

Esta aparelhagem, este “corpo-navio” – entendido como meio de “sair deste mundo para penetrar num outro”389

ou “deixar o solo estático e lançar-se no tempo versátil e descontroladamente contingente da evolução”390

– acelera de forma exponencial o tempo e o ritmo dos vivos, que nos impede de avaliar a lentidão dos tempos passados. É nisso que consiste o significado da técnica nos tempos hodiernos, que nos faz libertar progressivamente das leis da evolução. A esta libertação progressiva, Serres apelida de hominização.391 “A técnica-lebre ganha em velocidade à evolução-tartaruga.”392

Não modelamos apenas as nossas ferramentas ou as pessoas mais próximas, mas “modelamos também o espaço e o tempo da geografia e da biologia”393

. Até um jardim pode revelar-nos muito sobre a história, a geografia e a filosofia de um país.394

A própria agricultura revela esta passagem do local ao global. Na medida em que a nossa cultura é também a agricultura que temos395, Serres considera o

385 Id., ibidem, pp. 51-52. 386

HÉNAFF, Marcel (2010), Temps des hommes, temps du monde: Michel Serres et les bifurcations du Grand Récit. L’Herne – Michel Serres, p. 84.

387 SERRES, Michel (2008), Le Mal propre. Polluer pour s’approprier?, p. 39. 388

SERRES, Michel (2011), Habiter, p. 43: “pour mieux maîtriser l’art de naviguer, mon corps devint mon proper vaisseau”.

389 SERRES, Michel (1990), Le contrat naturel, p. 156: “Sortir de ce monde pour pénétrer dans una utre,

où rien ne sera pareil, cela se dit appareiller.”

390

SERRES, Michel (2011), Habiter, p. 42: “Le verbe appareiller signifie d’abord quitter le sol statique et se lancer dans le temps versatile et follement contingent de l’évolution.”

391

SERRES, Michel (2003), L’Incandescent, pp. 90-91.

392

SERRES, Michel (2001), Hominescence, p. 51: “La technique-lièvre prend de vitesse l’évolution- tortue.”

393

SERRES, Michel (2009), Récits d’humanisme, p. 141: “Nous ne modelons plus seulement notre outillage, notre conscience interne, notre entourage immédiate, parfois notre voisinage, mais l’espace et le temps de la géographie et de la biologie.”

desaparecimento da agricultura como o maior acontecimento do século XX.396 Se ela moldava as condutas, os conhecimentos e as religiões; agora a sua existência deixa de orientar a humanidade, na medida em que, não fornece mais referências de espaço e de tempo.397 O seu (quase) desaparecimento, a par das deslocações das populações para as grandes metrópoles marca o fim do Neolítico.398 Com o fim da agricultura como modelo da evolução do homem assistimos a uma mudança radical das relações entre homem e o seu meio.399 Surge também a humanização geral das espécies e do mundo, a que Serres designa de cosmocultura.400 Para isso, muito contribui a constatação, no plano científico, que o género humano, designadamente no aspecto genético, é muito próximo doutros géneros animais, ao ponto de Jared Diamond falar em “género- chimpanzé” como forma de afirmar que não se pode falar propriamente de género humano.401

A influência da nossa acção ultrapassa a dimensão espacial da nossa comunidade próxima e a dimensão temporal do presente. Antigamente era possível prever os fenómenos importantes, designadamente, os fenómenos climatérios.402 Hoje, fruto das alterações climatéricas, as previsões frequentemente falham. Tudo torna-se imprevisível e, por este motivo, perigoso. “Penetrando devagar no global, abandonamos as nossas velhas moradas, o corpo fraco, as ferramentas locais, o mundo limitado, perdemos o conforto dos ambientes exíguos e da sua porta estreita.”403