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3 FEMINISMO INTERSECCIONAL CONSTRUCIONISTA: DIFERENÇA,

3.2 O FEMINISMO É GLOBAL?

Em 1985, na Conferência Internacional de Mulheres em Nairobi, mais de 10 mil mulheres de mais de 150 países se reuniram para discutir sobre as dificuldades da subordinação universal como “segundo sexo”, no entanto, Brah (2006) destaca que o mais notável dessa conferência era a heterogeneidade da condição social, sobretudo dos grupos de mulheres do Terceiro Mundo, que “serviram para sublinhar o fato de que os problemas que afetam as mulheres não podem ser analisados isoladamente do contexto de desigualdade nacional e internacional” (BRAH, 2006, p. 341). Para a autora, o “ser mulher” é composto e concebido de forma diferente de acordo com a localização ocupada dentro de relações globais de poder. A inserção nessas relações de poder é realizada por meio de uma infinidade de processos econômicos, políticos e ideológicos.

Dentro dessas estruturas de relações sociais não existimos simplesmente como mulheres, mas como categorias diferenciadas, tais como “mulheres de classe trabalhadora”, “mulheres camponesas” ou “mulheres imigrantes”. Cada descrição está referida a uma condição social específica. Vidas reais são forjadas a partir de articulações complexas dessas dimensões (BRAH, 2006, p. 341).

É importante frisar que isso não denota que a própria categoria necessite de sentido. O signo “mulher” possui sua própria característica construída dentro e através de configurações historicamente particulares de relações de gênero. Sua direção semiótica adquire definições próprias em falas de distintas “feminilidades”, onde vem representar trajetórias, circunstâncias materiais e experiências culturais históricas singulares. Diferença nessa perspectiva é uma distinção de condições sociais. O centro

105 da análise está inserido na construção social das várias categorias de mulheres dentro dos processos estruturais e ideológicos mais extensos. Não se assegura que uma categoria individual é totalmente homogênea. Mulheres da classe trabalhadora, por exemplo, abrangem grupos distintos de pessoas tanto dentro quanto entre diferentes formações sociais. A posição de classe aponta certas qualidades comunais de implicações sociais, contudo, a classe se articula com diversos eixos de diferenciação como o racismo e o heterossexismo no delineamento de maneiras variáveis de oportunidades de vida para categorias particulares de mulheres (BRAH, 2006).

Para Brah (2006), o propósito fundamental do feminismo tem sido modificar as relações de poder sobrepostas no gênero. Como as desigualdades de gênero adentram todos os campos da vida, as táticas feministas abarcam confrontações sobre a posição subordinada das mulheres tanto inseridas nas instituições do estado quanto na sociedade civil. A potência atrás da teoria e da prática feminista no momento do pós-guerra tem sido seu comprometimento de acabar com as desigualdades provenientes da concepção de diferença sexual intrínseca a teorias biologicamente deterministas, que explanam a posição social das mulheres como consequência de diferenças congênitas. As feministas, obviamente, não desconsideram a biologia das mulheres, no entanto, discutem os sistemas de ideias que estabelecem a subordinação das mulheres como fruto de suas competências biológicas.

A maneira como as indagações da biologia são abordadas muda nos diversos feminismos. É controverso delimitar fronteiras claras entre feminismos, até porque existe uma convenção em muitos campos básicos. A seguinte “tipologia de manual”, consequentemente, anseia unicamente em evidenciar algumas diferenças maiores que permanecem objeto de refutação. De acordo com tais tipologias, análises feministas radicais possuem a tendência em identificar a subordinação biologicamente estabelecida das mulheres como alicerce principal das desigualdades de gênero. As relações de poder entre homens e mulheres são vistas como a principal causa da opressão das mulheres, acarretando ocasionalmente na supressão de outros fatores como classe e racismo. Concepções feministas “radicais” apresentam as capacidades reprodutivas das mulheres como parâmetro de certas características psicológicas que são excepcionais e totalmente femininas. Pressupõe-se que esses atributos tenham sido diminuídos por meio do sistema patriarcal e, por conseguinte, necessitem ser redescobertos e exigidos. Como resultado, pode existir uma comemoração da “diferença sexual” na maneira de atributos e qualidades teoricamente e unicamente femininas. Já se disse que, apesar de rejeitar o

106 determinismo biológico envolto nas falas patriarcais, determinadas versões do feminismo “radical”, por sua vez, estabelecem uma perspectiva trans-histórica da feminilidade efetiva, que careceria ser resgatada e restaurada para além das relações patriarcais (BRAH, 2006).

Um argumento fundamental do feminismo “socialista”, de outro modo, é que a “natureza humana não é essencial, mas socialmente produzida. O significado de ser mulher – biológica, social, cultural e psiquicamente – é considerado uma variável histórica” (BRAH, 2006, p. 342). O feminismo “socialista” preparou uma enérgica crítica aos conceitos materialistas que privilegiam a classe, esquecem as consequências sociais da separação sexual do trabalho, priorizam as heterossexualidades e destinam uma pequena atenção às estruturas sociais que impossibilitam as mulheres de alcançar igualdade econômica, política e social. Esse viés do feminismo se afasta da pressuposta evidência feminista “radical” na importância das relações de poder entre os sexos como determinantes e praticamente exclusivo da subordinação das mulheres (BRAH, 2006).

De acordo com Brah (2006), na década de 1990, o debate se modificou drasticamente, e essas “tipologias” contraíram uma importância histórica. A partir do fim do “socialismo de estado” na antiga União Soviética e na Europa Oriental, o “socialismo” passou a denotar uma política autoritária e antidemocrática. O Fórum das Feministas Socialistas Europeias, por exemplo, alterou seu nome para Fórum Europeu das Feministas de Esquerda. Essa modificação de nome não ocorreu porque os problemas políticos que eram discutidos sob o signo do socialismo se tornaram irrelevantes.

É importante recordar que, até pouco tempo atrás, concepções feministas ocidentais, de forma generalizada, deram pouco cuidado aos procedimentos de racialização do gênero, classe e sexualidade. Métodos de racialização são historicamente característicos, e diversos círculos foram racializados de forma distinta em situações variáveis, e no alicerce de diferentes significados de “diferença”. Cada racismo tem uma trajetória específica. Nasceu na trama de um grupo particular de situações econômicas, políticas e culturais, foi produzido e repetido por meio de mecanismos específicos e adquiriram diversas maneiras diferentes de situações. O racismo antinegro, o racismo anti-irlândes, o racismo antissemita, o racismo antiárabe, diferentes variedades de orientalismos: todos possuem suas particularidades diferentes. Esses grupos criaram respostas díspares aos racismos, já que suas experiências, apesar de serem parecidas, não são iguais (BRAH, 2006).

107 Porém, é válido destacar que tanto negros quanto brancos experimentam seu gênero, classe e sexualidade através da “raça”. A racialização da subjetividade branca não é manifestada de forma clara, muitas vezes, para os grupos brancos, porque “branco” é um significativo de dominância, no entanto, isso não faz com que o procedimento de racialização seja menos expressivo. É imprescindível, assim, analisar como se estruturam “mulher branca” ou “mulher negra”, como “homem branco” ou “homem negro”. Tal desconstrução é indispensável se desejarmos compreender como e por que os significados dessas expressões se transformam de simples especificações a categorias hierarquicamente constituídas em determinadas circunstâncias econômicas, políticas e culturais (BRAH, 2006).

Alvarez (2009) utiliza a noção de tradução de maneira figurada para ressaltar como discursos e práticas feministas estão imersos em questionamentos mais extensos de globalização e abrangem transações entre inúmeras localidades, principalmente entre mulheres na América Latina e latinas nos Estados Unidos. Para a autora, a tradução é política e teoricamente imprescindível para tecer epistemologias e uniões feministas antirracistas e pós-coloniais/pós-ocidentais, uma vez que a América Latina – enquanto formação cultural transfronteiriça e não territorialmente demarcada – deve ser compreendida como translocal em duas perspectivas. O primeiro sentido que Alvarez (2009) alude é de translocalidade, parte dos movimentos além dos conceitos da “política da localização” usados pelo feminismo terceiro-mundista estadunidense, pois uma política feminista de localização abrange uma temporalidade de luta, e não uma atitude fixa.

Agustín Láo-Montes (2007) sugere que latinas/os e afro-latinas/os, em especial, são mais percebidas/os como “sujeitos translocais”. Nesse ponto de vista, a política da localização, como é constituída pelos feminismos das mulheres de cor nos Estados Unidos, “relaciona as „múltiplas mediações‟ (gênero, classe, raça etc.) que constituem o self aos diversos modos de dominação (capitalismo, patriarcado, racismo, imperialismo) e às distintas, ainda que conectadas, lutas e movimentos sociais” (LAÓ-MONTES, 2007, p. 122). O conceito translocal dá um passo à frente, ligando geografias de poder em múltiplas escalas (local, nacional, regional, global) a posições de sujeitos (gênero/sexual, étnico-racial, classe etc.) que constituem o self. Alvarez (2009) desenvolve essa perspectiva de translocal para englobar não somente latinas/os estadunidenses, mas de toda a América Latina.

108 Uma política hemisférica do translocal precisa olhar para a heterogeneidade das latinidades dentro dos Estados Unidos e entre povos latino-americanos e caribenhos, como também para as inúmeras posições que moldam as vidas latino-americanas por meio de múltiplas fronteiras. Visto que mais do que “migrar” e “assimilar”, várias pessoas da América Latina cada vez mais se movimentam entre localidades e lugares historicamente situados e culturalmente específicos, cruzando inúmeras fronteiras, e não apenas entre nações (ALVAREZ, 2009). Alvarez (2009) utiliza a palavra translocal, então, com um segundo significado, que denomina de translocalidade, justamente para enlaçar esses cruzamentos e movimentos multidirecionais.

Inúmeras feministas e teóricas críticas percorrem atualmente, por uma cadeia de redes íntimas, familiares, libidinais, culturais, financeiras, políticas e trabalhistas, dentro e cruzando diversas localidades da Américas Latina e além. O feminismo sugerido pela autora é uma prática multilocalizada. Assim como as teorias viajantes e os transmigrantes de hoje, nossos próprios cruzamentos – teóricos, políticos, pessoais e íntimos – são excessivamente vigiados e repetidamente interrompidos por variados tipos de vigilantes (patriarcais, disciplinares, institucionais, capitalistas/neoliberais, geopolíticos, sexuais e por aí vai) (ALVAREZ, 2009).

De acordo com Alvarez (2009), os nossos diversos locais ou posições de sujeito se modificam, de maneira decisiva para a política da tradução, segundo nossos movimentos e passagens por localidades espaço-temporais. Nossas subjetividades são, concomitantemente, fundamentadas no lugar e deslocadas ou mal colocadas. A autora exemplifica: se uma cubana-americana “étnica” no sul da Flórida e uma latina racializada na Nova Inglaterra chegam a São Paulo, se tornam brancas. No entanto, a incorporação dessa “branquitude” é temporária e desagradável, pois existe a consciência das afrontas atribuídas pelo racismo tanto no norte quanto no sul das Américas. Embora com menor flexibilidade para os corpos mais negros por causa do “fato da negritude”, a raça pode ser marcador instável através das fronteiras. Como deixa claro a antropóloga brasileira Suzana Maia (2014), a raça não é um significante fixo de identidade, mas muda de acordo com os locais em que se habita.

Nessa circulação de numerosas bordas, Alvarez (2009) propõe o “translocas” como um projeto político e uma teoria do conhecimento que abranja e negocie as Américas globalizadas, um projeto que pode ser adotado vastamente nos Hemisférios ou mesmo além deles. Simone Schmidt (2009) defende que o deslocamento é algo bastante familiar aos sujeitos da modernidade tardia, e o sentimento de deslocamento,

109 ou, nesse caso, de translocalidade, frequentemente nos deixa, como propõe Hall (2005), com a sensação de não estarmos em casa em lugar algum.

Por causa “dos múltiplos circuitos, viagens, deslocamentos e reposicionamentos, as translocas se afirmam como sujeitos da diáspora, como necessariamente tradutoras” (ALVAREZ, 2009, p. 747), já que há a necessidade de se fazer traduzir através dos vários locais onde possuem relações e compromissos. Segundo Espinal (2014), a tradução é um “jogo sem descanso”, “um formar de viver”, uma estratégia de sobrevivência para aquelas que moram no Norte. Para muitas que nasceram nos EUA ou que imigraram quando criança com pais que não falavam inglês, a tradução se inicia praticamente na infância. As translocas expandem e transformam línguas e culturas de forma que nem a “língua-materna” nem as outras línguas utilizadas são “realmente estrangeiras” ou “nossas”.

Lélia Gonzalez também buscou encontrar formas de estruturação do pensamento no saber diaspórico como ferramenta para responder os seus questionamentos. Cardoso (2014) afirma que a autora relaciona o modelo dominante e, em determinados textos, apela a uma linguagem tida como fora do padrão instituído para a produção textual acadêmica, isto é, sem dependência às exigências e às regras da gramática normativa, mas que representa a herança linguística de culturas escravizadas. Assim, Gonzalez (1988a) hibridiza, envolve o português com fundamentos linguísticos africanos, em uma experiência política de mostrar o preconceito racial efetivo na própria definição da língua materna brasileira. Em decorrência do enredamento, enfatiza:

[...] aquilo que chamo de “pretoguês” e que nada mais é do que marca da africanização do português falado no Brasil [...], é facilmente constatável sobretudo no espanhol da região caribenha. O caráter tonal e rítmico das línguas africanas trazidas para o Novo Mundo, além da ausência de certas consoantes (como o l ou o r, por exemplo). Apontam para um aspecto pouco explorado da influência negra na formação histórico-cultural do continente como um todo (e isto sem falar nos dialetos “crioulo” do Caribe) (GONZALEZ, 1988a, p.70).

Também sobre o português africanizado, prossegue a autora:

É engraçado como eles [sociedade branca elitista] gozam a gente quando a gente diz que é Framengo. Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. E de repente ignoram que a presença desse r no lugar do l nada mais é do que a marca linguística de um idioma africano, no qual o l inexiste. Afinal quem é o ignorante? Ao mesmo tempo acham o maior barato a fala

110 dita brasileira que corta os erres dos infinitivos verbais, que condensa você em cê, o está em tá e por aí agora. Não falam que estão pretuguês64.

E por falar em pretuguês, é importante ressaltar que o objeto parcial por excelência da cultura brasileira é a bunda (esse termo provém do quimbundo que, por sua vez e juntando o abundo, provém de um tronco linguístico bantu que “casualmente” se chama bunda). E dizem que significante não marca... Marca bobeira quem pensa assim. De repente bunda é língua, é linguagem, é sentido, é coisa. De repente bunda é desbundante perceber que o discurso da consciência, o discurso do poder dominante, quer fazer a gente acreditar que a gente é tudo brasileiro, e de ascendência europeia, muito civilizado etc. e tal.

[...] E culminando pinta este orgulho besta de dizer que a gente é uma democracia racial. Só que quando a negrada diz que não é, caem de pau em cima da gente, xingando a gente de racista. Contraditório né? Na verdade, para além de outras razões, reagem dessa forma justamente porque a gente pôs o dedo na ferida deles, a gente diz que o rei tá pelado. E o corpo do rei é preto e o rei é escravo (GONZALEZ, 1984, p. 283).

O pensamento de Lélia Gonzalez foi construído a partir do contato com homens e mulheres de outras localidades. Alvarez (2009) assegura que assim como Gonzalez (1988a, 1988b, 1984) e Espinal (2014), não se pode cansar de traduzir, já que diante de uma progressiva apropriação de culturas e conhecimentos locais nos fluxos globais de capital e mercadoria, nasce a urgência de um compromisso, por parte das feministas, em conversações e tráficos produtivos através de diversas fronteiras geopolíticas e teóricas, visto que as próprias traduções são objetos de luta que envolvem o compartilhamento de conhecimento para tecer alianças ou acabar com o discurso dominante.

3.3 FEMINISMO NEGRO, FEMINISMO BRANCO E AS QUATRO MANEIRAS