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O fenômeno da vida e a velhice no contexto familiar

Até o século XIX, a ciência e a tecnologia se fundamentaram em um pensamento linear de causa e efeito, que, representado pelo pensamento cartesiano e pelas leis de Newton, desempenhavam um papel central no pensamento científico.

O surgimento da física moderna mostrou que esse pensamento, pautado na concepção estritamente causal dos fenômenos físicos e sua descrição objetiva, tornou-se insuficiente para explicá-los.

No início do século XX, surge uma nova visão de ciência que reconhece as inter-relações entre as partes coatuantes de um todo, organizado como fundamental para a compreensão da totalidade e que se consolida na segunda metade do século XX, configurando um novo paradigma científico, o paradigma sistêmico cibernético.

Foi o biólogo Ludwig Von Bertalanffy que, por volta de 1920, propõe a teoria geral dos sistemas, que considera todos os fenômenos interligados, sendo possível a visão de totalidades em constantes trocas com o meio. Para ele, o enfoque mecanicista sobre a biologia era insuficiente para explicar o “essencial” no fenômeno da vida.

Nessa teoria, demonstra-se o isomorfismo entre sistemas de todo tipo, enunciando princípios de sistema gerais, aplicáveis aos fenômenos estudados em diferentes disciplinas. Essa teoria de princípios universais teria “aspectos de uma metaciência ou de uma filosofia natural”, algo que influi em nossa visão de mundo (BERTALANFFY, 1993).

A teoria sistêmica trabalha com a noção de sistemas abertos e fechados: “sistema aberto”, na relação do sistema com o meio e as trocas oriundas dessa interação e “sistema fechado”, que se refere ao nível operacional, ou seja, ao trânsito de informações dentro do sistema. Relaciona-se às características de auto- organização e de recursividade dos sistemas complexos (VASCONCELLOS, 1995).

Outra noção que muda de significado no contexto do novo paradigma é o de circularidade. Inicialmente, essa noção referia-se à situação de que cada componente do sistema afeta o outro e é por ele afetado. Aqui, significa que “cada comportamento e cada evento no sistema está vinculado, em forma circular a muitos outros e que nenhum comportamento ou evento isolado ocasiona outro” (ibid., p. 23).

Considerando-se que, quando há circularidade de ação, há retroalimentação (feedback), a noção de circularidade fica associada à de retroalimentação, que traz consigo a causalidade circular, determinando autorregulação, homeostase e correção de trajetória do sistema (VASCONCELLOS, 1995, p. 24).

Bateson (1976) usou a expressão “epistemologia cibernética”, que enfatiza a noção de ampliação de foco; quando se considera um comportamento para análise: deve-se estudar o organismo e o meio, numa visão ecossistêmica.

No momento em que se amplia o foco da observação, o observador vai perceber também o contexto em que o fenômeno acontece, “verá relações intrassistêmicas e intersistêmicas, verá não mais um fenômeno, mas uma teia de fenômenos recursivamente interligados e, portanto, terá diante de si a complexidade

do sistema” (VASCONCELLOS, 2002, p. 151).

Outro ponto que passa a ser considerado na nova visão paradigmática é a instabilidade, como parte integrante do sistema observado e de seus participantes.

Ao distinguir o dinamismo das relações presentes no sistema, o observador estará vendo um processo em curso, um sistema em constante mudança e evolução, auto-organizador, com o qual não poderá pretender ter uma interação instrutiva, e estará, portanto, assumindo a instabilidade, a imprevisibilidade e a incontrolabilidade do sistema (ibid.).

A concepção de Sistema Observante se refere ao reconhecimento de que o observador faz parte do sistema observado, abandonando-se a ideia do observador neutro e distante.

Ao reconhecer sua própria participação na constituição da “realidade” com que está trabalhando, e ao validar as possíveis realidades instaladas por distinções diferentes, o observador se inclui verdadeiramente no sistema que distinguiu com o qual passa a se perceber em acoplamento estrutural e estará atuando nesse espaço de intersubjetividade, que constitui com o sistema com que trabalha (ibid.).

Dessa forma, colocamos-nos dentro dessa visão novo-paradigmática ao estudarmos o processo de envelhecimento e a velhice e sua relação dentro da família.

1.2.1. As novas configurações familiares

A família contemporânea vem sofrendo modificações que a distanciam do que era convencionado tradicionalmente: baseada no parentesco, vivendo na mesma casa, com pessoas do mesmo sangue e pressupunha lealdades pessoais e territoriais.

Dentre essas transformações, podemos citar as seguintes, de acordo com Falcão, Dias, Bucher-Maluschke e Salomão (2006).

ü Menor número de filhos;

ü Saída da mulher para o mercado de trabalho e conquista da independência financeira;

ü Relações mais simétricas entre os casais; ü Possibilidade de parcerias entre homossexuais; ü Maior transparência nas relações;

ü Tempo maior entre o início do relacionamento e a decisão de ter o primeiro filho;

ü Figura do homem mais presente afetivamente na família e também nos trabalhos domésticos;

ü Regras e funções menos rígidas e maior proximidade entre pais e filhos;

ü Menos hierarquia e distância relacional entre pais e filhos;

ü Mais valorização do presente e do futuro, em detrimento da história familiar;

ü Maior longevidade, com oportunidade para os indivíduos vivenciarem por mais tempo o papel de avós e bisavós. E a corresidência, de que as pessoas dessas gerações podem se beneficiar, com apoio, proteção e aprendizagem mútua.

Para Macedo2 “a família de cada um não está nos livros e deve ser vista nas suas singularidades. O conceito genérico de família implica em idealizações e reduções”. Cada família se autodefine, priorizando aspectos diferentes, como religião, crenças em comum entre outras e que vivem em função dessa definição e para mantê-las.

Apesar dessa transformação, o propósito fundamental da família, ainda continua sendo, segundo Macedo (1994, p. 64) “prover um contexto que supra as necessidades primárias de seus membros, referentes à sobrevivência – segurança, alimentação e um lar -, ao desenvolvimento - afetivo, cognitivo e social - e ao sentimento de ser aceito, cuidado e amado”.

2

Informações adquiridas durante as aulas do curso do doutorado no Programa de Estudos de Pós- Graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2008.

A dinâmica do sistema familiar cumpre importante papel no sentido da absorção das tensões provocadas pelos conflitos e mudanças presentes no processo de envelhecer, que requer adaptações tanto do idoso quanto de sua família que igualmente envelhece.

Em todas as fases da vida do idoso, a família exerceu uma importância fundamental no fortalecimento das relações, embora muitas vezes a família tenha dificuldades em aceitar e entender o envelhecimento de um membro, tornando esse relacionamento mais difícil. As crenças e valores passados na família a respeito de saúde/doença, de envelhecimento e velhice, irão contribuir na vivência desse idoso e suas relações familiares, assumindo, dentro de suas peculiaridades, tanto aspectos de satisfação como de pesadelo.

A família, como um sistema enfrenta desafios importantes diante das demandas advindas com a velhice (normal ou patológica), especialmente quando há alterações ocasionadas por doenças associadas ao envelhecimento como, por exemplo, a demência. (FALCÃO, 2006, pp. 22-26).

Dessa forma, reconhece-se que, para cada família o envelhecimento assume diferentes valores que, dentro de suas peculiaridades, pode apresentar tanto aspectos de satisfação como de pesadelo. Entender a questão do envelhecimento – velhice no contexto familiar é importante para que possamos refletir sobre o que estamos pesquisando e o que resulta dessa interação da família.

A Declaração dos Direitos Humanos, que traduz a família como o núcleo natural e fundamental da sociedade e reconhece a importância da família na vida social da pessoa idosa, é endossado no Estatuto do Idoso (criado em 2003), que declara, em seu artigo 3°:

É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 pp17).

A velhice, entendida como categoria social e culturalmente construída, é influenciada pelo olhar que engloba o ambiente familiar e social. Cachioni (2003, p. 131) confirma esse pensamento, lembrando que por tal característica “a velhice é

uma concepção que se inscreve ativamente na dinâmica das crenças, dos valores e da cultura em que o indivíduo está inserido”.

Podemos dizer que viver a velhice é o resultado das características pessoais, vivenciais, das alegrias e frustrações que a pessoa construiu durante sua vida? Se a resposta for afirmativa, podemos entender velhice como o resultado dos anos vividos, sendo sua qualidade relacionada à visão de mundo do indivíduo e da sociedade em que ele está inserido?

Féres-Carneiro et al (2007, p. 24) compreendem a família como um processo de passagem entre gerações e que é importante estudar a influência da história das relações sobre a vida dos indivíduos. Aponta três fatores para que esse estudo seja feito:

O aumento da população idosa, o que resulta em uma convivência maior entre diferentes gerações; o aumento da importância dos avós e outros parentes, que ocupam funções parentais; e a forte presença da solidariedade entre as gerações, na ausência de estabilidade socioeconômica. (Ibid.)

Senna e Antunes (2003) apontam que a composição das famílias brasileiras, especialmente nas últimas três décadas, vem passando por várias alterações, do ponto de vista demográfico, mantendo, porém, certa similaridade quanto aos aspectos: redução da natalidade e o aumento da expectativa de vida das pessoas. As autoras colocam que as famílias vêm se tornando menores e com um número maior de idosos em sua composição, alguns com prevalência de doenças crônicas e de problemas decorrentes dos efeitos do processo de envelhecimento.