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2.3 Jesus como afirmação do corpo

2.3.2 O Filho do Homem

De modo geral o título cristológico Filho do Homem se apresenta como uma característica do falar de Jesus. É possível verificar o seu uso em período pré ou pós-pascal,292 mesmo com reservas quanto à origem da expressão, seu significado e aplicação a Jesus.293 Nesta pesquisa, ele tem algo a dizer, quando referido ao tema em discussão.

Sendo a expressão Filho do Homem uma “expressão da „personalidade corporativa‟, ela assume cada vez mais um caráter pessoal, acentuando a dimensão humana do próprio Messias, o seu enraizamento na história dos homens”.294 Nos sinóticos os títulos de Cristo

289 Cf. COMMISSIONE TEOLOGICA INTERNAZIONALE. Comunione e servizio, nº 22; Concílio Ecumênico

Vaticano II, Gaudium et Spes, n º 10, 12, 22, 24, 34 e 41.

290 MERLEAU-PONTY, M. A natureza, p. 350.

291 JOÃO PAULO II. Mensagem à Academia Pontifícia de Ciências, nº 5. 292 Cf. FORTE, B. Jesus de Nazaré, p. 84.

293 Cf. HACKMANN, G. L. B. Jesus Cristo, nosso Redentor, p. 89. 294 FORTE, B. Jesus de Nazaré, p. 84.

revelam-no como pessoalmente único, em quem Deus se manifesta como salvador.295 Filho do Homem é o Messias que nasceu da virgem Maria, o sujeito da história humana que tem referência geográfica, vida concreta, ações testemunhadas e que no fim, vai da Galiléia a Jerusalém para acabar morrendo na cruz.

De todos os títulos cristológicos296 (Senhor, Cristo, Messias, Filho de Deus, Filho de Davi, Verbo, Salvador, etc.) o que na opinião de alguns autores pode ser considerado uma autodesignação autêntica de Jesus é o de Filho do Homem. O fato de ser muito usado nos Evangelhos (69 vezes nos Sinóticos, 13 em João) e depois desaparecer no segundo Testamento (com a única exceção de três citações: Ap 1,13 e 14,14; Hb 2,6; At 7,56), confirma seu uso originário por parte de Jesus. A própria comunidade, que evita essa expressão para impedir que os gregos a interprete como denominação de origem, a transmite nas palavras de Cristo.

No entanto, se os títulos cristológicos, enquanto tais, são, em sua quase totalidade, expressão de fé pós-pascal, seu fundamento está, sem dúvida, na história de Jesus anterior à Páscoa: pode faltar a expressão, mas existe o conteúdo.297 Vários são os contextos e conteúdos de uso desse título. Chama a atenção o cunho paradoxal da condição do Filho do Homem: “em algumas sentenças aparece a tensão entre o estatuto presente de Jesus que fala e o papel futuro do Filho do Homem: Mc 8,38; cf. Mc 10,33; Lc 12,8-9; Mc 2,10 e 9,31”.298 De

acordo com o evangelista Marcos, por exemplo, Jesus usa esse título com relação à sua autoridade presente (cf. Mc 2,10.28), ao seu caminho para a cruz (cf. Mc 8,31; 9,9.12.31; 10,33.45; 14,21.41), à sua condição gloriosa (cf. Mc 8.38; 13,26; 14,62). Ao título pré-pascal Filho do Homem, Marcos acrescenta o título pós-pascal Filho de Deus, que, pertencendo à fé da comunidade, pode ser aplicado ao humilde Jesus de Nazaré (cf. Mc 1,1; 15,39; 1,11 12,1- 11, etc.).299

Para Guardini, o Filho do Homem é o Filho de Deus e o Verbo do mundo.300 Filho do Homem é um nome ao mesmo tempo orgulhoso e humilde: “ninguém é tão íntima e tão cons- cientemente homem como Ele. Por isso nos conhece. (...) Por isso a palavra do Evangelho,

295 BALTHASAR, H. U. Mysterium paschale. In: FEINER, Johannes; LÖHRER, Magnus. Mysterium salutis, v.

III/6, p. 26.

296 Sobre essa questão cf. BORNKAMM, G. Jesus de Nazaré, p. 176. 297 FORTE, B. Jesus de Nazaré, p. 226 e 232.

298 HACKMANN, G. L. B. Jesus Cristo, nosso Redentor, p. 89-90. 299 Cf. FORTE, B. Jesus de Nazaré, p. 122.

palavra de Jesus, conhece mais profundamente o homem que este a si se conhece”.301 Isso

para dizer que Deus mantém uma eterna comunicação clara e plausível com o ser humano: porque o ser humano possui, em sua natureza, a condição própria da comunicação, da abertura à transcendência e do intercâmbio espiritual. Quanto à comunicação divina, para Balthasar, não é algo conseqüente nem acrescentado em Deus: é absoluta Nele, como alguém que fala por Si mesmo aos homens, quando se digna falar.302 Nesse sentido entende o filósofo italiano Roberto Mancini que “somente uma busca do rosto humano e misericordioso de Deus (...) poderá abrir com fidelidade o horizonte de uma compreensão razoável da realidade, logo, não só da humanidade e de Deus, mas também da vida do mundo”.303

Essa expressão bíblico-teológica deve ser encarada a partir do mistério da relação da história divina com a história humana e, nesse sentido, partindo pela via histórica do conhecimento de Deus, “todo conhecimento de Deus é historicamente mediado, ou seja, através da natureza ou através dos eventos, pessoais ou construtos da história”.304 Para

Hackmann, “é um título com teor cristológico profundo, mas fundamentado no próprio Jesus histórico, que manifestou um extraordinário poder espiritual, ao completar a sua obra redentora por meio de sua paixão, morte e ressurreição”.305 Dada expressão, continua ele,

“indica a verdadeira humanidade de Jesus e sua solidariedade com a condição humana, que levou à concretização da salvação. Por isso, Ele é o Homem para os outros [expressão de Bonhoeffer, assumida por Kasper e outros]”.306

Portanto, Jesus Cristo como Filho do Homem é uma realização importante do que se poderia esperar como algo definitivo sobre a base da questão humana, por livre graça de Deus. Ele é o homem a partir de Adão, que reúne em si todas as raças dos homens, e que por proceder do alto, desloca o centro do primeiro Adão para o segundo Adão, que é Ele mesmo.307

Jesus de Nazaré – Filho do Homem, Filho de Deus – fala aos homens também como Homem: “é a sua própria vida que fala, a sua humanidade, a sua fidelidade à verdade e o seu amor que a todos abraça”.308 Nesse sentido, é preciso mostrar aos homens que a fé em Cristo

301 Cf. GUARDINI, R. O Senhor, p. 210.

302 Cf. BALTHASAR, H. U von. El problema de Dios en el hombre actual, p. 181.

303 MANCINI, R. A tarefa essencial hoje é aprender a ver o valor humano universal. In: Cadernos IHU em

Formação, ano 4, 2008, p. 73.

304 HAIGHT, Roger. O futuro da Cristologia, p. 42.

305 HACKMANN, G. L. B. Jesus Cristo, nosso Redentor, p. 90.

306 KASPER, W. Apud HACKMANN, G. L. B. Jesus Cristo, nosso Redentor, p. 90. 307 Cf. BALTHASAR, H. U von. El problema de Dios en el hombre actual, p. 183. 308 JOÃO PAULO II. O Redentor do homem, p. 22-23.

também é relevante para o destino da humanidade. Porquanto, se o homem Jesus foi desde o primeiro instante da sua vida terrena, o Filho de Deus que se encarnou, assumiu a história humana e ressuscitou, fundando a esperança do viver humano, então sua humanidade tem muito a dizer. Nesta perspectiva, vê-se Nele o caso singular e supremo da realização essencial da realidade humana, “realização que consiste no fato de que o homem é à medida que se desfaz de si abandonando e entregando-se ao Mistério absoluto, que chamamos Deus”309

[itálico nosso]. A partir disso, segue a questão.