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2. Júlio César Machado e o folhetim

2.2 O folhetim d’A Revolução de Setembro

Os dois pilares que sustentam a carreira jornalística de Júlio César Machado consistem na colaboração que prestou a dois grandes periódicos: A Revolução de Setembro (fundado em 22 de Junho de 1840, findo em 20 de Janeiro de 1901) e o Diário de notícias (fundado em 29 de Dezembro de 1864, o mesmo que hoje ainda vive). Fundamenta-se esta dedução em dois factores: um deles é o facto de serem dois dos jornais com mais consistência, regularidade e aceitação junto do público no período considerado; o outro factor, de maior incidência, tem a ver com uma colaboração intensa, continuada, de longa

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duração, por parte de Machado. Ou seja, é nestes dois periódicos que encontramos a mais difusa lista de textos de Júlio César Machado, todos eles em formato de folhetim, seguindo um determinado padrão. Pelas mais variadas razões – entre as quais a efemeridade dos periódicos ocupa o principal posto –, em nenhum outro dos inúmeros jornais e revistas onde escreveu se encontra uma tão extensa colaboração.

Encontrando-se A Revolução de Setembro cronologicamente primeiro na actividade do folhetinista, a análise do volume dos seus textos nestes dois periódicos ao longo dos anos parece mostrar uma transição equilibrada entre um e outro, uma vez que os folhetins de Machado n’A Revolução de Setembro começam a escassear quando se intensifica a sua produção no Diário de notícias. Aliás, há exemplos de folhetins publicados n’A Revolução

de Setembro extraídos do Diário de notícias. Na verdade, a repetição e a transcrição de

textos, ou de excertos, com ou sem alterações, em diferentes lugares da imprensa periódica ou em livros publicados é uma prática comum, não apenas em Machado mas também noutros autores. Fundado em 1840 por José Estêvão e Mendes Leite, A Revolução de

Setembro haveria de se tornar, com António Rodrigues Sampaio, um jornal de referência

obrigatória. A sua feição política, adepto do setembrismo e opondo-se ao cabralismo, custou-lhe a perseguição e a suspensão em diferentes momentos, como aconteceu em 1844, o que não impediu que se mantivesse em actividade até ao dobrar do século, imprimindo o último número em 20 de Janeiro de 1901.

A colaboração de Júlio César Machado n’A Revolução de Setembro foi crucial para a sua afirmação como folhetinista consagrado. Como vimos, Machado sucedeu a Lopes de Mendonça no lugar de folhetinista principal daquele periódico, cabendo-lhe a responsabilidade de, pelo menos, manter o interesse que as crónicas semanais despertavam no público. A contratação de Machado data de 1859, como nos conta nos Apontamentos de

um folhetinista; no entanto, o seu primeiro folhetim n’A Revolução de Setembro remonta a

cinco anos antes. Com efeito, logo em 1854 o saldo da colaboração do jovem autor traduz- se em vinte e cinco folhetins, publicados entre 6 de Julho e 30 de Dezembro desse ano.

Pela continuidade da colaboração de Machado, torna-se arriscado isolar a data concreta em que foi contratado para folhetinista permanente d’A Revolução. No entanto, no final do folhetim de 25 de Outubro de 1859, Machado explica a possibilidade de adiar alguns assuntos para o folhetim da semana seguinte, “visto achar-[s]e de novo encartado com a pasta folhetinística dos negócios teatrais” (RS 25.10.1859). Este terá sido, por conseguinte, o primeiro folhetim que Júlio César Machado escreveu depois de convidado por José Estêvão a fazer parte dos membros efectivos do jornal.

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A década de 1860 é para Júlio César Machado a época de ouro do folhetim d’A

Revolução de Setembro, o que implica, em todos os campos, incluindo o teatro, uma

crónica mais intensa, regular e produtiva. Os seus folhetins, embora predominantes no cômputo global do periódico, são intercalados por contributos de outros autores, no entanto, apenas adquirem estes maior peso desde finais da mencionada década. Começam então a competir com a revista da semana de Machado as crónicas teatrais de Costa Godolfim e de Cristóvão de Sá (pseudónimo de A. M. da Cunha Belém). No que se refere a outros tipos de folhetim, encontram-se neste periódico traduções de romances ou de diferentes obras literárias, recensões de publicações, artigos de crítica, de cultura francesa, notícias científicas ou literárias, poesia, crónicas diversas. O próprio Júlio César Machado substitui algumas vezes a sua crónica semanal inserindo um conto, um excerto de uma peça ou, num registo mais aproximado do cânone cronístico, uma biografia ou um relato de viagem.

Porém, a crónica semanal ou “revista da semana” ergue-se como a matriz dos folhetins de Júlio César Machado naquele periódico. De que assuntos fala nessas crónicas? Podemos dizer que o teatro é o tema central. Ainda que nem sempre ocupe todo o espaço da crónica, ele é, na maior parte das revistas semanais, assunto designado. Em primeiro lugar, o caso mais frequente, no registo da actividade dos teatros da capital; depois, na evocação de figuras de palco, na notícia da publicação de alguma obra dramática, na pintura de espaços teatrais fora de Lisboa. O teatro lírico é, no global, o que merece maior montante de comentários no folhetim. Esta predominância deve estar ligada a uma outra característica peculiar deste tipo de crónicas, que é a de eleger o sexo feminino como camada leitora privilegiada. É que as senhoras da sociedade culta preferiam o teatro lírico como tema de conversa entre elas, ao mesmo tempo que “folheavam álbuns e jornais de modas” (RS 23.10.1860).

Para além do teatro, de que outros assuntos trata o folhetim de Júlio César Machado? Genericamente, ocupa-se da vida galante e da vida literária contemporânea. Sendo assim, os restantes divertimentos da capital são alvo comum, tais como os bailes, o Passeio Público, o circo, os cafés, as touradas, as soirées, os banhos, os jardins públicos… No que diz respeito à vida literária, noticia outros géneros para além do dramático, tece o panorama da literatura portuguesa, conta anedotas e episódios de homens de letras. Serve assim como cronista de Lisboa, faceta que lhe foi sendo reconhecida com o passar dos anos, tratando-se de um autor muito citado nesse domínio.

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Das palavras do próprio folhetinista, sabemos que a sua missão naquele rés-do-chão do jornal era dar conta, semanalmente, de tudo o que da vida lisboeta merecesse ser registado. Embora tantas vezes se queixe, precisamente, da falta de acontecimentos dignos de registo numa capital afectada de monotonia, a verdade é que, na prática, sempre encontrava assunto para escrever. O folhetim de Júlio César Machado deu voz aos interesses de uma burguesia que, à época, o liberalismo já tinha formado, e que necessitava destas crónicas mundanas como instrumento da sua afirmação na esfera pública. Segundo Pierre Hourcade (1978: 39), “É através do folhetim que se reflectem mais fielmente as tendências dos meios burgueses cultos, que estes aprendem o que devem pensar dos livros ou das ideias recentes, ou que encontram a imagem agradavelmente torneada das suas próprias convicções. Toda a actividade intelectual – ciência, filosofia, teatro, romance, poesia – é nele comentada em estilo jocoso ou doutrinário”.

Os folhetins de Júlio César Machado seriam, assim, um retrato da sociedade. Aliás, a tese vem do próprio Machado, que abre a “Revista de Lisboa” de 31 de Janeiro de 1860, n’A Revolução de Setembro, com essa lapidar proposição: “O folhetim é a expressão da sociedade”, querendo com ela, neste caso, justificar a falta de assunto para escrever (“para a revista estar de acordo com este conceito, é preciso não tratar hoje de mais nada, porque nada mais sucedeu desde terça-feira passada”). Neste sentido, como refere Ernesto Rodrigues, a proeminência do teatro no folhetim serviria o objectivo basilar: «o folhetim suporta as cargas do edifício social e, de um modo adequado, nele cabe tudo: crítica hiper- impressionista sobre livros, etc., mas, sobretudo, o universo teatral (…), visto que o teatro é tido como “fotografia” da sociedade» (1980: 35). Os leitores, em especial as leitoras, rever-se-iam então nessa fotografia, amável e prazenteira, “conversando” com o folhetinista sobre os assuntos que os moviam. Sintetizando, ainda com as palavras de Ernesto Rodrigues, a essência dos folhetins de Júlio César Machado n’A Revolução de

Setembro, vemos que «o género, se, além de ser a “revista da semana”, recolhe textos de

gaveta ou impressões de viagens, nem por isso esquece as prescrições de reprodutor da sociedade e do real» (ibidem: 36).

No total, Júlio César Machado escreveu mais de cinco centenas de folhetins para A

Revolução de Setembro, concentrando-se os maiores números nos anos de 1860 a 1871.

Cerca de metade daquele total contém informações para a história do teatro oitocentista. Naquela fatia mais producente, a frequência habitual era de um folhetim por semana, em regra à terça-feira. Com os suportes que conhecemos (ou seja, fazendo fé nas colecções das bibliotecas Nacional de Lisboa e Geral da Universidade de Coimbra), e excluindo a

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hipótese do anonimato ou do pseudónimo, o primeiro folhetim deste jornal assinado por Júlio César Machado data de 6 de Julho de 1854, e o último de 19 de Junho de 1886. Os dados para a história do teatro e do espectáculo são, não obstante a sua quantidade e pertinência, elementos a captar com o cuidado que impõe o recurso a uma fonte selectiva, que não tem pejo em expor as suas particularidades, e que, no fundo, não tem uma missão estritamente informativa. Há algumas passagens em que Machado refere que, quando não tem oportunidade de assistir ele mesmo ao espectáculo, recorre a relatos de amigos. Em qualquer dos casos, o tom coloquial é uma característica constante. Veja-se, por exemplo, o folhetim de 29 de Maio de 1860: “Não há melhor modo de cada um encher o seu folhetim do que não ir a parte alguma! Escusa de ter opinião e de formar um juízo! Os seus amigos incumbem-se de o informar, e, como quase sempre mentem um poucochinho, o artigo fica mais imaginoso e mais brilhante!”. E acrescenta: “Saber das coisas para falar delas! Eu fiz isso… no meu primeiro semestre!” (RS). É certo, porém, que não deixa de transparecer aqui alguma retórica, pois o conjunto dos indícios aponta para que César Machado tenha sido, na realidade, um frequentador assíduo dos teatros.