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O género como desenvolvimento psicossocial

2. Diferenças comunicativas e o género

2.2. Diferenças socioculturais entre homens e mulheres: a questão do género

2.2.1. O género como desenvolvimento psicossocial

O género é aqui entendido como um conceito de ordem sociológica, distinguindo-se, por isso, de sexo, do domínio biológico, já que diz respeito somente à parte física que distingue os indivíduos, nomeadamente as diferenças no aparelho reprodutor. Segundo Julia T. Wood, “Sex is innate, but gender is socially created and learned by individuals” (Wood 1996: 4). Para Julia T. Wood, nascer homem ou mulher não implica necessariamente que se pense, se aja e se sinta nos modos que a sociedade acredita que o homem e a mulher devem agir (Wood 1996: 4). Desta forma, embora o género esteja ligado ao sexo para distinguir feminino e masculino, o género é um termo mais abrangente que ultrapassa o domínio puramente biológico e abarca as caraterísticas psicológicas, a formação sociológica e cultural do indivíduo. Ou seja, o género “é socialmente construído” (Rodrigues 2003:16). Segundo esta conceção, o conceito de género é formado pela socialização e pela cultura e, por isso, Judith Butler afirma “[...] gender is neither the causal result of sex nor as seemingly fixed as sex” (Butler 2007: 8). Assim, será maioritariamente a noção de género a geradora das diferenças entre homens e mulheres.

Desta forma, o nosso trabalho debruça-se sobre questões de género, pois a linguagem e o género estão intimamente correlacionados, uma vez que ambas as conceções são resultado de conhecimentos adquiridos, produto da nossa vivência em sociedade.

Não obstante, por vezes, pode aflorar o termo sexo(s), mas este será sempre utilizado no sentido que tem o conceito de género, pois este implica as noções de identidade de género e papel de género. Muitas vezes, como se depreende, a identidade de género é confundida com identidade sexual. Contudo, não estamos a falar do mesmo, embora estas

duas identidades estejam inter-relacionadas. De facto, são os indivíduos que constroem a sua identidade de género ao se identificarem social e culturalmente como masculinos ou femininos. A identidade sexual é construída através da vivência da sexualidade com parceiros do mesmo sexo ou do sexo oposto. Assim, por exemplo, em alguns homens homossexuais, a identidade de género é masculina, enquanto a identidade sexual, em termos de fantasia e escolha objetal, é feminina (Rodrigues 2003: 18).

Por conseguinte, esta identidade de género levará à existência de papéis de género femininos e masculinos, que refletem, no fundo, “[...] padrões ou regras arbitrárias que uma sociedade estabelece para os seus membros, definindo os seus comportamentos, as suas roupas, os seus modos de se relacionarem” (Rodrigues 2003: 18) e o modo de comunicarem. Portanto, desde cedo, as crianças vão sendo socializadas tendo em conta os seus diferentes papéis de género, partindo da parte biológica, o sexo. “Like age, sex is a biological category that serves as a fundamental basis for the differentiation of roles, norms and expectations [...]. It is these roles, norms and expectations that constitute gender, the social construct of sex” (Eckert 1997: 213). De facto, existe um certo determinismo na forma como o género vai sendo construído, uma vez que essa construção é feita a partir do sexo natural/ biológico:

[...] the notion that gender is constructed suggests a certain determinism of gender meanings inscribed on anatomically differentiated bodies, where those bodies are understood as passive recipients of an inexorable cultural law [...] then it seems that gender is determined and fixed as it was under the biology-is-destiny formulation. In such a case, not biology, but culture, becomes destiny (Butler 2007: 11).

Desta forma, enquanto o sexo pode ser considerado como uma categorização biológica, baseada primeiramente no seu potencial papel reprodutor, o género é a elaboração social do sexo, que é biológico. De facto, “[...] to whatever extent gender may be related to biology, it does not flow naturally ad directly from our bodies (Eckert e McConnel-Ginet 2003: 13). O género é assim um processo de construção a partir do sexo biológico, segundo o qual os indivíduos adotam e seguem comportamentos, atitudes, posturas de acordo com os papéis de género esperados. É neste ponto que o género e o sexo confluem, uma vez que

[...] gendered performances are available to everyone, but with them come constraints on who can perform which personae with impunity. And this is where gender and sex come together, as society tries to match up ways of behaving with biological sex assignments (Eckert e McConnel-Ginet 2003:10).

Para explicar o desenvolvimento dos papéis de género concorrem três teorias do ramo da psicologia: a teoria psicanalítica de Freud, a teoria da aprendizagem social e a teoria do desenvolvimento cognitivo (Rodrigues 2003: 19).

Segundo a teoria psicanalítica de Freud (1988), por volta dos três aos cinco anos, os meninos desenvolvem sentimentos sexuais pela mãe, o conhecido Complexo de Édipo. Nas meninas, por sua vez, o processo é diferente, pois o alvo do seu amor é o pai. Assim, no que diz respeito aos meninos, o chamado Complexo de Édipo faz com que eles desejem tornar-se parceiros da mãe, substituindo, por isso, o pai. Tal faz com que os meninos sintam uma enorme culpa por nutrirem aquele tipo de sentimentos pelas mães e começam a temer os pais, achando que estes os castigarão caso descubram os seus pensamentos e desejos. Por

isso, essa culpa e medo transformar-se-ão em identificação, ou seja, eles começam a adotar as mesmas atitudes e comportamentos do pai. Assim sendo, se os meninos não conseguem substituir os pais, eles vão esforçar-se por ser como eles. Desta forma, eles copiam o comportamento masculino dos seus pais. O mesmo se passa com as meninas, mas na situação contrária, pois como não conseguem substituir a mãe junto do pai, acabam por identificar-se com elas, copiando-lhes os comportamentos e atitudes. Daí que, com tenra idade, as meninas queiram maquilhar-se, fazer a manicure, etc., tal como faz a mãe.

Por conseguinte, de acordo com a teoria psicanalítica, as consequências deste estágio de desenvolvimento é o mesmo para os meninos e para as meninas. A culpa e o medo fazem com que as crianças adotem os comportamentos e o código moral apropriados ao seu género, de acordo com a identificação que têm com os seus pais do mesmo sexo. Assim, mesmo antes de tomarem consciência das diferenças biológicas e anatómicas entre os sexos, os meninos e a as meninas já desenvolvem os papéis de género.

A teoria da aprendizagem social (Bandura 1977) defende que os papéis de género são aprendidos. Desta forma, os pais, os professores e a sociedade, agentes de socialização, são responsáveis por qualquer manifestação ou comportamento de género que a criança apreenda ou demonstre. Segundo esta teoria, os papéis de género “masculino” e “feminino” são transmitidos às crianças através de modelos de comportamento de homem e mulher, sendo que cada modelo de comportamento será alvo de reforço ou punição. De facto, as crianças estão expostas a modelos de comportamento e atitudes estereotipados e são recompensadas ou punidas se seguem ou não os padrões apropriados ao género. Por isso, os meninos jogam à bola e as meninas brincam com bonecas e, caso joguem à bola, são “marias-rapazes”. Da mesma forma, mesmo em bebés, os meninos vestem azul e as meninas cor-de-rosa. Aqui os pais são considerados os principais atores de socalização, especialmente nos primeiros anos de vida, uma vez que eles são quem passa mais tempo com as crianças nesta fase da sua vida, estando em condições de administrar e condicionar as atividades das suas crianças (Maccoby 2003: 118).

Por último, para a teoria cognitiva (Kolberg 1966; Bem 1981), a identidade de género e o desenvolvimento de papéis de género é explicada através da compreensão que as crianças têm de género e como elas veem as diferenças entre homens e mulheres e como são motivadas/levadas a comportarem-se com o seu papel de género. Assim, de acordo com esta teoria, a identidade de género é a primeira etapa da organização cognitiva do mundo social da criança. Ou seja, da observação da realidade envolvente, das diferenças entre homens e mulheres, a criança autocategoriza-se menina ou menino. Primeiramente, a criança compreende as diferenças de género baseando-se na aparência e no comportamento, e não em diferenças biológicas. É só por volta dos 4 ou 5 anos que a criança começa a olhar para si fisicamente e começa a conhecer o seu corpo e toma consciência de que não o pode alterar. É a partir deste momento, ou seja, quando se dá o entendimento de que o género não se pode mudar ao longo do tempo, que a criança cria verdadeiramente a identidade de género. A partir de então a criança demonstra-se mais empenhada e motivada para aprender acerca dos papéis de género e a adotar comportamentos apropriados ao seu papel de género. “À

medida que o género se torna estável as crianças aprendem estereótipos de género pela observação de ações e papéis de género de homens e mulheres que as cercam” (Rodrigues 2003: 24).

Em síntese: a teoria psicanalítica descreve um processo através do qual a criança se identifica com o ascendente do mesmo sexo; a teoria da aprendizagem social sugere que a criança desenvolve a identidade de género através de um processo de aprendizagem que envolve a imitação de modelos e o reforço; e a teoria do desenvolvimento cognitivo defende que o género só é verdadeiramente aprendido pela criança a partir de um determinado estádio de desenvolvimento cognitivo, ou seja, entre as idades de 3 e 5 anos (Lips 1978b).

Por isso, tendo em conta o seu conhecimento de género, a criança vive de acordo com dois padrões de comportamento:

- primeiro, conhecendo o seu género e identificando o género das outras crianças, a criança tende a ser atraída pelos que são iguais a si;

- segundo, tendo em conta o que aprendeu sobre os esterótipos de género – desde padrões e práticas culturais relativos ao modo como os dois sexos se comportam e atuam em sociedade e o que é esperado deles – a criança também vai procurar adaptar-se a esses padrões e práticas comportamentais adequadas a cada sexo (Maccoby 2003: 182). Portanto, esta segunda hipótese “[...] pressuposes that children have acquired the ability to identify not only their own gender but that of others who might serve as appropriate models for sex- typed standards and practices” (Maccoby 2003: 182).

Assim sendo, a identidade de género de um indivíduo começa a ser construída bastante cedo, desde que lhe é designado o seu sexo. A partir daí, todo o meio envolvente vai orientar o género a ser seguido pela criança e a própria ciança vai categorizar-se de acordo com o seu sexo. Uma vez estabelecidas, estas categorias vão ser o ponto de partida da construção dos estereótipos de género (Maccoby 2003: 183). Assim,vão associar-se diferentes caraterísticas psiológicas ao homem e à mulher, tal como enumera Mary Ritchie Key:

In our society, the psychological characteristics of males are said to be: aggressive, assertive, authoritative, competitive, courageous, daring, decisive, domineering, independent, innovative, self-reliant, and vigorous, as well as blunt, boastful, bull-headed, combative, presumptuous, pugnacious, sadistic and violent. Females are said to be affectionate, demure, dependent, emotional, excitable, gentle, illogical, indecisive, intuitive, passive, sensitive, submissive, tender, and unambitious, as well as bitchy, fickle, sacchaine, secretive, superficial, undependable, vacillating, whiny, and wily (Key 1996: 18).

Algumas destas caraterísticas haviam já sido referenciadas por Robin Lakoff, em 1975. Tal como o meio envolvente orienta o género, também a aquisição da linguagem vai ser condicionada, uma vez que esta é parte da cultura e um instrumento para a transmitir e para a preservar:

Language is a part of culture and an instrument for transmitting and perpetuating implicit, historically situated, and culture-bound principles of social order and systems of belief that define and assign unequal social value to feminity and masculinity (Sheldon 1993: 84).

Por isso, Amy Sheldon afirma que a linguagem é a maior influência no que e no como as crianças aprendem sobre o género e o género é a maior influência no modo como as crianças

usam a linguagem no seu dia-a-dia (Sheldon 1993: 84)2. É através da linguagem que nos

criamos e estruturamos enquanto seres humanos (cf. “we ourselves are created and constructed as social beings by learning a language” (Cameron 1992: 13-14)). Por isso, a linguagem funciona não só para iniciar as crianças, mas também para perpetuar e reforçar as diferenças de comportamento de género no que diz respeito às relações sociais estabelecidas nas interações conversacionais do dia-a-dia entre homens e mulheres. Para Sheldon (1993), o processo pelo qual as crianças aprendem a usar a linguagem de acordo com o que é apropriado para uma mulher ou para um homem chama-se “language socialization” (Sheldon 1993: 84). Nesse sentido, a interação com adultos é uma maneira de as crianças serem socializadas pela linguagem e aprenderem a usar a linguagem de acordo com a ideologia de género. Portanto, para a referida autora, a informação sociocultural sobre o género está codificada na organização do discurso e, dessa forma, os adultos influenciam a linguagem das crianças, fornecendo modelos de como homens e mulheres falam uns para os outros:

Sociocultural information about gender is encoded in the organization of discourse. Thus adults influence children by providing models of women and men talking to each other (Sheldon 1993: 84).

Por seu turno, Jane Sunderland e Lia Litosseliti entendem o género como uma variável crucial para analisar a variação na linguagem, visto que, mais que individual ou social, o género deve ser analisado contextualizado (Sunderland e Litosseliti 2002: 6 e 31).