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O Hermetismo na Poesia Brasileira Moderna

Parte II – Tensões

4.3. O Hermetismo na Poesia Brasileira Moderna

Como afirmamos nos primeiros parágrafos deste capítulo, a poética de Mário de Andrade, pela sua sede de participação, constituiu-se como recusa à excessiva intelectualização, que ele identificava na poesia de Mallarmé. Oswald de Andrade, foi experimental radical em sua prosa poética, nos romances limites Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, foi um vanguardista no campo da poesia ao depurar numa linguagem coloquial-irônica o poema, transformando-o num mecanismo eficaz para capturar flashs do cotidiano, seja na estrutura do poema-piada seja nos cortes abruptos e dinâmicos de sua técnica de montagem.

Os principais elementos, porém, de uma poética hermética estão fora do programa de 22: a linguagem imantada por uma mística, o peso de um silêncio simbólico, a fusão entre visão artística e interpretação metafísica do mundo, a metáfora absoluta, o imaginário mágico e esotérico e a idéia da experiência poética como transformação, seja do sujeito que a fabrica seja de seu receptor, o leitor. Nossa vanguarda modernista, embora alimentada aqui e ali por tendências que se confirmaram como grandes receptáculos de toda uma linha de poesia hermética, que se inicia com Baudelaire e avança com Rimbaud e Mallarmé, representados pelo expressionismo ou pelo surrealismo, orientou-se logo no seu início para aquilo que falava mais alto à vida cultural do país: a necessidade de redescobri-lo, o que implicava uma integração da pátria a toda uma dimensão moderna do mundo ocidental e à exposição da realidade brasileira – “realidade” esta que só uma linguagem inventiva e coloquial-irônica conseguiria metaforizar.

Parece que outras modernidades só entrariam no circuito poético de nossa renovação a partir de 30, num processo já de reflexão e decantação do próprio projeto nacionalista da fase heróica. O surrealismo foi a principal vanguarda responsável por instilar em alguns de nossos principais poetas o estopim de uma linguagem capaz de identificar-se com a espiritualização do ato poético sem ter de retroceder até o simbolismo. Justamente as figuras de Murilo

Mendes e Jorge de Lima ocupam a posição central desse novo fôlego do hermetismo entre nós.

Murilo Mendes será a figura privilegiada por nós nesta seção, em detrimento de uma possível atenção à poesia de Jorge de Lima. Poderíamos explicar essa escolha aparentemente arbitrária por um dado prático objetivo: dos dois é ele o mais citado, comentado, parafraseado e referenciado como ponto de ligação, para uma parte dos novos poetas brasileiros, entre a lírica hermética dos simbolistas e primeiros modernos com a poesia atual. Uma espécie de imagem alternativa de poeta brasileiro, antenado com as vanguardas sem abdicar de sua singularidade essencial. Quando, mais adiante, sistematizarmos, do ponto de vista estilístico, a tendência hermética da atual poesia brasileira, tentaremos provar a sutil e poderosa presença da poesia Muriliana em seu escopo.

Inicia sua atuação como poeta das fileiras da vanguarda modernista heróica, compactuando com muitos de seus preceitos, como a paródia de marcos históricos da cultura brasileira, fatos ou textos (lembre-se a sua própria canção do exílio), recriados à luz da simplificação irônico-cotidiana em linguagem ágil. O Murilo Mendes, entretanto, que nos interessa, é aquele que abandona a matriz comum a Oswald ou Mário e desenvolve, a partir de A Poesia em Pânico (1937), aquilo que podemos definir de poética hermética. Este livro, passados sete anos de atuação poética – o primeiro Poemas (1925-1929), é publicado em 30 – marca uma transformação fundamental no universo de sua criação.

A morte de seu grande amigo Ismael Nery instila no poeta uma crise religiosa que o fará desenvolver, juntamente com o contato que mantém a partir de então com o grupo francês da revista Esprit, um cristianismo essencial e capaz de mesclar-se às suas motivações literárias. Vê-se uma transformação substancial na visão de mundo do poeta. O caráter anedótico, por exemplo, pelo qual ele inicia a exploração de seu país pelo viés nacionalista se converte num humor martirizado de homem moderno que recorre à ironia como mecanismo de justaposição ou apaziguamento de questões insolúveis. Em outras palavras é o mesmo Murilo, e, ao mesmo tempo, é um outro.

O principal elemento que o fará desenvolver uma linguagem literária fundamentalmente hermética será o surrealismo que ele soube operar como poucos, não só no âmbito brasileiro, mas no próprio contexto da literatura ocidental. É José Guilherme Merquior, em Notas para uma Muriloscopia, quem situa Murilo Mendes dentro de uma de suas principais qualidades – a absorção do surrealismo ao núcleo motivador de seu discurso: “Aquilo mesmo que os três principais anarcovanguardistas, Oswald, Mário e Drummond, só

incorporaram avulso – o surrealismo – Murilo adquiriu, por assim dizer, por atacado”.177 O surrealismo de Murilo Mendes não se parece com o programa de uma escola literária (coisa que o surrealismo talvez não tenha sido), mas parece constituir a própria lógica do seu “antiuniverso”, respirando a autenticidade de uma máscara que se fundiu, de maneira pessoana, ao rosto de seu a(u)tor.

A questão surrealista em Murilo Mendes é esclarecedora sobre a presença do movimento na poesia contemporânea. O poeta não foi adepto da escritura automática, uma das principais propostas técnicas dos surrealistas. Seus poemas se orientam na direção de uma unidade imagético-sonora que exige um alto grau de conscientização artística. Essa consciência crítica de poeta artífice, e a conseqüente recusa ao servilismo inconsciente, está intrinsecamente ligada à sua visão cristã e escatológica do mundo.

A visão cristã exigiria do poeta um constante mergulho na imanência que o seu surrealismo tentava equilibrar, pelo anseio revolucionário utópico mesclado ao sentimento de caridade, de fundo religioso. Daí uma linguagem que está constantemente mergulhando no real sem nunca descambar totalmente para a “irrealidade” e, menos ainda, para o realismo fácil da participação. Justamente a tensão entre um e outro que melhor definem sua poesia. Essas duas instâncias são, em seu universo poético, as vias de acesso para a liberdade, elemento agregador tanto da visão onírica surreal quanto da esperança escatológica cristã. Liberdade que dará título não só a um de seus livros – Poesia Liberdade – como também a um dos mais reveladores poemas de sua visão de mundo, pertencente ao livro As Metamorfoses:

A Liberdade

Um buquê de nuvens:

O braço duma constelação Surge entre as rendas do céu.

O espaço transforma-se a meu gosto, É um navio, uma ópera, uma usina, Ou então a remota Persépolis.

Admiro a ordem da anarquia eterna,

177

A nobreza dos elementos E a grande castidade da Poesia.

Dormir no mar! Dormir nas galeras antigas!

Sem o grito dos náufragos, Sem os mortos pelos submarinos.

Este poema é um exemplo de síntese de toda a obra de Murilo com suas forças informativas. A liberdade se estabelece como um atributo natural do universo criado, do qual o próprio homem participa também pelo poder de sua imaginação, pelo seu similar poder em criar. Poder que, ao mesmo tempo, não deve compactuar com o “grito dos náufragos”, nem com “os mortos pelos submarinos”. É esta condição fundamental para que se possa “Dormir no mar! Dormir nas galeras antigas!”. O dístico final do poema é um lembrete da condição primeira da liberdade, e do anarquismo essencial de Murilo: a liberdade não pode ter como plataforma a opressão de inocentes. Estes dois últimos versos funcionam, pois, como uma verdadeira antistrofe, contracanto à propagação da imaginação e da associação livre que corresponde ao desejo associativo do poeta (“O espaço transforma-se a meu gosto”).

O poeta transformou o seu poder imaginativo num compromisso com o outro pelo caminho da caridade, minando as imagens mais deliberadamente puras do surrealismo nascidas de técnicas como a escrita automática, o entregar-se ao gosto do inconsciente e aos seus acidentes inarticulados. Nesse campo, não teria vez, e Murilo sabia-o, a imaginação participante e orientada num sentido amplo mas também profundamente social. A charitas, o sentimento cristão de transformar o estranho em algo de si mesmo, funcionou como um monitoramento do real sobre a força delirante da imaginação surrealizante, expressa também por uma alta potência crítica que o poeta aliou desde cedo ao seu ato de criação. No texto já citado, José Guilherme Merquior anotou com precisão a singularidade do poeta de Poesia Liberdade: “Essa tremenda carga utópica é a essência do surrealismo-movimento, a sua grande originalidade face ao niilismo dadá; e foi a isso – e não às receitas de escola, tipo “escrita automática” – que Murilo jurou uma fidelidade nunca desmentida”.

Nessa visão de mundo pode-se reconhecer um aspecto universalizante que muito deve à teoria do essencialismo, desenvolvida pelo seu amigo Ismael Nery. Versão mística da escatologia cristã e teoria, nomeada, por sinal, pelo próprio Murilo Mendes, que cruzava a dimensão corpórea do sensualismo com um impulso metafísico e transcendente. Não se pense

que o poeta desenvolve, a partir dessas idéias de segunda mão, meios de operacionalizá-las. Elas estão incrustadas na medula de suas experiências poéticas; ele sente o mundo a sua volta de tal modo irmanado ao atrito entre corpo e o absoluto, que tentar definir onde começam as idéias e onde começam os processos estilísticos seria como extrair um coração do corpo para demonstrar como ele funciona.

Um dos maiores casos de admiração perplexa diante da trajetória e do lugar especial que cabe a poesia de Murilo Mendes é o de Mário de Andrade. Mário no texto “A Poesia em 1930”, situa alguns dos problemas dessa poética, dos quais o “hermetismo” e a “obscuridade”178. Na visão do modernista paulista, seriam resultados da irregularidade do poeta. Murilo Marcondes de Moura, autor de um dos mais luminares estudos acerca do poeta mineiro, explora os principais procedimentos de sua poesia hermética, demonstrando o caráter singular do surrealismo de Murilo Mendes. Ele foi capaz de integrar os seus procedimentos mais caracterizadores à visão totalizadora de uma poética que trabalha incessantemente sobre suas próprias possibilidades, procurando transfigurar a realidade. Deste modo, essa “irregularidade”, o hermetismo, era a condição vital de uma poesia fundada na “paixão do enigma”, que ele mesmo identificara na obra de Max Ernst a quem admirava.

Essa transfiguração da realidade está diretamente ligada a algumas das conquistas do surrealismo no campo da poética. Entre elas, o uso especializado da metáfora, identificada por Murilo como a estrutura organizadora de seu universo; metáfora que resulta de objetividade vocabular e lingüística, mas também de desarticulação da sintaxe e da prosódia tradicionais. O próprio poeta anota:

Restringi voluntariamente meu vocabulário, procurando atingir o núcleo da idéia essencial, a imagem mais direta possível, abolindo as passagens intermediárias. Certo da extraordinária riqueza da metáfora – que alguns querem até identificar com a própria linguagem – tratei de instalá-la no poema com toda a sua carga de força.

Vista desse modo, a metáfora ou a imagem179, é um espaço iluminado cercado por um mundo de sombras. Ela é o flagrante poético de uma realidade sempre conectada a outras camadas de realidade que desconhecemos. A metáfora absoluta180, como já se definiu esse

178

In: MOURA, Murilo Marcondes de. Murilo Mendes: A Poesia como Totalidade. São Paulo: Edusp, 1995. p. 55.

179

Teremos oportunidade de refletir sobre esses conceitos quando tratarmos dos traços estilísticos das poéticas brasileiras que compõem a tendência hermética.

180

tipo de metáfora, tem certa carga elíptica que concentra de uma só vez o esforço de objetivação – interpretado por Murilo Marcondes como técnica combinatória em Murilo Mendes – e o apagamento do referente e da proximidade estreita da representação: “Trata-se, antes, da invenção de nexos novos e insólitos, de modo que as relações ente os termos da imagem sejam ao mesmo tempo longínquas e justas.”181

A proeminência da metáfora ou imagem confere à poesia de Murilo Mendes um lugar de solitário destaque entre os nossos primeiros grandes modernos. Pois, como seu amigo Jorge de Lima, não tem qualquer interesse em retratar a realidade brasileira com agilidade e primitiva inocência, elementos que ficaram restritos a momentos muito pontuais na obra dos dois; mas o desejo de ampliar um olhar desprendido de qualquer noção exclusivista de identidade, baseada na tipificação e redução. A arte de Murilo Mendes “consiste na combinatória radical de elementos os mais disparatados, sendo ainda que o seu produto cria algo novo cuja função é expandir a realidade e não reproduzi-la”182.

A imagem nos explica também a conexão entre surrealismo e barroquismo no poeta.183 A técnica combinatória de Murilo Mendes não só não exclui, como mesmo provoca a eclosão do insólito. A tentação de separar a obra do poeta entre um impulso surrealizante, no início, e uma purificação em direção ao construtivismo na fase final, deve ser evitada. Pois essas duas linhas de força se mantém unidas pelo contraste e pela resolução a elas concedida na imagem e na metáfora absoluta, mesmo que pareça prevalecer nessas distintas fases uma sobre a outra, tal par dicotômico, responsável pela característica tensão poética do autor nunca desaparece.

O construtivismo e a estranheza da imagem unem o barroco e o surrealismo pela importância que uma linguagem transfiguradora adquire. Como no barroco, “O meio de se alcançar tal objetivo é também a utilização radical da metáfora, então definida como ‘mãe da poesia’ ou ‘mãe de toda a agudeza’.”184 Veja-se a consciente aproximação que o poeta realiza entre as duas estéticas n‘O Poema Barroco, de Mundo enigma. Onda as imagens mais incomuns estão permeadas por um sentimento de compaixão pela condição dos homens que se manifesta de maneira exemplar na humanidade dos santos, iconicizada e varada de paixão pela divindade:

Os cavalos da aurora derrubando pianos

181

MOURA, Murilo Marcondes de. Op. Cit. p. 19.

182

Idem. p.25.

183

Os pontos de união entre surrealismo e barroquismo também serão explorados posteriormente.

184

Avançam furiosamente pelas portas da noite.

Dormem na penumbra antigos santos com os pés feridos,

Dormem relógios e cristais de outro tempo, esqueletos de atrizes.185

Em seu estudo, Murilo Marcondes de Moura, comenta as semelhanças entre a inventividade de uma ars combinatória, que está na raiz da poética barroca e da qual Murilo Mendes, bem como parte do surrealismo participariam. Nesse contexto o poeta aparece como um estabelecedor de relações186, costurando impulsos opostos, unindo os mais diferentes materiais na procura de correspondências, simulações de complexos estados de percepção que produzem uma sensibilidade tensa e irredutível ao evidente, envolvendo a poesia em um clima de abertura que mantém a sensação de que o seu centro, seu núcleo fundamental está ocupado por um grande segredo, um certo silêncio. Cabe ao poeta cercá-lo, dar indícios de sua existência, criar mecanismos capazes de aferir a densidade de sua presença.

Ficam assim delineados os principais traços do hermetismo muriliano que nos farão compreender melhor onde se origina a singular poesia de parte dos contemporâneos: impulso místico e metafísico, poesia como uma arte transfiguradora, transcendente, união entre construtivismo e estranheza, prevalência da imagem e da metáfora e a presença do silêncio como elemento compositivo. Elementos todos que comungam com a influência dos simbolistas franceses e românticos alemães. Muito já se disse, por exemplo, o quanto Os Discípulos em Emaús devem aos escritos de Novalis, enquanto que a influência Rimbaudiana é declarada pelo próprio poeta.

Tais caracteres herméticos poderiam ser apontados ainda em alguns momentos da Drummond e numa boa parte da poesia de Joaquim Cardozo. Nossa escolha, entretanto, recaiu em Murilo Mendes pela importância que ele tem adquirido entre os novos poetas e pela predominância de uma linguagem poética hermética em sua obra. Isso nos levou, diante dos limites de nosso estudo, que tem como foco fundamental a nova produção, a preterir não só Drummond como Jorge de Lima que, ainda mais que o primeiro, participaria desse novo momento de modernidade na lírica brasileira.

185

MENDES, Murilo. Op. Cit. p.394.

186

Nas palavras do próprio poeta: “O Conceito primordial de arte encerra a idéia de equilíbrio, eis por que achamos que um artista moderno não deva mais ser um cultor de temperamento e sim um estabelecedor de relações”. Idem. p. 52.

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