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Parte II – Tensões

4.2. O Simbolismo Brasileiro

Foi sob a sentença de magro movimento, de agrupamento sem força que o simbolismo brasileiro ficou conhecido. Mas a revisão histórica, felizmente, tratou de nos apresentar um hércules quasimodo (como o nordestino de Euclides da Cunha), que, se tinha o corpo desajustado e desarticulado, tinha também uma força especial e imprevista no horizonte de seu tempo. Aos críticos contemporâneos ao movimento – se é que assim o podemos chamar – faltou a distância; daí resultou uma imagem esquálida da estética que transformou-se, entre nós, numa fantasmagoria de fim de século. Um dos principais a reverter esse estado de coisas foi Andrade Muricy, escrevendo, com muito trabalho de pesquisa, o monumental Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro161, editado atualmente em dois volumes. Andrade Muricy

161

define a presença do simbolismo em nossas letras – o livro é editado na década de 50 – como dono de uma difusão “secreta, mas enorme”.162

Ele não foi só um estudioso do movimento, mas um verdadeiro cruzado da estética simbolista, fazendo circular textos inéditos, manuscritos, conectando autores simbolistas das mais diversas regiões do país e integrando o nosso simbolismo a um “momento internacional”, como acreditava, negando a idéia de uma cultura simbolista de importação e da qual os nossos autores teriam sido subservientes. A despeito dos traços datados da obra, ela é um compêndio que participa de qualquer discussão consistente a respeito do significado do simbolismo na literatura brasileira. O prefácio à segunda edição da obra, em 1969, assinala o que muitos dos nossos críticos literários posteriores enfatizaram – a importante conexão entre simbolismo e modernidade:

Este Panorama não tem intuito exemplar e normativo. Focaliza uma tendência sem dúvida pretérita das letras brasileiras, porém de influência não completamente extinta; tendência complexa e acentuadamente sinuosa, mas cuja amplitude, antes geralmente contestada, o aparecimento do Panorama, pelo menos em seu aspecto documentário, terá contribuído para que fosse, como me parece ter sido, reconhecida pela nossa historiografia literária.

Desde os ensaios de Antonio Carlos Secchin sobre o movimento, até as análises de Davi Arriguci Jr. sobre poemas de Cruz e Souza, bem como no estudo essencial de Roger Bastide sobre o cisne negro; nos ensaios de Ivan Teixeira e outros importantes divulgadores da obra de Cruz e Souza, na análise e fixação dos poemas de Pedro Kilkerry por Augusto de Campos; sente-se a importante contribuição dessa idéia de secretas ou subterrâneas coligações entre estética moderna e simbolismo, impensáveis até então no contexto brasileiro.

Secchin, em seu ensaio Simbolismo e Modernismo163, lembra que, a despeito do simbolismo ter disputado sua posição histórica com o seu adversário – o Parnasianismo –, diferentemente do que ocorreu na Europa, e de seus opositores ocuparem cargos de prestígio e estarem muito bem assentados na imprensa, o simbolismo, no balanço da história, parece ter conquistado presença bem mais significativa: “Se, no calor da hora, a gravata e o fraque

162

Idem. p. 14.

163

In: SECCHIN, Antonio Carlos. Escritos sobre Poesia e Alguma Prosa. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2004.

parnasianos venceram a batalha contra a túnica simbolista, esta parece ter levado a melhor na guerra que efetivamente importa: a da decantação histórica”.164

Pensar os desdobramento do simbolismo na modernidade nos remete ao estudo de Edmund Wilson – com o qual o de Andrade Muricy guarda um profundo paralelo – em que uma parte fundamental da modernidade em países de língua inglesa ou francesa se mostra indissociável da estética simbolista formando aquilo que o próprio Wilson designa literatura imaginativa (aí incluindo Eliot, Pound, Valéry, Claudel, Rilke, etc.). Em nossa literatura o simbolismo foi sempre pensado como elemento agregado à estética parnasiana, por ela eclipsado, e, conseqüentemente, resíduo a ser superado pelas propostas de vanguarda. O que demonstra a peculiaridade de nosso contexto, pois na França uma das mais radicais vanguardas, o Surrealismo, apontava justamente em seus simbolistas os precursores de sua imaginação onírica e do poder subversivo da fantasia.

Se as pontes, ou vasos comunicativos entres as duas estéticas são incontáveis165, por outro lado o simbolismo foi varrido do programa de vanguarda de 22, por funcionar totalmente fora do circuito cultural do programa nacionalista, por pender para o hermetismo e não para a pesquisa do caráter nacional ou da língua brasileira. As preocupações simbolistas pertenciam a outro universo, sua pesquisa era antes lingüística que nacional, mais estrutural que sociológica. Somado a isso o fato de que o simbolismo não se articulou enquanto movimento, fragmentando-se no território nacional como núcleos isolados que pouco contato mantinham. A visão global do movimento só emergiu com a publicação do estudo de Andrade Muricy. Independentemente do parentesco subterrâneo que os modernos tinham com os simbolistas, no momento heróico da vanguarda esse laço foi negado, e a cosangüinidade ignorada.

Não se pode esquecer que a primeira crítica formulada em terreno brasileiro à influência dos ideais cientificizantes e positivistas foi realizada justamente pelos poetas simbolistas. Um olhar mais acurado capta, ao rastrear o significado amplo dos deslocamentos estéticos, a intenção mais radical dos poetas simbolistas, entre as quais se encontra a tentativa de devolver à poesia sua capacidade de falar aos sentidos e não apenas ao intelecto. O código

164

Idem. p. 139-140.

165

Ainda Secchin: “O parco diálogo entre simbolistas e modernistas operou-se quase clandestinamente, devido, sobretudo, à caracterização específica do movimento de 22, muito mais empenhado em derrubar as estátuas do Parnaso do que auscultar o que já no século XIX soava como inovação. Ainda assim, saliente-se a atitude acolhedora de Mário de Andrade, cuja concepção de “verso harmônico” (em oposição ao “verso melódico” tradicional) pode ser precursoramente localizada em vários poemas de Cruz e Souza, com suas sucessões de frases nominais e bruscas rupturas de encadeamento lógico-discrusivo.” In: Ibidem. p. 142.

simbolista, como demonstram vários dos poemas de Cruz e Souza e tantos outros, tem o objetivo de produzir a palavra encantatória e minar, desta forma, qualquer pretensão a reduzir a literatura a um depósito de idéias ou verdades sociológicas. Já estamos em pleno terreno do hermético, numa arte poética em que a força da sugestão, mesmo que não tenha cativado a todos, desdobrou-se em outras formas que guardavam com ela, ao menos, o desejo de transformar-se em algo aderente às camadas profundas da sensibilidade.

Cruz e Sousa, como um dos principais representantes da estética, foi um exímio criador de ritmos insólitos, inserindo-se numa linha que se origina em Baudelaire, em quem ele forjou parte de suas convicções literárias e mesmo parte de sua própria dicção poética. A carga lógico-discursiva da língua é amortizada pela curva sinuosa da musicalidade, obtendo- se assim a “rarefação do referente”166, baseada em assonâncias e aliterações num poema como o famoso Antífona:

Ó Formas alvas, brancas, Formas claras De luares, de neves, de neblinas!... Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas... Incensos dos turíbulos das aras...

Formas do Amor, constelarmente puras, De Virgens e de Santas vaporosas... Brilhos errantes, mádidas frescuras E dolências de lírios e de rosas...

Indefiníveis músicas supremas, Harmonias da Cor e do Perfume... Horas do Ocaso, trêmulas, extremas, Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume... (...)

Na poesia de Cruz e Sousa a linguagem adquire peso pela unidade estilística que a sintaxe, os vocábulos, a prosódia, constroem com a dimensão semântica do discurso poroso ao vago, ao fluido, ao etéreo. É toda a linguagem que expressa realidades sutis, ou, é essencialmente sua forma que expressa tais misteriosas searas. Há, em verdade, poucos

166

Expressão de Ivan Teixeira no prefácio à edição fac-similar de Faróis de Cruz e Sousa. In: CRUZ E SOUSA, João da. Faróis. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998. p.17.

“acontecimentos” na poesia de Cruz e Sousa, pois é a própria linguagem que se transforma em evento, com seus volteios e sinuosas curvas sonoras.

Seu principal material é o vago ou a imaterialidade, que adquire um sentido positivo. O movimento ascensional, que pode ser verificado em muitos dos poemas de Cruz e Sousa, coaduna-se com a cosmovisão de sua poética, na qual o mundo cotidiano está imantado de aspectos negativos, como a mesquinhez e a redução da vida mental ao racionalismo pobre do século XIX, como se lê em Siderações, também de Broquéis167:

Para as Estrelas de cristais gelados As ânsias e os desejos vão subindo, Galgando azuis e siderais noivados De nuvens brancas a amplidão vestindo... (...)

E as ânsias e os desejos infinitos Vão com os arcanjos formulando ritos Da Eternidade que nos Astros canta...

Nessas alturas resta pouco do mundo a que estamos habituados, como se a linguagem tivesse se apurado de tal forma que se tornou volátil. Assim, a própria palavra construída pelo poeta adquire uma dimensão espiritual que não se esquadrinha por qualquer credo religioso, mas constitui-se como uma privilegiada visão do universo, investindo-o de uma coerência especial e de um sentido próximo da ascese religiosa. Mas a principal caracterização dessa palavra é a da música das coisas, espécie de linguagem oculta que se vai revelando aos poucos ao poeta, nervura secreta das forças que agem sobre o cosmo e sobre o próprio homem. Essas forças podem se manifestar sob a face angelical do mais puro sentimento místico-religioso, ou mesmo sob as formas sensuais do corpo, constantemente – e não por acaso – velado na poesia de Cruz e Sousa:

Carnais, sejam carnais tantos desejos, Carnais, sejam carnais tantos anseios, Palpitações e frêmitos e enleios, Das harpas da emoção tantos arpejos...

167

(Encarnação)

Comentou-se muito sobre a perda de inteligibilidade que as imagens etéreas de Cruz e Sousa desencadeiam. Toda sua poesia se constrói sobre o pilar de uma dor cósmica, condizente com uma visão espiritualizada e transcendente do próprio ato de poetar, abarcando todas as facetas da matéria, seja na sua sublimação, seja na sua manifestação mais sensual. Esse ritmo é vazado por uma série de recursos que se tornam recorrentes em sua poesia, como a enumeração ou acumulação de termos aproximados, decompostos pela irradiação dos vocábulos regidos mais por coordenação do que por subordinação; a tendência para a abstração que a intensa musicalidade imprime ao discurso e o anulamento dos elementos espaço-temporais. Ivan Teixeira confirma isso ao afirmar que o poeta:

compõe um discurso em que o ser se converte numa espécie de feixe de ondas abstratas de padecimento e limitação, efeito obtido graças ao acúmulo de imagens sonoras e cromáticas, associadas à enumeração exaustiva e prismas variados da mesma impressão. Trata-se de uma concepção algo surrealista do discurso poético, em que as formas objetivas do mundo exterior cedem lugar à projeção dos fantasmas deformantes da poderosa imaginação verbal do poeta.

Outro autor que será um exemplo de poética hermética no nosso simbolismo brasileiro é Pedro Kilkerry. Bem menos prestigiado que Cruz e Sousa, Kilkerry recebeu da vanguarda, na figura de Augusto de Campos, atento estudo e vivo interesse. Num trabalho de ReVisão, como os concretos gostam de grafar – o ReVisão de Kilkerry168 –, Augusto de Campos, além de fixar praticamente toda a obra esparsa que nos restou do poeta, oferece poemas inéditos e um estudo interpretativo como introdução.

Poeta de rigor e senso construtivista mallarmaicos, Kilkerry esteve ligado a importantes revistas do simbolismo baiano, onde figurou a maior parte de seus poemas publicados. Foi considerado por Andrade Muricy, essencial poeta do nosso simbolismo: “O seu curioso hermetismo à Mallarmé faz dele um longínquo precursor do surrealismo”169. Mas Kilkerry não se define como hermético apenas pelo preciosismo e pela escolha insólita do vocábulo, não é tanto o léxico que o caracteriza como poeta difícil, e mesmo os torneios sintáticos, mas sua dimensão semântica que daí resulta. As metáforas absolutas proliferam-se

168

CAMPOS, Augusto de. ReVisão de Kilkerry. Brasiliense: São Paulo, 1985. Brasiliense: São Paulo, 1985.

169

num olhar absolutamente estranhado sobre o mundo recriado à luz de uma singular cosmovisão, onde, varrido o sentimentalismo romântico ou o equilíbrio clássico, o senso construtivista e a concepção da arte como artifício dominam:

Sombras de voz hei no ouvido – De amores ruivos, protervos – E anda no céu, sacudido,

Um pó vibrante de nervos. (Horas Ígneas)

E a luz nalgum volume sobre a mesa... Mas o sangue da luz em cada folha. (É o Silêncio...)

Se em tua fronte de sonho O sonho é uma flor de cera Chegas... Do que era tristonho Que luz rosada nascera! (Folhas da Alma)

Note-se que além das metáforas absolutas, em que os referentes são apagados em nome de uma nova realidade puramente lingüística, capaz de metaforizar o que cerca o dizível – “pó vibrante de nervos”, “sangue da luz em cada folha” e “O sonho é uma flor de cera” – deparamo-nos com uma sintaxe intrincada e incomum, onde frases perdem as conexões lógicas usuais como o fragmento de É o Silêncio... demonstra. Parece que o último verso da estofe de quatro, uma frase adversativa, não se relaciona com nenhum verso anterior, pairando isolada como uma ilha verbal no meio do silêncio. A técnica de ocultar, esquecer, o fechamento dos períodos como acontece nos dois últimos versos deste poema (“Cresce-me a estante como quem sacuda / Um pesadelo de papéis acima...”), são marcações estruturais desse silêncio irredutível que paira em torno do texto.

Funcionando como verdadeira síntese da arte verbal de Kilkerry, a partir do qual Augusto de Campos tece minuciosa análise, temos Cetáceo:

Fuga e pó, são corcéis de anca na atropelada. E tesos no horizonte, a muda cavalgada. Coalha bebendo o azul um largo vôo branco.

Quando em quando esbagoa ao longe uma enfiada De barcos em betume indo as proas de arranco. Perto uma janga embala um marujo no banco Brunindo ao sol brunida a pele atijolada.

Tine em cobre o zênite e o vento arqueja e o oceano Longo enfroca-se a vez e vez e arrufa,

Como se a asa que o roce ao côncavo de um pano.

E na verde ironia ondulosa de espelho Úmida raiva iriando a pedraria. Bufa

O cetáceo a escorrer d’água ou do sol vermelho.

A forma fixa do soneto sofreu as mais diversas transformações ao longo do século 19 e entrou pelo 20 senso utilizada pelos simbolistas de maneira totalmente anti-clássica. Ele que se transformou na expressão máxima do formalismo classicista adquire um significado amplamente contrário nas poéticas de Antero de Quental, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos e, como se vê acima, no próprio Kilkerry. Após as “cavalgaduras” românticas eliminando o ritmo puro do verso, toda uma série de recursos sonoros – aliterações, ecos, assonâncias etc. – tensionam sua estrutura de modo a desviá-la radicalmente de seu classicismo congênito. Neste soneto Kilkerry inflaciona a estrutura comedida tradicional, num jogo cromático (“É cobre o zênite”, 1º verso da estrofe 1) e plástico (“E na verde ironia ondulosa de espelho”, 1º verso do último terceto) que produz uma sensação de realidade insólita e móvel, quase um expressionismo, onde todos os elementos parecem dialogar entre si, animados por uma mesma força agônica de vida. Um único verbo, conjugado em terceira pessoa, numa frase atomizada do primeiro verso, anuncia toda a impessoalidade de um observador avesso ao lirismo lacrimoso. A sintaxe retorcida de teor barroquizante do último verso do primeiro quarteto – “Coalha bebendo o azul um largo vôo branco” – mesmo sendo transposta para a ordem mais usual da língua (Um largo vôo branco coalha bebendo o azul) não diminui o caráter absoluto da imagem.

Outra característica particular é a conversão de substantivos em verbos, no caso de esbagoa, que deve se referir a bagos – os barcos como bagos – e enfroca-se, remetando a uma grafia mais antiga, provavelmente, de flocos (frocos). Há a qualificação estranha sem a habitual adjetivação lírica, no caso de pele atijolada. Toda uma sensação de movimento é descrita no poema, onde imagens são repetidas e renovadas, ampliadas por novos elementos como indicadores de uma realidade que não paralisou na descrição anterior; é o caso de “É cobre o zênite” que reaparece no primeiro verso do primeiro terceto como “Tine em cobre o zênite”. O zenite que continha já a cor cobre aparece tinindo nessa cor, como se se explicasse essa qualidade do zênite pela sinestésica sugestão de que a cor produz um som, ou vice-e- versa.

Digno do mais puro hermetismo lingüístico a Mallarmé é o último verso do primeiro terceto. A comparação adquire o tom de uma frase condicional com o verbo roçar, acionando a preposição que cria uma estranha tensão entre a possibilidade e a realidade da imagem, por si só também incomum: “côncavo de um pano” (?). E a todo esse quadro pulsante e sensorial de vida, une-se, no final, o cetáceo, o suposto foco do texto que o traz no título, transformando o poema numa longa perífrase. A espécie dos cetáceos inclui, como mamíferos marinhos, baleias, botos e golfinhos. É sintomático que o poeta também referencie o animal que habita a estranha paisagem que cria de maneira genérica, sem nos dizer com precisão mais a seu respeito. Como se ele fosse o ponto irradiador de uma série de associações, mais importantes do que ele mesmo que encabeça o texto, estopim para a correspondência entre a lógica insessável da vida e a agonia do animal, talvez preso entre pedras o que configuraria a “ironia ondulosa de espelho”. De qualquer maneira, as possibilidades de leitura são múltiplas e exigem do leitor uma atenta participação para a fruição do leitor.

Para Kilkerry o inconsciente não é uma curiosidade de provinciano, mas um material sobre o qual ele desejava trabalhar impondo-lhe, entretanto, o seu senso construtivista de estranheza sonora e plástica – “O Inconsciente é um Rimbaud admirável, trabalha todo esse inanimado universal”.170 Além do gosto por escrutinar o inconsciente, Augusto de Campos identifica, em sua análise estrutural, os recursos básicos da poética hermética de Kilkerry:

Sua técnica avançada de compressões imagéticas, à base de metonímias e metáforas, seu “atonalismo” sintático, sua musicalidade agressiva e dissonante. E acima de tudo o alto grau de consciencialização da linguagem, uma intuição notável daquilo que Décio Pignatari

170

denominou “isomorfismo” em poesia (“o conflito de fundo e forma em busca de identificação”) (...)

Chyrino de Magalhães (Manoel Quirino de Magalhães, ), é outro poeta que empresta à palavra hermético um significado mais exato. Participando também do construtivismo geometrizante de Mallarmé, submerso no sertão da Paraíba, na cidade Patos, este obscuro homem resgatado por um ensaio de Álvaro Cardoso Gomes171, dedicou à sua escassa, porém singular, obra, toda sua breve vida de poeta maldito.

Não se deve entretanto à sua vida desastrosa, digna de qualquer decadentista do período, a possibilidade de inscrevê-lo não só numa concepção ampla de poética como a nossa idéia de hermetismo, como também numa linha criativa e sincrônica da modernidade literária. Restou-nos pouco desse trabalho vertiginoso com a palavra que se, por um lado, carece de volume e de quantidade, por outro, está carregado de significado moderno muito específico. Iniciando sua obra com um livro totalmente adequado a padrões simbolistas, onde a forte presença de Cruz e Sousa se revela, muitas vezes reproduzindo clichês da “escola”,

Edênicas, suaves lactescências... Vagam fluidas, em ondas, sobre aras... Respira perfumes meu ser, essências De veludos, escrínios, jóias raras...

Músicas outonais de estrelas, luares... Os ares atravessam, brancas mágoas, Luzes frouxas, suspiros estrelares... Vozes sumidas, vagas, vozes d’água... (Prelúdio)

Aos poucos o poeta direciona-se para uma crítica do código estético simbolista que o levará, juntamente com a leitura de Mallarmé, a adentrar, como se verifica em sua poesia e em suas anotações, numa crise do verso e da linguagem em suas limitações e para qual o próprio código simbolista não tem eficácia:

171

Revisão de Quirino de Maglhães, In: CARDOSO GOMES, Álvaro. O Poético: Magia e Iluminação. São Paulo: Perspectiva, 1990.

Outro problema está na minha incapacidade de compor poemas inteiros. Um verso me luz e, por mais que o trabalhe, debruçado sobre o papel como um lavrador, não dou com o poema inteiro. É a minha sina – componho por lapsos. Há-de crer você, com muita razão, que são os sintomas desta maldita moléstia que não me deixa em paz.172

Tal fragmento consta numa carta que Chyrino de Magalhães escreveu a seu amigo,

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